Foto: Fidanza
Sem uma tradição firmemente ancorada, toda a dimensão do passado é também posta em perigo. Estamos ameaçados de esquecimento de um tal olvido- pondo inteiramente de parte aos conteúdos que se poderiam perder- significaria que, humanamente falando, nos teríamos privado de uma dimensão, a dimensão de profundidade na existência humana. Pois memória e profundidade são o mesmo, ou antes, a profundidade não pode ser alcançada pelo homem a não ser através da recordação. (ARENDT, 1992)
Alfredo Lopes(*) [email protected]
Desde as incursões científicas dos viajantes europeus do século XVIII, que invadiram a Amazônia em busca de respostas para as demandas do Velho Mundo – alimentos, fármacos, cosméticos, condimentos e energéticos, além dos metais preciosos, é claro – a divulgação das potencialidades regionais fez da biodiversidade florestal da Amazônia um Eldorado de atraentes negócios. Entre mitos, fatos e boatos, a floresta fervilha no imaginário da humanidade como respostas às demandas milenares da energia plena e limpa, o néctar da eterna juventude, o tesouro das Icambiabas e suas miríades de versões e fetiches a materializar sonhos e ansiedades universais. A mitologia e sua intimidade insinuante com a teogonia florestal.
Pilares de uma Civilização Tropical
Passa pela consideração da presença judaica toda e qualquer iniciativa para resgatar a memória dos grandes empreendedores da Amazônia no século XX. Um fato curioso, na celebração dos 50 anos da Federação das Indústrias do Amazonas (Fieam), ocorrido em 2010, chamou atenção na escolha dos critérios de premiação adotados pela entidade para festejar a própria história. Aí estão filiadas empresas globais com tecnologia de ponta – duas rodas, eletroeletrônicos, informática, relojoeiro, plásticos etc.. – que integram o Polo Industrial de Manaus.
Naquele evento, entretanto, a homenagem mais simbólicafoi prestada à presença judaica no Estado, um hebreu exportador de castanhas, o empresário Moisés Sabá, remanescente de uma saga de empreendedores da região. Numa tacada, a entidade resgatou a castanha, um ícone da biodiversidade tropical, e reconheceu o papel exercido pela presença judaica na Amazônia, que acabara de completar 200 anos.sem muitos alardes nem sobressaltos, a Amazônia é, decididamente, a nova Terra Prometida, anunciada aos hebreus no Exílio.
A castanha, a borracha e a promissão
A castanha é um sinal de alerta para a vocação coerente de negócios da região. E os hebreus aqui chegaram fugidos da discriminação opressiva, do Velho Mundo, via Marrocos, para respirar o oxigênio da liberdade, “fazer a América”, diga-se, mais precisamente no sentido de sua potencialidade biogenética tropical mais referencial – a Amazônia. Em 1810, quando Brasil e Inglaterra firmaram um tratado de navegação e comércio, os navios que zarparam com os hebreus marroquinos já tinham em mira as promessas da floresta, além das castanhas, das ervas do sertão e, reafirmadas logo depois, a descoberta da Hevea brasiliensis, a mitológica seringueira, como a árvore da fortuna, que propiciou o início do Ciclo da Borracha. Ao lado dos nordestinos e nativos, eles se fizeram artífices e protagonistas de um ciclo de dor, parto e glamour. O prêmio dos 50 anos da Fieam – no contraponto das commodities que levaram o Brasil para um lugar de destaque no cenário da economia internacional com o agrobusiness – reconheceu o significado e as promessas simbólicas das 1.400 toneladas de castanhas do Pará, ou do Brasil, como querem alguns aborígenes da Amazônia Ocidental, comercializadas com os Estados Unidos e com a China no ano anterior.
Extração, beneficiamento e mercado
Seringueiras e castanheiras se associam ao revolucionário curauá na produção da fibra vegetal amazônica que poderá substituir a fibra de vidro na indústria digital e automobilística, entre outras bromeliáceas ou palmáceas, leguminosas e oleaginosas em profusão e prontidão energética, cosmética e alimentar. Os judeus na Amazônia desencadearam múltiplas acões pioneiras para fazer desses itens da agro e da biondústria emblemas e poemas naturais amazônicos, a flora do tesouro genético,o leite e o mel da promessa milenar. Nos anos 1950, havia mais de 40 empresas que beneficiavam para exportação diversos itens do acervo natural florestal.Resgatar essas iniciativas é convite para revisitar o sentido instigante da presença hebraica na região e seus indicadores de cumplicidade étnica, que desembarcou na comunhão de propostas e propósitos focados na vocação econômica e ecológica de negócios e oportunidades da floresta, a nova Terra Prometida.
Sustentabilidade, conceito e requisitos
Eles enfrentaram os desafios – cada dia mais urgentes – de promover a diversificação e interiorização da economia, do desenvolvimento, à luz dos novos paradigmas de sustentabilidade e da prosperidade geral. Aliás, como veremos adiante, da família Benchimol surge nosso pensador que disseminou em tom de profecia o sentido e os requisitos do termo Sustentabilidade. Os judeus na Amazônia, “Eretz Amazônia”, foi tema deuma publicação densa, épica e profética do professor SamuelBenchimol, que gerou um documentário da TV Cultura do Pará e uma peça em sete atos do escritor Márcio Souza, para resgatar essa relação entre a obstinação de um povo – e sua obsessão libertária – e a provocação dos desafios que o bioma amazônico sinaliza e abriga em seu fascínio e mistérios. Eretz Amazônia foi reivindicado por uma editora de Tel Aviv para ganhar versão hebraica, publicada em 2012.
Amazônia em Israel
A publicação em hebraico do Eretz Amazônia, do professor Samuel Benchimol, em Tel Aviv, ficou a cargo da Editora Lashon Tsachaque, e ocorreu no dia 5 de julho de 2012, por uma “suspeita coincidência”, o dia em que se registraram dez anos de sua partida, e uma semana antes de seu aniversário, quando completaria 89 anos. É uma Amazônia que desembarca em Israel trazida como objeto de um relato sentimental, uma história de dor, amor e paixão, plena de grandes atribulações, conquistas eavanços, frutos da fidelidade e obstinação atávica. Isaac Sabbá e Moysés Israel Cabe recordar, nos primórdios de luta que antecederam a implantação da Zona Franca de Manaus, em meados dos anos 1950, que a saga dos judeus na região atuou decisivamente na Associação e Junta Comercial local. Não apenas com um portfólio de negócios que reúnem mais de 40 empresas, mas como pressão moral e política para o Brasil voltar atenções para a prodigalidade de promessas da região. Eram beneficiadoras de produtos regionais, fibras, peles, resinas, óleos vegetais, fármacos, produtos madeireiros e não madeireiros da silvicultura, que deram base, por exemplo, à economia e carta de crédito para a compra de uma refinaria de petróleo – isso mesmo! -, trazida em navio da Costa Leste dos Estados Unidos para ser montada no meio da floresta sem guindastes, no “muque” obstinado de caboclos, hebreus, arigós, árabes, europeus e asiáticos. ativos e executivos remanescentes do II Ciclo da Borracha, que o governo norte-americano havia buscado retomar sem muito empenho técnico e administrativo nos estertores da II Guerra Mundial.
Identidade e Diversidade
O empreendedorismo dos Benayon Sabbá, Benarrós, Benzecry, Cohen, Assayag, Benchimol, Minev… em completa harmonia com síriolibaneses, turcos, palestinos, gregos e troianos, precisa, pois,ser revisitado e compreendido como paradigma de bionegócios sustentáveis, e das múltiplas e inesgotáveis oportunidades. E demonstração do quanto são fecundos os paradigmas de paz e solidariedade. No livro “Manaós-do-Amazonas”, são listados pelo professor Samuel Benchimol, 41 produtos extraídos da floresta e que faziam a base da economia regional nos anos 1940 em diante, quando esses empreendedores, a despeito do marasmo econômico da Amazônia de então, consolidaram teimosamente seus investimentos na região. Uma verdadeira empreitada de bons negócios da floresta. Farinha, cacau, castanha, borracha, malva e juta… são alguns carros-chefes das empresas que I.B. Sabbá fez florescer a partir do almoxarifado de produtos naturais da Hileia demandados pelo mercado internacional.
Engenho e arte milenar
Com os recursos dessas empresas, o engenho e a arte hebraica para os negócios, desembarcaram nos anos 1960 na gestão competente da Companhia de Petróleo da Amazônia, matriz de uma rede de terminais para distribuição do combustível que possibilitou o ensaio de integração da Amazônia com a vida econômica do país. Foi a contribuição da floresta para os Anos Dourados do presidente Juscelino Kubitscheck, que, aliás, se dignou a cortar as fitas de inauguração, ao lado do lendário Gilberto Mestrinho, então prefeito de Manaus, Isaac Sabbá, Plinio Coelho e Moysés Israel. A infraestrutura energética e de abastecimento dos transportes estava colocada, num surto visionário e sensibilidade e faro de empreendedorismo. O aparente delírio virou realidade e confirmação da prodigalidade de oportunidades de que a floresta dispõe para quem tem tino e respeito a ela.
Castanha do Brasil, borracha, juta, cacau…
Além da castanha, Bertholletia excelsa, as empresas da família investiram historicamente no cultivo da juta, cacau e da seringueira em área de várzea, com excelentes resultados de produção. Experiências que foram transformadas em pesquisas, levadas a efeito, posteriormente, pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, a maior autoridade em cultura de várzea na região, e se constituem em oportunidades efetivas de promissores negócios.
Terra Prometida.
As várzeas do Nilo foram berço e suporte material de muitas civilizações. Na Amazônia, tais projetos, devido à escassez demográfica, o rodízio entre o extrativismo e o cultivo racional, sempre disputaram mão de obra extensiva e esperam do poder público e órgãos de pesquisa as atenções e os recursos necessários à sua consolidação. As várzeas regionais são, pois, promessas densas de progresso e abundância. E são testemunha da saga judaica de empreendedores regionais, seu DNA de qualidade, solidariedade e partilha de paz, o sucedâneo fraterno da prosperidade geral, insumos sagrados e inerentes desta Amazônia que se pode credenciar a ser uma nova Terra Prometida.
(*) Alfredo Lopes é filósofo e ensaísta
Comentários