Cobiça nos últimos anos de uma controversa exploração de petróleo, a região da Foz do Amazonas possui recifes ainda muito desconhecidos pela ciência
Por Gilberto Stam via Revista FAPESP
Em agosto ocorrerá mais uma expedição científica aos recifes da foz do rio Amazonas, um ambiente ainda não completamente reconhecido, permeado de incertezas e até recentemente visto como improvável. O biólogo Ronaldo Francini-Filho, da Universidade de São Paulo (USP), será um dos pesquisadores que participarão da exploração, a terceira que ele faz desde 2015 em busca de respostas mais precisas sobre aquela região.
Descobertos na década de 1970 por meio de amostras esparsas, que não chamaram muito a atenção, os recifes da foz do rio Amazonas estão na borda da plataforma continental, entre 70 e 220 metros (m) de profundidade, em média, e são formados por trechos de algas calcárias, corais pretos ou vermelhos, campos de esponjas naturais, areais cobertos por algas verdes e estruturas calcárias que podem chegar a 20 m de altura. Os recifes se estendem por 1.350 quilômetros (km), desde o estado do Amapá até a região central do estado do Maranhão, entre 150 e 200 km da costa.
Em 2014, biólogos, oceanógrafos e geólogos se surpreenderam ao retirar do mar, com dragas, pedaços de esponjas, algas calcárias, corais e peixes, porque, teoricamente, esses organismos não deveriam estar lá. Como detalhado em um artigo publicado em abril de 2016 na Science Advances, a água turva dos rios de regiões tropicais como o Amazonas dificulta a passagem de luz e forma um assoalho lodoso, supostamente inadequado para esses organismos.
Além disso, a forte corrente de maré somada à descarga do Amazonas, que a cada segundo despeja no mar cerca de 200 mil metros cúbicos (m3) de água barrenta – o suficiente para encher a baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, em duas horas e meia –, deveria tornar o crescimento de recifes inviável.
Desde 2016, foram feitas algumas viagens científicas exploratórias à foz, que recebe as águas não só do leito principal do rio, mas também de afluentes, por ali chamados de igarapés, banhando extensos manguezais. Os resultados das explorações são, às vezes, divergentes, a começar pela própria definição do ambiente como um recife.
“As estruturas recifais ao norte da foz do rio Amazonas são formadas por rochas, sobre as quais cresceu uma fina camada de seres vivos”, diz o geólogo Alex Bastos, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), um dos autores de um artigo publicado em maio de 2022 na revista Marine Geology; no título do trabalho, recife está entre aspas. “Segundo algumas definições, um recife deve ter origem biológica”, justifica.
O geólogo Alberto Figueiredo, da Universidade Federal Fluminense (UFF), da equipe de pesquisadores que escreveram um artigo em agosto de 2022 em formato preprint no site Research Square (no título, recife também está entre aspas), diz que a importância atribuída à região por alguns pesquisadores e organizações é exagerada.
“O recife da bacia sedimentar da foz do Amazonas não é contínuo e é formado principalmente por lajes calcárias construídas por algas”, observa. Segundo ele, as lajes carbonáticas não são exclusivas da bacia da foz do Amazonas, mas se estendem ao logo da borda da plataforma continental, do Amapá até Santa Catarina.
Figueiredo afirma: “A maior parte dos organismos que viviam sobre essas lajes está morta, com idades entre 15 e 20 mil anos”. Diferentemente, um estudo coordenado pelo geólogo Michel Mahiques, da USP, publicado em setembro de 2019 na Scientific Reports, mostrou que os recifes estão vivos e em crescimento.
A espessura da camada de organismos vivos sobre as rochas pode não ser um bom critério para avaliar a importância dos recifes, defende o oceanógrafo Thomás Banha, do Centro de Biologia Marinha (CEBIMar) da USP e primeiro autor de um artigo de opinião publicado na revista Frontiers in Marine Science em dezembro de 2022, em que vai na direção contrária à de Figueiredo ao defender a importância ecológica do recife. Segundo ele, essa cobertura pode variar de milímetros nas colônias de corais a mais de 1 metro nas de esponjas.
“Os recifes da foz do rio Amazonas são parecidos com outros de regiões mais profundas da plataforma continental”, lembra Banha. Ali, segundo ele, vivem espécies importantes para a pesca, como o pargo (Lutjanus purpureus), entre outros 90 tipos de peixes que dependem dos recifes para alimentação e abrigo.
Em 2017, a organização não governamental Greenpeace lançou uma campanha em defesa da preservação dos recifes do rio Amazonas. Além de divulgar fotos da região, forneceu um navio de pesquisa e um submarino para um grupo de pesquisadores de quatro universidades brasileiras, inclusive Francini-Filho e o oceanógrafo Nils Edvin Asp Neto, da Universidade Federal do Pará (UFPA). A equipe publicou um artigo com os resultados da expedição na revista científica Frontiers in Marine Science em 2018.
A área precisa ocupada pelos recifes da foz do Amazonas não está definida. Em maio de 2016 na revista Science Advances, pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da USP lançaram uma primeira estimativa: cerca de 9,5 mil km2, pouco menos do que a cidade de Manaus. Em 2018, outro grupo, com especialistas da Paraíba, Rio de Janeiro e São Paulo, sugere na revista Frontiers in Marine Science uma área potencialmente seis vezes maior, com até 56 mil km2. “Não conhecemos as conexões entre as áreas visitadas, que levaram às diferentes estimativas sobre a região dos recifes”, afirma Bastos.
Sua importância biológica apenas começa a ser vislumbrada: os recifes da foz do Amazonas poderiam servir como um trampolim ecológico entre o mar do Caribe e o do Brasil. A maioria das espécies vive apenas em um desses locais e não consegue atravessar a pluma – a região rica em sedimentos onde deságua o rio Amazonas –, mas algumas vivem nos dois lados. “É possível que essas espécies tenham atravessado a pluma usando os recifes como corredor”, comenta Banha. É o caso do peixe-leão (Pterois volitans), espécie nativa dos mares da Ásia que chegou à Flórida, nos Estados Unidos, e depois na costa brasileira – já foi visto no litoral do Ceará, do Rio Grande do Norte e de Pernambuco.
Riqueza biológica e mineral
A região chamou a atenção também de empresas petrolíferas, por causa das supostas reservas de óleo e gás, à semelhança das reservas descobertas nas vizinhas Guiana Francesa, Suriname e Guiana. Desde o fim de 2022, a Petrobras mantém um navio-sonda no litoral do Amapá e poderá começar em breve a fazer perfurações para verificar a qualidade do óleo e a viabilidade de sua exploração.
Se de fato vier a ser instalado na região um polo petrolífero, há risco de eventuais vazamentos de óleo. Seus impactos sobre o recife, todavia, ainda são incertos. Para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a maior preocupação é saber para onde o óleo que vazasse poderia ser levado e como a empresa exploradora poderia detê-lo.
A Petrobras procurou pesquisadores de universidades brasileiras para trabalhar com suas equipes nas respostas desejadas pelos órgãos ambientais. Um deles foi Nils Asp, da UFPA.
“Participei de três reuniões com a empresa entre 2021 e 2022, mas depois não me chamaram mais”, conta. Asp criticou o modelo numérico em hidrodinâmica usado pela BP, sócia da Petrobras nesse empreendimento, sobre o percurso do óleo que eventualmente escapasse dos poços. Segundo ele, os cálculos previam que a forte corrente marinha do norte do Brasil levaria o óleo para o norte, rumo ao Caribe, sem tocar a costa do Amapá, ainda que criando problemas para países vizinhos.
Para Asp, essa abordagem dá pouca importância à complexidade geográfica da costa, especialmente à do Amapá, recortada por rios repletos de lagos, várzeas e manguezais. Empurrado pela maré alta, o óleo poderia invadir áreas onde vivem comunidades de pesca artesanal.
A dispersão do óleo depende também do vento que sopra do mar em direção à costa. A força é tanta que, em 2004, empurrou para o manguezal do Parque Nacional do Cabo Orange, no município de Oiapoque, no Amapá, um foguete lançado na Guiana Francesa que havia caído no mar dias antes.
Segundo Asp, a modelagem não menciona possíveis riscos ambientais aos recifes da foz do rio Amazonas. Esse ambiente se estende para além da fronteira com a Guiana Francesa e fica a apenas algumas dezenas de quilômetros do chamado bloco 59, área adquirida pela Petrobras para exploração.
Em nota enviada a Pesquisa FAPESP, a Petrobras afirma que os recifes não estão em risco: “Na área das perfurações, em profundidade maior do que 2 mil m, não há indicação da presença de bancos de corais, algas calcárias, esponjas e outros organismos presentes em formações biogênicas no fundo”.
De acordo com o comunicado, a empresa realizou um levantamento do assoalho da região onde o poço poderia ser perfurado para se certificar de que não há recifes. “As chances de um incidente desse tipo são diminutas e a Petrobras está entre as empresas de referência no setor nas medidas de precaução, sempre tentando conter riscos”, diz a nota.
Francini-Filho não está convencido de que os recifes estejam livres de riscos. Segundo ele, a única forma de barrar o óleo que flutua em direção à costa é usar um dispersante, substância que o transforma em gotículas. Mas esse composto químico faria as gotículas afundarem e chegarem aos recifes.
Área de preservação
Desde 2007, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, estuda a implantação de uma unidade de conservação na plataforma continental do Pará, inicialmente para proteger a reprodução de camarões. A partir de 2016, as publicações científicas motivaram a extensão da proteção aos recifes, prevendo uma área de 25 mil km2, entre a costa norte e sul do Amapá.
“Dependendo do tipo de área protegida a ser criada, a exploração de petróleo deverá ser restrita ou excluída, a partir da análise das instâncias governamentais e de acordo com a participação da sociedade”, comenta o oceanógrafo Rafael Magris, do ICMBio.
A Petrobras informa em seu comunicado que “pretende empregar todo o conhecimento operacional e as tecnologias necessárias para a preservação e manutenção das características físicas e biológicas do ambiente”. Decidir o futuro da região será um dos próximos desafios da nova equipe do Ministério do Meio Ambiente.
Fonte: Revista FAPESP
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