Os desastres climáticos no Brasil estão se intensificando, levando especialistas a correrem contra o tempo para calcular os danos à fauna e flora
Com enchentes e incêndios devastando ecossistemas sensíveis, os impactos sobre a biodiversidade se tornam cada vez mais severos. Enquanto as chuvas fortes causam inundações históricas no Rio Grande do Sul, a seca no Pantanal e na Amazônia agrava incêndios florestais, ameaçando milhares de espécies em todo o país.
No Rio Grande do Sul, as enchentes de 2024 são comparadas por especialistas ao impacto do Furacão Katrina em Nova Orleans, nos Estados Unidos, em 2005. Enquanto a recuperação econômica do estado foi estimada em uma década, a natureza possui um tempo diferente de regeneração. O solo, arrastado junto à vegetação e animais, transformou-se em lama que carregou sedimentos centenários para as áreas urbanas de Porto Alegre. Esse processo pode demorar séculos para ser revertido, evidenciando os danos prolongados causados pelas enchentes à terra e aos ecossistemas.
Além disso, o impacto sobre a fauna é devastador. Peixes, anfíbios e insetos são particularmente vulneráveis às inundações, sendo arrastados para fora de seus habitats naturais. Muitas espécies aquáticas do Rio Grande do Sul ainda não se recuperaram dos eventos climáticos extremos de anos anteriores, e a estimativa dos especialistas é que a fauna aquática levará até dois anos para se recompor completamente.
Para Valério De Patta Pillar, professor do Departamento de Ecologia da UFRGS, a erosão do solo causada pelas enchentes comprometeu ecossistemas agrícolas e florestais, exigindo décadas, ou até mesmo séculos, para que a área se recupere. “A água adquiriu uma força imensa, arrastando solo fértil e vegetação nativa, principalmente nas áreas de cultivo de commodities como soja”, explicou o professor.
Pantanal e Amazônia sob risco crescente
Enquanto o Sul do país sofre com enchentes, a região Centro-Oeste, especificamente o Pantanal, enfrenta uma seca extrema que favorece a propagação de incêndios devastadores. O Pantanal, uma das áreas de maior biodiversidade do planeta, sofre há mais de quatro anos com a escassez de chuvas, e em 2024 a extensão dos incêndios foi 54% superior à de 2020, ano em que os fogos atingiram proporções alarmantes.
José Eugênio Figueira, pesquisador do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, explica que o Pantanal acumula camadas de vegetação nativa e plantas aquáticas, que ao se decompor, transformam o solo em uma massa altamente inflamável. “Essa matéria orgânica torna os incêndios intensos e incontroláveis, permitindo que o fogo se propague não apenas pela superfície, mas também pelas copas das árvores e subterrâneos”, detalhou o especialista.
O impacto desses incêndios sobre a fauna é dramático. Animais de pequeno porte, como tamanduás, gambás e macacos, têm pouca chance de escapar das chamas. Os grandes predadores, como as onças-pintadas, podem detectar a fumaça e se afastar, mas ainda assim são vítimas dos focos de incêndio subterrâneos, que deixam braseiros ocultos e mortais. Os gases tóxicos produzidos pelos incêndios também representam uma ameaça para os animais que conseguem fugir.
Segundo estimativas do ICMBio, cerca de 75 milhões de animais vertebrados e 4,6 bilhões de invertebrados foram impactados diretamente pelos incêndios do Pantanal em 2020. E os efeitos desses desastres ainda são sentidos quatro anos depois, com muitas espécies sem conseguir se recuperar completamente.
O bioma amazônico, por sua vez, também enfrenta mudanças drásticas. As cheias e secas, que antes faziam parte do ciclo natural da região, agora ocorrem de forma descontrolada e ameaçam a sobrevivência de espécies endêmicas. Em Tefé, Amazonas, os botos, símbolos da biodiversidade local, sofreram grandes perdas durante a seca de 2023, com uma média de uma morte por dia registrada durante uma semana em 2024.
Para Darlene Gris, pesquisadora do Instituto Mamirauá, essas mortes são apenas um indicativo das pressões ambientais que as espécies amazônicas enfrentam. A dispersão de frutos, que depende das cheias regulares dos rios, está sendo afetada, colocando em risco a alimentação de muitas espécies que dependem dessas plantas para sobreviver. “Se essas cheias não ocorrem, como isso vai impactar a flora e, por consequência, a fauna que depende dela?”, questiona Gris.
Mudanças climáticas e seus impactos na biodiversidade
As secas extremas também modificam o comportamento das espécies vegetais, permitindo que plantas chamadas “generalistas” ampliem suas áreas de ocorrência, ocupando espaços antes habitados por plantas mais sensíveis e especializadas.
Esse fenômeno pode levar à perda de biodiversidade, com espécies mais vulneráveis sendo gradualmente substituídas. Além disso, a captura de carbono, um processo fundamental para a regulação climática da Amazônia, está sendo prejudicada pela alteração dos ciclos de cheia e seca. “Estamos trabalhando com modelagens para entender como as mudanças climáticas vão impactar esses processos no longo prazo”, afirma Darlene Gris.
A seca no Pantanal e os incêndios na Amazônia são parte de um fenômeno global. Segundo o relatório “Planeta Vivo 2024: Um Sistema em Perigo”, da WWF, o mundo perdeu 73% de sua biodiversidade nos últimos 50 anos, com a América Latina e o Caribe registrando uma queda média de 95% nas populações de animais selvagens.
Esses números revelam a urgência de ações de proteção ambiental. A queima de combustíveis fósseis e o desmatamento aceleram as mudanças climáticas, intensificando eventos extremos como secas, enchentes e incêndios. Sem tempo hábil para se regenerar, os ecossistemas entram em colapso, comprometendo não apenas a fauna e flora, mas também as comunidades humanas que dependem desses recursos.
O caminho para a recuperação: desafios e soluções
Os impactos ambientais resultantes dos eventos climáticos extremos exigem uma resposta coordenada entre governos, cientistas e a sociedade civil. Embora a recuperação da vegetação e do solo seja um processo lento, especialistas apontam que a proteção e restauração da vegetação nativa, especialmente em áreas vulneráveis, é uma medida essencial para mitigar futuros desastres. No Rio Grande do Sul, análises pós-enchentes mostram que as áreas de vegetação preservada sofreram menos erosão e danos, sugerindo que a recuperação de ecossistemas naturais pode reduzir a severidade de eventos climáticos no futuro.
No Pantanal e na Amazônia, o combate aos incêndios e a criação de programas de conservação que protejam as espécies mais vulneráveis são prioridades. O monitoramento contínuo dos impactos climáticos é outro passo crucial. “Há uma falta de mão de obra para acompanhar de perto os danos causados pela seca e pelos incêndios”, comenta Gris, destacando que muitos efeitos desses desastres só se tornam visíveis a longo prazo, como a alteração nos ciclos biogeoquímicos e a perda de biodiversidade.
Os desafios são grandes, mas os especialistas concordam que não há mais tempo a perder. Ações de restauração, proteção e monitoramento ambiental são urgentes para garantir que a natureza tenha uma chance de se regenerar. A preservação da biodiversidade é fundamental não apenas para o equilíbrio dos ecossistemas, mas também para a preservação dos modos de vida das comunidades que dependem diretamente desses recursos naturais. Populações indígenas, ribeirinhas e agricultores locais enfrentam a perda de suas fontes de alimento, água e renda, agravando a vulnerabilidade social e econômica nessas regiões.
O caminho para a recuperação é complexo e demanda esforços integrados. Governos, ONGs e instituições científicas precisam unir forças para implementar medidas de adaptação às mudanças climáticas, com foco na restauração de ecossistemas degradados, proteção da vegetação nativa e na criação de políticas públicas que priorizem a resiliência ambiental e social. Investimentos em pesquisa científica também são essenciais para compreender melhor os impactos a longo prazo sobre a fauna e flora, permitindo ações mais eficazes de mitigação.
A resposta a esses desafios também passa pela educação e conscientização da população sobre a importância da biodiversidade e os riscos associados à degradação ambiental. A urgência em agir é inegável, e o futuro da Amazônia, do Pantanal e de outras regiões ricas em biodiversidade depende da capacidade de adaptação e preservação que a sociedade é capaz de implementar. Somente com uma abordagem integrada e sustentável será possível garantir que a natureza tenha tempo e espaço para se regenerar, assegurando a continuidade da vida e do equilíbrio ecológico em todo o planeta.
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