Um estudo do Instituto Igarapé revela que o crime organizado transformou a Amazônia num epicentro para a lavagem de dinheiro proveniente de crimes ambientais, com um complexo ciclo de cinco etapas que desafia as estratégias de combate tradicionais.
O interesse pelas questões ambientais tem aumentado progressivamente, tornando-se um dos principais focos de atenção no cenário global do século 21, especialmente no que diz respeito às mudanças climáticas. O aquecimento global está acelerando, com temperaturas globais em ascensão ano após ano. A água está se tornando cada vez mais um bem escasso, as emissões de gases do efeito estufa estão em alta, diversas espécies estão ameaçadas de extinção, e o desmatamento continua avançando pelas florestas ao redor do mundo.
Estes são apenas alguns exemplos de como o impacto das atividades humanas no ambiente tem sido destacado recentemente, levando a uma mobilização e conscientização por parte de líderes mundiais. No entanto, a preocupação gerada por essas questões frequentemente se concentra exclusivamente nos aspectos ambientais, sem considerar devidamente o aumento da criminalidade associada a esses problemas.
A face criminosa do desafio ambiental
Além dos delitos ambientais reconhecidos e codificados nas leis de diversos países — que, muitas vezes, como no caso do Brasil, são insuficientes para enfrentar a crise climática atual —, a lavagem de dinheiro emerge como uma preocupação significativa neste contexto.
Um relatório divulgado em abril de 2023 pelo Instituto Igarapé revelou que, em 2018, o crime ambiental se posicionou como a terceira maior atividade criminosa em termos de lucratividade global, superada apenas pelo tráfico de drogas e pelo contrabando. Em 2019, o Banco Mundial calculou que os governos perdem anualmente de US$ 6 a US$ 9 bilhões em receitas fiscais devido à extração ilegal de madeira. Adicionalmente, estima-se que o tráfico de animais silvestres gere entre US$ 7 e US$ 23 bilhões em lucros ilícitos a cada ano.
Em 2022, o Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), focado na prevenção à lavagem de dinheiro e no combate ao financiamento do terrorismo, estimou que os crimes ambientais produzem entre US$ 110 e US$ 281 bilhões em lucros anuais. Os dados são eloquentes. A exploração ilegal dos recursos naturais transformou as economias paralelas ligadas ao meio ambiente em empreendimentos extremamente lucrativos, atraindo, consequentemente, operações de lavagem de dinheiro para esse setor. Assim, os recursos provenientes dessas atividades ilícitas, bem como os próprios ativos ambientais, tornaram-se alvos para a lavagem de dinheiro.
Dinâmica da lavagem de dinheiro na região amazônica
No cenário brasileiro contemporâneo, uma parcela significativa do capital ilícito destinado à lavagem de dinheiro tem sua origem, passagem ou destino nas áreas remotas da Amazônia, frequentemente escapando do alcance da fiscalização governamental. Atividades como a pecuária não autorizada, a exploração ilegal de madeira e minerais, e o comércio ilícito de animais silvestres são exemplos de operações que geram recursos financeiros “sujos”, criando demanda para os operadores de lavagem de dinheiro. Especificamente na Amazônia, observam-se duas principais maneiras pelas quais os crimes ambientais se entrelaçam com a lavagem de dinheiro.
Muitas das atividades ilegais na região são utilizadas para purificar capitais provenientes de outras infrações, como corrupção, narcotráfico ou tráfico de armas, através de investimentos em mineração, pecuária ou desmatamento. Por outro lado, os lucros obtidos por meio de atividades ilícitas amazônicas, como a extração irregular de madeira e minerais e a criação de gado em áreas de conservação, são também infiltrados na economia formal, parecendo legítimos, criando um complexo ecossistema de crimes, tanto ambientais quanto outros, unidos pela lavagem de dinheiro.
Ciclo de retroalimentação de crimes
Portanto, presencia-se um ciclo contínuo de retroalimentação. As economias informais da região, que se aproveitam indevidamente dos recursos naturais, produzem rendimentos ilícitos que necessitam ser lavados para ingressar no mercado formal. Simultaneamente, os rendimentos de outros crimes, já lavados através das atividades na Amazônia, apoiam e financiam a continuação da destruição das áreas de preservação local.
Embora o desmatamento seja o efeito mais notório desse ciclo, o problema é mais complexo e se estende por uma variedade de economias ilegais, incluindo a usurpação de terras, a pecuária não autorizada e a exploração ilegal de madeira e minerais. Como ilustração, a usurpação de terras geralmente ocorre através da aquisição ou arrendamento de grandes extensões de terra ocupadas ilegalmente, com o propósito de criar gado e produzir alimentos. O processo inicia com o desmatamento, seguido pela ocupação e, eventualmente, pela comercialização dessas áreas.
Complexidade dos crimes ambientais
O ciclo de atividades ilícitas, tanto ambientais quanto não ambientais, gera uma série de produtos ilegais em toda a sua cadeia, apresentando um elevado risco para operações de lavagem de dinheiro. A ocultação da origem da terra, a falsificação de documentos de propriedade e os lucros advindos dessas transações constituem a base financeira para a lavagem de dinheiro subsequente.
Extração ilegal de madeira
Uma das práticas mais comuns e lucrativas na Amazônia é a extração ilegal de madeira. A ilegalidade pode se manifestar em várias fases: desde a obtenção da madeira, que pode ser proibida por lei, passando pelo transporte e até o processamento do produto.
A madeira ilegal apresenta desafios significativos para o rastreamento, podendo ser “lavada” em várias etapas do processo. Isso é frequentemente facilitado por licenças ambientais forjadas, concessões ilegais, licenças de transporte e declarações alfandegárias fraudulentas, que visam ocultar sua origem ilícita. A técnica de “mescla”, onde a madeira ilegal é misturada com madeira de fontes legais, complica ainda mais a detecção dessas atividades ilícitas, dificultando a separação dos produtos lícitos dos ilícitos.
Extração de minério ilegal
A extração ilegal de minérios, como ouro, prata, ferro e diamante, é notável não apenas pelo valor dos metais, que por si só representam ativos financeiros, mas também pela possibilidade de cometer ilícitos em todas as fases do processo. Isso inclui desde a extração em terras indígenas ou áreas protegidas, a utilização de documentação falsa para mascarar a origem do minério, até a comercialização clandestina dos produtos.
A mescla de minérios legais com ilegais dificulta a fiscalização e afeta negativamente o trabalho legítimo de garimpeiros e mineradoras. A extração de minério oferece um terreno fértil para a lavagem de dinheiro, especialmente devido à prevalência de transações em espécie ou o uso do próprio ouro como meio de pagamento, o que complica o rastreamento das operações.
Tráfico de animais silvestres
O tráfico de animais silvestres é outra atividade ilícita significativa que favorece a lavagem de dinheiro. A Amazônia serve como um ponto crítico para a extração, transporte e comercialização de diversas espécies da fauna brasileira. O valor desses animais atrai o interesse de compradores, contribuindo para a complexidade e o alcance global desse tipo de crime ambiental.
Os traficantes de animais frequentemente adotam métodos e rotas similares aos utilizados no tráfico de drogas, recorrendo a várias formas de financiamento e preferindo o uso de dinheiro em espécie para pagamentos. Esta prática sublinha a complexidade e a adaptabilidade dos métodos de lavagem de dinheiro, refletindo a dificuldade em identificar e delimitar as ações que configuram esse tipo de crime.
A identificação precisa das condutas que constituem lavagem de dinheiro é desafiadora, exigindo uma análise cuidadosa das ações dentro do contexto em que são realizadas. Especialmente nos casos de crimes ambientais, essa análise requer atenção particular, demandando uma abordagem interdisciplinar e integrada, como destacado pela Procuradora da República Ana Carolina Bragança. Essa colaboração entre penalistas e ambientalistas é crucial para uma efetiva compreensão e combate à lavagem de dinheiro oriunda de crimes ambientais.
Estrutura do processo de lavagem
Tradicionalmente, o processo de lavagem de dinheiro é dividido em três etapas: ocultação, dissimulação e integração. A ocultação envolve o distanciamento inicial dos ativos de sua origem ilícita, enquanto a dissimulação compreende as operações subsequentes que visam a dificultar o rastreamento dessa origem, através de múltiplas transações financeiras e outras estratégias para mascarar a procedência ilícita dos ativos.
No contexto dos crimes ambientais, estratégias como a falsificação de licenças, o uso de intermediários e a realização de transações simuladas de compra e venda são algumas das maneiras pelas quais a origem ilícita de um bem pode ser dissimulada, complicando o rastreamento dos ativos.
A fase final, conhecida como reintegração, é o momento em que os ativos de origem ilícita são reinseridos na economia com uma aparência de legalidade, após passarem pelas etapas de ocultação e dissimulação. É importante notar que, apesar do reconhecimento dessas três fases, a legislação brasileira, especificamente no artigo 1º da Lei nº 9.613/98, conforme alterada pela Lei nº 12.683/12, criminaliza a ação de “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”. Isso significa que a caracterização do crime de lavagem de dinheiro pode ser estabelecida já nas fases de ocultação ou dissimulação, sem a necessidade de uma efetiva reintegração dos ativos na economia lícita.
A análise tradicional do crime de lavagem de dinheiro, embora abrangente, mostra-se insuficiente para capturar a complexidade e a especificidade dos crimes ambientais, especialmente na vasta e diversificada região amazônica. O estudo do Instituto Igarapé propõe uma abordagem ampliada, identificando cinco fases distintas no ciclo de lavagem de dinheiro: coleta, diversificação informal, inserção formal, ocultação e integração.
- Coleta: Esta fase inicial envolve a acumulação de recursos financeiros provenientes de atividades criminosas. Na Amazônia, a prevalência de economias ilegais e a utilização de meios de troca de difícil rastreamento, como o ouro e o dinheiro em espécie, facilitam essa etapa.
- Diversificação Informal: Antes de adentrar o sistema financeiro formal, os recursos ilegais são movimentados dentro da economia informal. Essa etapa permite a dispersão e a diluição dos recursos ilícitos em várias frentes, dificultando sua detecção.
- Inserção Formal: Aproximadamente 70% dos recursos acumulados são então direcionados para a economia formal, após deduzir os custos operacionais da atividade ilícita, que podem representar até 30% do total.
- Ocultação: Nesta fase, os recursos são encobertos e transformados, frequentemente por meio de operações superfaturadas com empresas legítimas, companhias de fachada, ou pela aquisição de ativos virtuais, visando mascarar a origem ilícita dos fundos.
- Integração: Finalmente, os recursos ilícitos são reintegrados à economia de maneira que pareçam provenientes de fontes legítimas. A compra de imóveis ou a participação no comércio internacional são exemplos de como isso pode ser realizado.
Este modelo expandido reflete a realidade complexa dos crimes ambientais e da lavagem de dinheiro na Amazônia, destacando a necessidade de uma abordagem interdisciplinar e integrada para o enfrentamento eficaz desses crimes. A colaboração entre penalistas e ambientalistas, como sugerido pela Procuradora da República Ana Carolina Bragança, é fundamental para desenvolver estratégias de combate mais eficientes e adaptadas à realidade desses delitos.
A legislação brasileira, ao criminalizar a ocultação ou dissimulação de bens provenientes de infrações penais, reconhece a complexidade do crime de lavagem de dinheiro. No entanto, a constante evolução das técnicas de lavagem, especialmente no contexto dos crimes ambientais, exige uma revisão contínua das abordagens legais e investigativas.
As reflexões propostas não pretendem esgotar o tema, mas sim estimular o debate e aprofundar a compreensão sobre a intersecção entre o Direito Ambiental e a lavagem de dinheiro. A complexidade e a dinâmica desses crimes demandam uma análise cada vez mais detalhada e interdisciplinar, essencial para que o ordenamento jurídico possa oferecer respostas eficazes a esses desafios contemporâneos.
Recomendamos também este episódio do Foro de Teresina, depois do minuto 40 aborda-se algumas pontos sobre o crime organizado na região:
Com informações do Conjur
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