A expressão latina Quo Vadis, retirada da Bíblia, do livro de João Evangelista, descreve o clima de indagação – a busca de rumo e definições – que tomou conta dos cristãos após a morte, ressurreição e ascensão de Jesus Cristo, nos primórdios do Cristianismo. Ela é retomada com frequência na literatura teológica da época e confere à pergunta contundente do apóstolo Pedro a Jesus, Quo Vadis, Domine?, o poder de traduzir a inquietação existencial e a configuração teológica da Igreja nascente. A expressão, por sua força e sentido, atravessou os séculos e virou um clássico da cinemateca de Hollywood. No Brasil, com o acréscimo do substantivo Urbs, o espaço urbano, foi inteligentemente apropriada pelos acertos urbanos da prefeitura de Curitiba, uma cidade premiada por seus parâmetros urbanos e sócio-ambientais de avanços civilizatórios: Quo Vadis Urbs é hoje a senha de localização e uso da bem sucedida estrutura viária de transportes, a mais laureada do planeta.
Mas nem sempre foi assim. Como Manaus na virada do século XIX, pioneira na utilização da eletricidade para fins de locomoção popular, Curitiba adotou a modernidade dos bondes elétricos para substituir as charretes ou carroças movidas a cavalo e fundou seu sistema de transporte no centro das estratégias urbanas de uso e ocupação do espaço público. Seu primeiro plano diretor é considerado pelos urbanistas como o mais democrático pelo nível de atendimento e satisfação das demandas do usuário. É importante destacar o caráter participativo de sua formulação original ocorrida em 1965 e de todas as oportunidades de atualização e ajustes que o progresso e o crescimento da cidade foram determinando historicamente. Aí, na captação de demandas, s ugestões e críticas da sociedade, reside a origem e a chave de compreensão de seus acertos.
Em Manaus, estamos nos ajustes, acessos e inclusões finais do novo Plano Diretor. Há que se reconhecer o esforço dos técnicos e parlamentares para traduzir a expectativa cívica de um planejamento participativo e focado no interess4 comum. Cabe rememorar o primeiro Plano Diretor de Manaus, formulado em plena folia do látex, pelo engenheiro João Miguel Ribas, em 1893, sob a batuta de Eduardo Gonçalves Ribeiro. Um plano que só foi atualizado e ajustado com a expansão urbana da economia da Zona Franca na gestão de Jorge Teixeira, 82 anos depois, em 1975, com algumas alterações e alinhamentos substantivos de Severiano Mário Porto, no governo municipal de Artur Neto em 1989. De lá pra cá, (des) mandos políticos, no sentido rasteiro da premissa imediatista, e da importação apressada de parâmetros e talentos estranhos às demandas e avaliações nativas, fizeram de Manaus essa falta de rumo e definições urbanas que abriga toda sorte de confusão e desalinho, oportunismos e degradação que a estão levando a lugar nenhum. Para onde vai a cidade com a profusão de canetas e carimbos dos arautos de uma legalidade de plantão a serviço de forças inominadas e a escassez de entendimento, planejamento e comunhão de propósitos? Para onde pode caminhar numa cidade cuja área vital de sua economia tem sido alvo de intervenção vesga, estapafúrdia, obscura e federal, num arbítrio improcedente contra o qual a tribo não se levanta nem mais se espanta?
Manaus tem uma estrutura viária específica, planejada há mais de um século, e maltratada desde então. Diferente de Brasília, que tem sua dinâmica de mobilidade urbana planejada e ancorada no transporte individual. Essa é a razão pela qual o metrô de lá teve suas obras se arrastando há anos e o trecho em funcionamento é muito pequeno em relação às dimensões demográficas da cidade. Manaus tem sua dinâmica relacionada ao deslocamento a pé em 50%, e o restante por ônibus e por veículos individuais. Este item teve um crescimento assustador nos últimos 10 anos. São cinco mil carros novos nas ruas a cada mês, resultado do crescimento econômico e da própria realidade adversa do transporte coletivo precário na cidade. É claro que nem só d e caos no trânsito e travamento do sistema viário se alimentam as demandas de planejamento urbano. É hora do fator político de ordenamento da polis, como postularam os gregos, anular a futrica estéril e sedimentar uma discussão que definirá responsabilidades e atores, a partir da elaboração do novo Plano Diretor de Manaus. Mais que interligar e priorizar uma visão holística e proativa, esta proposta contempla e exige seja monitorado o Plano Viário, Plano de Transporte Coletivo, Plano de Ciclovias, Plano Diretor de Águas, de Esgotos, de Drenagem, dos Transportes Aéreos, da Orla, da Estrutura Logística- Portuária, de Saneamento de Igarapés, de Coleta e Tratamento de Resíduos Sólidos, de Acessibilidade, de Áreas Comerciais e Industriais, Uso do Solo e Código de Posturas, Comunicações (Internet, Celulares e Redes Sociais), enfim, uma visão integrada, transparente e coerente dessa gama enorme de demandas e servi ços em favor do cidadão, fator essencial, sujeito, objeto e justificativa de toda gestão pública e ação política. Uma tarefa de fôlego e de todos.
Por isso, ainda é possível e preciso meter o bedelho do palpite proativo nessa novidade urbana de planejar paradigmas decentes, coerentes e inteligentes de ocupação do espaço, suas fragilidades e potencialidades. Mais do que isso: é essencial e decisivo acompanhar cada passo do que for aprovado. Afinal, o ato de crescer – quando se trata de uma semeadura urdida de um sonho, uma planta, uma casa ou nossa cidade – está associado ao imperativo do cuidar, assegurar ao espaço público o mesmo caráter e o zelo doméstico de quem o ocupa com as mesmas obrigações e afeto com que cuidamos do lar, onde fabricamos e vivemos o desafio da partilha familiar. Um modelo de vida em comum, na abrangência da comunhão cívica, que subsidia, surpreende e gratifica respostas para essa indagação que se impõe formular: Quo vadis, Urbs?
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