O Brasil se destaca no cenário global com avanços significativos na produção de Combustível Sustentável de Aviação (SAF), impulsionado por projetos inovadores e legislação favorável, visando uma aviação mais verde até 2037
Em dezembro de 2023, um marco foi alcançado quando um Boeing 787 operado pela Virgin Atlantic, uma companhia aérea do Reino Unido, completou um voo de Londres para Nova York utilizando exclusivamente combustível sustentável. Este evento, considerado um marco histórico, não utilizou o tradicional querosene fóssil, mas sim um combustível inovador derivado de óleo de cozinha reciclado e gordura animal, complementado com 12% de querosene aromático sintético de fonte renovável. A Virgin Atlantic anunciou que essa substituição resultou em uma diminuição de até 70% nas emissões de gases causadores do efeito estufa em comparação com o combustível de aviação convencional.
Para realizar tal voo demonstrativo, foi necessária uma autorização especial, visto que atualmente as regulamentações permitem que as companhias aéreas utilizem no máximo 50% de combustível de aviação sustentável (SAF) em seus tanques. Esta limitação é baseada nas diretrizes da Sociedade Americana de Testes e Materiais (ASTM) e da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
O SAF é produzido através de várias rotas tecnológicas, utilizando uma ampla gama de matérias-primas, desde oleaginosas até etanol e resíduos sólidos urbanos. O elemento comum entre essas matérias-primas é o carbono, essencial para a formação dos hidrocarbonetos que compõem o SAF. A meta é que as aeronaves possam ser abastecidas com querosene de aviação, SAF, ou uma combinação de ambos, graças à similaridade molecular entre o SAF e o querosene fóssil, o que não exige alterações nos motores ou na infraestrutura de abastecimento.
A limitação atual de não exceder 50% de SAF na mistura de combustível deve-se a preocupações de segurança. Segundo Fernando Catalano, engenheiro mecânico e diretor da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (Eesc-USP), nem todas as formas de SAF contêm uma quantidade adequada de hidrocarbonetos aromáticos, cruciais para manter a viscosidade do combustível e prevenir o congelamento em altitudes elevadas.
Embora o querosene fóssil contenha entre 10% e 25% de compostos aromáticos, que são poluentes mas necessários, Catalano aponta que este é um desafio ainda a ser superado. Ele também menciona outros obstáculos para a adoção generalizada do SAF, como a produção global insuficiente para atender à demanda e o custo, que é estimado ser de três a cinco vezes maior que o do querosene de aviação convencional.
A Embraer, gigante brasileira da indústria aeronáutica, tem avançado significativamente nos testes com combustível de aviação sustentável (SAF). Em junho de 2022, a empresa realizou um voo pioneiro com um de seus jatos comerciais E195-E2, utilizando 100% de biocombustível em um dos motores. Posteriormente, em outubro de 2023, dois de seus jatos executivos, produzidos em São José dos Campos, efetuaram um voo de teste empregando exclusivamente SAF.
O papel do SAF na redução da pegada de carbono da aviação
O setor aéreo, responsável por aproximadamente 2% das emissões globais de CO2 e contribuindo com 800 milhões de toneladas desse gás à atmosfera, vê no SAF uma solução promissora para acelerar a redução de sua pegada de carbono. A aviação é considerada um dos setores mais desafiadores para a descarbonização, com o avião sendo um dos meios de transporte mais poluentes.
Em 2022, os estados-membros da Organização da Aviação Civil Internacional (Oaci) estabeleceram a meta de neutralizar as emissões de carbono do setor até 2050. No final de 2023, durante um encontro nos Emirados Árabes Unidos, comprometeram-se a diminuir as emissões de CO2 da aviação internacional em 5% até 2030.
A produção de SAF ultrapassou os 600 milhões de litros em 2023, o dobro do volume do ano anterior, segundo a Associação Internacional de Transportes Aéreos (Iata), com expectativas de triplicar no ano seguinte. Apesar desse crescimento, a produção ainda corresponde a apenas 0,53% da demanda global por combustível de aviação. Países como Estados Unidos, China, Japão, Singapura, Alemanha, Noruega e México já estão engajados na fabricação deste insumo.
Fernando Catalano, membro do painel independente de especialistas da Oaci, sugere que as companhias petrolíferas, atualmente responsáveis pela produção de querosene de aviação, podem vir a ser fornecedores chave de SAF no futuro.
Desafios e oportunidades
Com o crescimento previsto para o setor aéreo nos próximos anos, espera-se que as inovações tecnológicas e a introdução de aeronaves mais eficientes, juntamente com a otimização das operações, não sejam suficientes para atingir as metas de redução de emissões. Neste cenário, os combustíveis alternativos, como o SAF, são essenciais. A Iata projeta que o SAF contribuirá com mais de 60% das reduções necessárias para alcançar a neutralidade de carbono até 2050.
O Brasil, com sua vasta experiência em biocombustíveis e abundância de biomassa, é visto por especialistas como um potencial líder na produção de SAF. Glaucia Mendes Souza, bioquímica da USP e membro do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), acredita que o Brasil tem condições únicas para se destacar na produção em larga escala de SAF.
No Brasil, a abundância de insumos como o etanol posiciona o país como um potencial líder na produção de combustível de aviação sustentável (SAF). Contudo, a conversão de etanol em SAF pela rota Alcohol-to-Jet (ATJ) ainda enfrenta desafios de competitividade econômica. A rota Hydro-processing of Esters and Fatty Acids (Hefa), apesar de ser a mais utilizada globalmente, levanta questões de sustentabilidade, especialmente em relação ao uso do óleo de palma, cuja produção é criticada por práticas predatórias em algumas regiões.
Embora o Brasil ainda não tenha iniciado a produção comercial de SAF, diversos projetos estão em desenvolvimento. Um exemplo é a inauguração de uma planta-piloto pelo Instituto Senai de Inovação em Energias Renováveis (ISI-ER) em Natal, Rio Grande do Norte, com o objetivo de ampliar a produção de SAF de 200 mililitros por dia para aproximadamente 5 litros. Utilizando a rota Fischer-Tropsch (FT), a planta-piloto foca na conversão de glicerina, um subproduto da produção de biodiesel, em SAF.
Oportunidades de inovação e produção
A glicerina, abundante no Brasil devido à vasta produção de biodiesel, é vista como uma matéria-prima valiosa para a produção de SAF, especialmente quando consideramos a possibilidade de converter contaminantes presentes nela em produtos de alta demanda industrial. Além disso, o ISI-ER explora a produção de SAF utilizando CO2 capturado do ar e hidrogênio verde, demonstrando a versatilidade e o potencial inovador do país na produção de combustíveis sustentáveis.
O interesse na produção de SAF se expande além do ISI-ER, com pelo menos quatro empresas brasileiras anunciando planos para produzir SAF no território nacional: Acelen na Bahia, Petrobras em Cubatão (SP), Brasil BioFuels na Amazônia, e Geo Biogás no Paraná. Adicionalmente, o ECB Group do Brasil planeja construir uma biorrefinaria no Paraguai para produzir biocombustíveis avançados, incluindo SAF, com uma capacidade de 20 mil barris por dia.
Essas iniciativas refletem o potencial do Brasil não apenas em contribuir significativamente para a produção global de SAF, mas também em liderar esforços de sustentabilidade no setor aéreo, alinhando-se com as metas globais de redução de emissões de carbono e promovendo a transição para fontes de energia mais limpas e renováveis.
Com informações da Revista FAPESP
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