Por Ana Ionova – MONAGABAY
- A Terra Indígena Apyterewa está sob proteção federal desde 2007, porém nos últimos anos tornou-se uma das reservas mais desmatadas do Brasil, já que madeireiros, pecuaristas e garimpeiros invadiram e arrasaram extensões de floresta.
- Enquanto o ex-presidente Jair Bolsonaro se preparava para deixar o cargo no final de 2022, garimpeiros correram para “desmatar enquanto ainda havia tempo”, afirmam ambientalistas.
- A onda de invasões agravou uma disputa de décadas por terras entre os povos indígenas e os colonos, que começaram a aparecer na região nos anos 1980 e desde então construíram aldeias, escolas e igrejas dentro da reserva.
- O povo Parakanã diz que os forasteiros, novos e velhos, estão poluindo suas fontes de água, esgotando os recursos florestais e ameaçando seu modo de vida tradicional.
No interior da Terra Indígena Apyterewa, Tye Parakanã acena em direção à exuberante floresta tropical que flanqueia seu vilarejo. Ao longe, uma tênue nuvem de fumaça sobe acima do dossel verde da Amazônia brasileira.
“Você vê esta floresta aqui? Atrás dela, estão todos os ranchos”, diz o líder indígena de 35 anos de idade, enquanto nosso barco a motor para à porta de sua aldeia, numa das margens do Rio Xingu. “Os madeireiros, os garimpeiros — eles estão dentro de nosso território. Eles cortaram nossas florestas, eles estragaram nosso rio.”
Situada no sul do Pará, a TI Apyterewa se estende por 773.820 hectares, ocupando uma parte do município de São Félix do Xingu, no coração pecuarista do Brasil. A área faz parte da Bacia do Xingu, um mosaico de 46 reservas que, juntas, formam um corredor ecológico valorizado pelos conservacionistas — e considerado uma barreira crucial contra o avanço do desmatamento.
Apyterewa foi demarcada em 2007, com o Governo Federal reservando-a exclusivamente ao uso do povo indígena Parakanã, que vive nesta fatia de floresta tropical há algumas gerações. Ainda assim, apesar de seu status de proteção, Apyterewa tem sido sistematicamente atacada nos últimos anos, com vários trechos de florestas devastados em grande velocidade.
Segundo dados da Rede Xingu+, rede de grupos ambientalistas e indígenas que monitoram o desmatamento na Bacia do Xingu, cerca de 30 mil hectares de floresta foram desmatados em Apyterewa entre janeiro de 2019 — quando o ex-presidente Jair Bolsonaro tomou posse — e setembro de 2022. Estima-se que o desmatamento na reserva bateu um novo recorde em 2022, com 8.189 hectares arrasados apenas nos primeiros nove meses do ano.
“Temos visto este aumento absurdo do desmatamento”, diz Thaise Rodrigues, analista do Instituto Socioambiental. “Não tenho dúvidas de que, no momento, a Apyterewa é a Terra Indígena mais desmatada da Amazônia.”
No total, a reserva perdeu cerca de 8% de sua cobertura arbórea entre 2007 e 2021, de acordo com dados da Universidade de Maryland visualizados no Global Forest Watch(ver imagem abaixo). Além disso, há sinais de que a destruição acelerou nos últimos meses: os satélites registraram 324.529 alertas de desmatamento entre 10 de agosto e 10 de dezembro de 2022, representando um salto de quase 82% em relação ao mesmo período do ano anterior.
A corrida para invadir o território se intensificou quando Bolsonaro, defensor da abertura das Terras Indígenas à exploração comercial, se preparava para deixar o cargo em 1º de janeiro, depois de perder a eleição para Luiz Inácio Lula da Silva, que prometeu combater o desmatamento. “Nós realmente vimos essa pressa de desmatar enquanto ainda havia tempo’”, diz Rodrigues.
Grande parte do desmatamento está sendo impulsionado pela especulação fundiária, com madeireiros, pecuaristas e garimpeiros ocupando o território na expectativa de que suas reivindicações de terras ilegais sejam reconhecidas no futuro, dizem os ambientalistas.
Em Apyterewa, as novas invasões estão agravando uma disputa já antiga por terras entre os Parakanã e invasores que há muito tentam reivindicar fatias da TI. Os cerca de 900 moradores indígenas dizem que o influxo de forasteiros está ameaçando os recursos florestais dos quais dependem, pondo em risco seu modo de vida tradicional.
“Estamos pedindo ajuda”, diz Tye. “Porque, para nós, nossa floresta é tudo”. É onde pescamos, é onde caçamos. E eles a estão destruindo.”
Histórico de invasão
Os forasteiros começaram a chegar em Apyterewa por volta dos anos 1980, atraídos pela abundância de mogno, árvore de grande valor, porém cujo corte é ilegal. Esses madeireiros construíram estradas clandestinas na selva, abrindo caminho para os garimpeiros que chegaram na região na década seguinte, em uma busca frenética por ouro. Com o tempo, alguns se estabeleceram na área ou venderam seus terrenos ilegais para novos colonos, que arrasaram enormes extensões da floresta para construir vilarejos, cultivar plantações e converter a mata em pastagens.
“Há uma história de ocupação ilegal em Apyterewa”, diz Rodrigues. “E isso estimula mais invasões”.
Em Paredão, um dos assentamentos mais antigos de Apyterewa, os vestígios da ocupação estão por toda parte. À medida que nosso caminhão salta ao longo da estrada de terra lamacenta, passamos por trechos carbonizados de floresta e garimpos, ladeados por poças turvas de águas residuais, manchadas de amarelo por mercúrio. Uma placa pintada à mão aponta o caminho para uma igreja evangélica a cerca de 10 quilômetros.
Dorcas Cruz, produtora de cacau de 55 anos, estava entre aqueles que compraram uma fatia de terra há mais de duas décadas. Ela insiste que, quando sua família chegou a Paredão em 2000, a Terra Indígena — e seus limites — estava sendo estudada, mas ainda não havia sido demarcada.
A família Cruz se estabeleceu em um terreno de 850 hectares, desmatando uma fatia de floresta para construir uma casa e plantar culturas alimentares. “Aqui era só mato, nada mais”, lembra-se ela. “Nós mesmos limpamos tudo isso”.
Porém em 2011, em uma das várias crises que revelaram ocupantes ilegais, agentes de fiscalização derrubaram e incendiaram a casa de sua família. Mesmo assim, sem ter para onde ir, Cruz voltou logo após o fim da incursão.
“Vivemos em uma tenda por três anos, bem ali”, diz ela, gesticulando para um lugar no pátio em frente ao elegante rancho que ela agora chama de lar. “Levou dois anos só para meu marido cortar a madeira para nossa nova casa”.
Cruz, como a maioria dos outros colonos aqui, se recusa a deixar a terra que sua família ocupa e os mais de 17 mil pés de cacau que ela diz ter plantado desde que chegou aqui em 2000. “Nós não somos grileiros de terras, não somos bandidos. Somos pioneiros”, desafia ela. “Esta não era Terra Indígena quando chegamos”.
Legalmente, pessoas como Cruz não têm o direito de permanecer em Apyterewa, diz o promotor federal Rafael Martins da Silva. “Não houve uma única decisão legal permitindo que estes ocupantes estivessem aqui”, diz ele. “O que nós temos é um cenário de ilegalidade.”
Casos como o dela têm colocado um grande desafio para as autoridades, pois enfrentam a perspectiva de remover as centenas de famílias que afirmam ter se estabelecido aqui de “boa fé”, muito antes de a TI Apyterewa ter sido estabelecida.
Agravando ainda mais a situação, alguns residentes de “boa fé” avançaram mais profundamente na floresta desde que chegaram, expandindo as áreas de ocupação, ao passo que outros colonos chegaram muito tempo depois da demarcação, criando novos assentamentos com a intenção de reclamar ilegalmente fatias da reserva, segundo Silva.
“Há um certo grau de confusão sobre quem está aqui de boa fé e quem está aqui de má fé”, diz o promotor Silva. “E é difícil expulsar as pessoas da terra que ocupam há décadas, sem causar um caos social completo.”
Falha em despejar
Ao longo dos anos, as autoridades têm tentado repetidamente remover intrusos da Apyterewa, com pouco sucesso. Em 2006 e 2011, as batidas militares conseguiram expulsar alguns dos invasores e realocar outros para um pequeno assentamento rural nas proximidades, criado pelo Governo Federal. Mas muitos, como Dorcas Cruz, voltaram assim que os agentes foram embora.
Em 2016, parecia que os Parakanã haviam finalmente vencido a batalha pelo direito à terra quando um tribunal ordenou a expulsão de todos os colonos não indígenas, como condição para a construção da hidrelétrica de Belo Monte, que fica a cerca de 300 km de Apyterewa, Xingu acima.
Sob o governo de Dilma Rousseff, a polícia começou a remover algumas das cerca de 2 mil famílias que ocupavam ilegalmente o terreno. Contudo, o processo logo parou em meio a desafios legais por parte dos colonos. Nos anos seguintes, sucessivos governos abandonaram em grande parte os planos de despejo das famílias que permanecem dentro da reserva.
“O governo tem a obrigação legal de remover esses ocupantes”, diz Eduardo Barnes, especialista em política indígena da The Nature Conservancy. “Mas já se passaram anos e ainda não se cumpriu essa decisão judicial.”
Um grande desafio tem sido determinar quais colonos de longa data têm direito à compensação e quanto devem receber. Uma fonte da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) diz que uma questão-chave permanece: para onde as autoridades irão alocar os milhares de pessoas que ocupam ilegalmente a reserva.
“Teremos que despejar as pessoas, não há outra maneira”, diz o agente, que falou na condição de anonimato, pois não estão autorizados a falar à imprensa. “Mas não se pode deixar as pessoas na rua. Elas voltarão”.
Invasões fora de controle
Como as expulsões têm atrasado, os forasteiros têm continuado a chegar em Apyterewa, construindo novas comunidades e avançando mais profundamente na reserva. Defensores dos direitos indígenas dizem que em breve poderá se tornar impossível remover os colonos, antigos e novos, à medida que suas ocupações se tornam mais consolidadas.
Com o desmonte de agências de fiscalização durante a gestão de Bolsonaro, a presença do Governo Federal em Apyterewa se desvaneceu, tornando mais fácil invadir a reserva, segundo ambientalistas. No ano passado, colonos dispararam tiros e incendiaram uma ponte perto de uma base da Funai, cortando o acesso para os agentes encarregados para monitorar a reserva.
“Não há controle sobre quem entra”, diz Barnes. “E a população desses assentamentos continua crescendo, buscando novos recursos naturais. Assim, a pressão sobre o território dos Parakanã continua a se intensificar.”
Conforme a destruição avança, os líderes Parakanã dizem que os recursos florestais que os sustentam estão se esgotando. Com o desaparecimento da mata em torno de suas aldeias, a caça selvagem se tornou mais difícil. Importantes gêneros alimentares, como a castanha-do-brasil, estão desaparecendo à medida que os madeireiros arrasam árvores centenárias em busca de madeira. Os indígenas responderam criando novas aldeias em locais estratégicos, numa tentativa de impedir que os invasores avancem mais para dentro da reserva.
O cacique Taturarua Parakanã diz que sua comunidade está lutando para evitar que os garimpeiros se aproximem mais de Ka’até, uma nova aldeia que ele criou no ano passado em Apyterewa, onde a apropriação de terras está tomando grandes proporções.
“De onde estamos, podemos ouvir o motor do garimpo funcionando a noite toda”, diz ele. “Temos medo, não podemos dormir à noite. Não podemos mais beber a água”. Os peixes estão morrendo, as piranhas, os jacarés — tudo está morrendo.”
Taturarua diz ter enfrentado ameaças de morte de fazendeiros e garimpeiros que procuravam reivindicar a área. Mas ele, junto com cerca de uma dúzia de outros, está firme.”Há tantos garimpeiros tentando tomar conta de nosso território. Mas eu não vou deixá-los”, diz ele. “Estamos lá para impedi-los de invadir”.
Apesar desses esforços para impedir as invasões, moradores indígenas têm enfrentado dificuldades para deter a usurpação frenética de suas terras. “Os Parakanã não têm gente suficiente para ocupar todo o território”, diz o agente da Funai. “Portanto, a menos que despejemos todos os invasores e os indígenas criem aldeias em cada entrada, as pessoas continuarão a invadir.”
Incerteza à frente
O futuro da TI Apyterewa foi colocado em questão em 2020, quando a Supremo Tribunal Federal abriu as portas para negociações entre a comunidade indígena e os colonos ilegais sobre uma possível redução dos limites da reserva.
As negociações controversas foram recebidas com entusiasmo pelas autoridades locais em São Félix do Xingu, que há muito tempo estão ao lado daqueles que ocupam ilegalmente a reserva. Enquanto isso, funcionários federais de Brasília viajaram quase 1.600 km para mediar uma reunião entre os colonos e os Parakanã.
O ex-presidente da Funai, Marcelo Xavier, também deu seu apoio à redução da reserva de Apyterewa, atraindo fortes críticas de grupos de direitos indígenas, que advertiram que o movimento sem precedentes abriria as portas para ataques a outras reservas demarcadas.
Os Parakanã disseram inicialmente ao Supremo Tribunal que tinham concordado em ceder 392 mil hectares de seu território aos colonos. Mas os líderes comunitários mais tarde recuaram, dizendo que foram pressionados ou enganados no acordo preliminar.
Alguns moradores indígenas disseram à Mongabay que lhes foram oferecidos informalmente 400 milhões de reais para desistir de mais de 50% de suas terras, embora a documentação oficial apresentada às autoridades não faça menção a um acordo financeiro.
Após meses de conversações sem sucesso, um juiz arquivou o processo de negociação e, em março de 2022, o tribunal levantou uma suspensão temporária das expulsões. Mas, segundo o promotor Silva, atualmente não há prazo para remover as pessoas de fora, diz Silva. “Por enquanto, estamos tentando impedir mais invasões”, diz ele. “E estamos abrindo um diálogo com aqueles que estão ocupando ilegalmente a terra, tentando fazê-los entender que uma saída é necessária e inevitável.”
Ainda assim, os colonos não perderam a esperança. Cruz diz que sua comunidade pediu à Funai para rever sua análise original da reserva, argumentando que os limites da TI Apyterewa foram traçados muito além da área que tradicionalmente pertencia ao povo Parakanã.
Os Parakanã, por sua vez, dizem ter abandonado os planos de fazer um acordo com os invasores e agora exigem que as autoridades removam todos os colonos de Apyterewa, protegendo seu direito a suas terras ancestrais. “Não há mais como dividir nosso território”, diz Taturarua. “Nós os queremos fora, e queremos nossas terras de volta.”
Texto publicado originalmente em MONGABAY
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