O novo arcabouço fiscal nasceu sem pretensão de ser uma regra duradoura, em substituição à regra de teto de gastos, de vida curta e inglória. O Brasil troca de regra fiscal como trocamos de roupa. É um curioso caso em que as metas seguem os resultados —e não o contrário.
Por Márcio Holland
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Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. O ditado popular cai bem para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que vem defendendo bravamente a responsabilidade fiscal. Não é por menos. Em 2023, as despesas da União cresceram 12,5%, enquanto as receitas caíram 2,8%, ambas em termos reais, deixando um rombo nas contas de R$ 230,5 bilhões. O problema fiscal brasileiro não é de hoje e ainda não tem solução definitiva. É uma pedra no sapato do crescimento econômico.
Nos últimos 20 anos, o país manteve grau de investimento em apenas sete anos, de 2008 a 2014. Pelo conceito do FMI, a dívida bruta do governo central registra valores acima de 80% do PIB, uma das mais elevadas na comparação com economias emergentes. É praticamente o dobro da observada nos vizinhos Paraguai (34%), Chile (38%), México (41%), Colômbia (47,5%) e Uruguai (51%). Além de muito alta, a dívida pública federal brasileira é de curto prazo e de custo muito elevado.
Até 2016, quando se aprovou a regra do teto de gastos, as despesas públicas cresciam sistematicamente bem acima da inflação a ponto de saírem de 14% do Produto Interno Bruto, em 1997, e atingirem insustentáveis 19,9% do PIB, em 2016. Um aumento de quase 6% do PIB em despesas a serem financiadas com mais dívida, com mais impostos e com mais inflação. E assim foi feito. A dívida bruta, no conceito do FMI, saltou de 42,5% para 73,4% da renda nacional, naquele mesmo período. Enquanto isso, a carga tributária saiu de 27% para 32% do PIB.
A regra do teto de gastos segurou um pouco o ímpeto gastador do Estado. Sorte, pois a arrecadação tributária federal começou a fraquejar. Graças a poucos anos de fartas receitas extraordinárias, como em 2022, devido às receitas com dividendos e concessões, a conta fechou. Foi graças ao superciclo das commodities que o país gerou bons superávits primários ao longo dos anos 2000. Descontadas essas receitas que “caem do céu”, são duvidosos os esforços dos governos, de direita e de esquerda, em gerar bons resultados fiscais.
O novo arcabouço fiscal nasceu sem pretensão de ser uma regra duradoura, em substituição à regra de teto de gastos, de vida curta e inglória. O Brasil troca de regra fiscal como trocamos de roupa. É um curioso caso em que as metas seguem os resultados —e não o contrário. Em seu primeiro ano, o novo arcabouço fiscal pode fracassar; mesmo batendo em pedra dura, muito dificilmente a nova equipe econômica conseguirá entregar a meta de déficit primário zero, especialmente quando não se contemplam cortes de gastos.
As despesas com Previdência Social seguem pressionando o Orçamento. Fechamos 2023 com déficit na Previdência (RGPS) em R$ 306 bilhões, além dos R$ 100 bilhões de déficit do RPPS (Regime Próprio de Previdência Social), de servidores civis da União, pensões e inativos militares. As despesas com pessoal e encargos sociais vêm caindo em percentual do PIB, mas crescem acima da inflação e atingiram R$ 364 bilhões no ano passado —uma conta salgada a ser paga por uma sociedade empobrecida e cada vez mais desigual. Mais uma rodada de reforma da Previdência será necessária, em especial na aposentadoria rural e dos servidores públicos dos governos estaduais e municipais, além da reforma administrativa.
Há quem reclame por mais gastos para promover o crescimento econômico. Contudo, estudos são bem sólidos em indicar que o multiplicador fiscal brasileiro (o quanto a renda aumenta com o aumento de gastos) é bem inferior à unidade. Ou seja, aqui, gasto não é vida, mas falácia do discurso populista. Vida mesmo é a responsabilidade fiscal.
O Brasil carece de um programa de médio prazo de consolidação fiscal baseado em cortes de gastos combinado com programas de revisões de gastos —mais do que em aumento de receita tributária, sem idas e vindas de regras fiscais— se desejar experimentar o encantado mundo de baixas taxas reais de juros, de modo consistente. Essas são bases macroeconômicas indispensáveis para o crescimento econômico de longo prazo.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
Márcio Holland é professor na Escola de Economia de São Paulo da FGV, onde coordena os “Diálogos Amazônicos” e a Pós-Graduação em Finanças e Economia (Master)
Artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo e reproduzido com autorização do autor
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