Ailton Krenak reflete sobre o crescimento de políticas excludentes e anti-indígenas no Brasil ao longo dos anos, os perigos do avanço do agronegócio na Amazônia e como a comunidade intelectual brasileira precisa valorizar seus pensadores indígenas.
Professor, poeta, escritor, filósofo, defensor do meio ambiente. Dono de muitas facetas, o líder indígena Ailton Krenak, 69, é sem dúvida um dos mais instigantes pensadores brasileiros de todos os tempos. Aclamado mundialmente por sua luta pelos direitos humanos e ativismo socioambiental, o mineiro nascido na região do Vale do rio Doce tomou posse na última sexta-feira (3) como o mais novo membro da Academia Mineira de Letras (AML). A cerimônia teve um peso histórico, já que foi a primeira vez que um representante dos povos originários assumiu uma cadeira em academias no país.
Em bate-papo exclusivo com o Magazine, Ailton Krenak reflete sobre o crescimento de políticas excludentes e anti-indígenas no Brasil ao longo dos anos, os perigos do avanço do agronegócio na Amazônia e como a comunidade intelectual brasileira precisa valorizar seus pensadores indígenas.
Sua entrada na Academia Mineira de Letras (AML) simboliza um marco importante para os povos originários no que se refere à amplitude indígena em diversas esferas da sociedade. E, nesse sentido, falamos também do aspecto político, com a criação do Ministério dos Povos Originários (que conta com uma ministra indígena), além da eleição para a Câmara dos Deputados de indígenas com uma votação relevante, caso da Célia Xakriabá. Como o senhor enxerga esse momento, digamos social, dos povos originários na sociedade brasileira?
A experiência que nós estamos vivendo nos últimos 10 anos do Brasil aponta para uma espécie de crise generalizada na relação do Estado com a sociedade. A gente teve um governo que até dezembro de 2022 mandava matar os índios. Agora temos um governo novo que quer proteger os direitos indígenas, inclusive criando ministérios, pondo uma pessoal como a Joenia Wapichana para dirigir a Funai – órgão que no passado sido transformado em uma agência criminosa contra a floresta e a vida dos indígenas.
É claro que não vai ser de uma hora para a outra que a Funai vai se transformar numa entidade responsável e competente para cuidar de questões tão graves, como por exemplo, o genocídio yanomami que está em curso. O governo Lula também criou o Ministério dos Povos Originários, que ainda está sendo equipado e estruturado. Mas o ato de criação não serve para bater a mão no ombro e dizer: ‘Pronto, temos um o Ministério dos Povos Originários’. É preciso dar condições de governança para que a ministra possa atuar de fato.
Torço para que isso aconteça, pois só assim vamos ter um sinal de quase que ruptura do anúncio de morte para os povos indígenas para uma nova fase, com uma declaração de respeito e de vida. Isso pode significar uma mudança da água para o vinho, pois sairíamos de uma situação de ameaça de extinção e genocídio para uma de reconhecimento. Mas acho que ainda é muito cedo para celebrarmos, afinal, a gente só tem dois meses de governo até agora. Vamos esperar para ver o que realmente acontece.
Sua ingressão na AML é um marco significativo, pois o senhor é o primeiro representante dos povos originários a se tornar Imortal na história do Brasil. Na sua opinião, o que a comunidade intelectual brasileira pode aprender com os povos originários?
Eu acredito que essa atenção da Academia Mineira de Letras em sinalizar para a produção cultural, intelectual e também para a literatura indígena vai influenciar decisivamente para que outros espaços como esses acolham escritores indígenas que estão em regiões distintas do país, como o Pará e o Amazonas, por exemplo. É importante frisar que não é só aqui em Minas que temos autores indígena, eles estão em todo o Brasil. Felizmente, nos últimos 20 e 30 anos, cresceu muito a expressão dessa literatura indígena.
Temos bons autores indígenas, inclusive, publicando fora do país como o Daniel Munduruku, que tem cerca de 52 obras no mercado. No ano passado, inclusive, ele se inscreveu para disputar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Outro escritor de respeito é o Olívio Jecupé, que é guarani e que tem mais de 30 livros publicados e traduzidos para o italiano, inglês, francês e castelhano. Isso mostra a força dos autores indígenas que nós temos. O que espero, sinceramente, é que esse reconhecimento não fique concentrado somente na apreciação da minha biografia e produção, mas que se amplie para outros intelectuais indígenas.
O senhor sempre apontou em suas análises que somos uma sociedade construída a partir da invasão, terror e extermínio. E, ao que parece, seguimos nessa linha ao longo dos mais de 500 anos de história. Acha possível transformar essa realidade a partir de medidas reparatórias? Se sim, quais seriam essas medidas?
Há algum tempo se discute a reparação, inclusive com diferentes contornos, da história colonial da América – algo que chegou a tomar forma em países como o Canadá e os Estados Unidos. Aqui no Brasil não vingou essa discussão. A gente ainda não produziu mudanças jurídicas, por exemplo, que avancem no campo da reparação histórica. É importante dizer que a criação dos Ministérios pelo governo Lula, a atribuição de cargos no Executivo para pessoas indígenas, não é uma reparação.
Porque se você mudar o governo, pode chegar ali na frente alguém que bote todo mundo para fora e continue invocando uma política colonialista, predatória e segregacionista. No Brasil nunca tivemos uma mudança como a que aconteceu na África do Sul, por exemplo, quando o Nelson Mandela virou presidente da república. Aqui a gente teve uma alternância de governo: um era fascista e agora o outro reivindica o respeito à Constituição e à democracia. Meu conselho sobre isso é bem prático: é preciso ir devagar com o andor porque o santo é de barro.
Isso, aliás, ficou bem claro no governo Bolsonaro, que propagou políticas anti-indígenas e deu força para o agronegócio promover a destruição ambiental. Quais os desafios que o novo governo tem pela frente para reverter todo esse estrago?
O desafio é imenso. O seu próprio enunciado ai já deixa claro que pegamos uma terra arrasada. A sociedade e o governo atual agora tem muita coisa para fazer. Por isso eu volto a dizer: tudo. Vamos precisar recuperar, inclusive, o aparato estatal que foi destruído, pervertido, transformado em máquina de guerra, escritório de ódio e crime organizado. Eu espero também que essas pessoas que arruinaram o país não fiquem impunes, mesmo que estejam escondidos no momento lá na Disneylândia.
Para o senhor, é possível conciliar os interesses do agronegócio com o direito dos povos indígenas?
O agronegócio é irreconciliável com o meio ambiente. Ele droga o solo e a longo prazo vai transformar o Cerrado em um deserto. Não tem conciliação com um crime desses. Essa história agora de que tem um agro bom e um mau não passa de conversa fiada. O agronegócio usa uma lista de químicos que envenenam o solo e que no futuro vai nos impedir de tirar qualquer coisa de lá que não seja envenenada. Então, bom apetite para quem gosta de comer veneno.
Embora esteja comumente ligado à noção de sustentabilidade, o senhor sempre foi um crítico obstinado desse conceito. Acredita que o discurso da sustentabilidade no capitalismo não passa de um grande sofisma?
Tem um biólogo com quem eu gosto de discutir questões amplas como as de mudança climática e regeneração de ecossistemas, que se chama Fábio Scarano. Autor de ‘Regenerantes de Gaia’, que é uma obra fundamental sobre o tema, o Fábio diz que a ideia de sustentabilidade não passa de um puxadinho do capitalismo. Depois que as grandes empresas devoram o solo, as montanhas, a paisagem, eles vem com a conversa fiada da sustentabilidade. Para mim, isso é igual a um prédio onde não cabe mais ninguém e ai começam a fazer obras anexas para enfiar mais gente lá.
Só que nesse caso, o tal puxadinho está sendo sendo feito em um planeta que está em crise climática e que tem gente morrendo pelas beiradas. A ideia de sustentabilidade só é oportuna para as corporações que depois de esgotar o bens do planeta, criam histórias de crescimento sustentável. Com essa ladainha, eles enganam muita gente e passam a ilusão de que tem gente consciente interessada em cuidar da Terra. Na verdade, o consumo excessivo continua e os nossos rios seguem delegados, nosso solo doente e as montanhas desaparecendo da paisagem. Se você estiver em Minas Gerais, é só olhar ao redor para ver como as montanhas estão desaparecendo.
Sim, e nos últimos quatro anos, o Brasil retrocedeu drasticamente no combate contra a catástrofe climática. Qual exatamente deve ser o papel do país para conter o avanço do aquecimento global?
O Brasil é considerado um país mega diverso, principalmente porque aqui temos ecossistemas como o Cerrado, a Mata Atlântica, a Amazônia e o Pantanal. Só que em alguns momentos, o Brasil surta e bota fogo no Pantanal, detona com a Mata Atlântica e destrói a floresta amazônica. Apesar de toda essa diversidade, se continuarmos nesse ritmo, vamos acabar virando um deserto. Por enquanto, o Brasil ainda tem um certo prestígio internacional – ou melhor, está recuperando. Ainda vamos para a conferência do clima e discutir algumas coisas relevantes.
Agora, o presidente Lula está liderando uma discussão importante sobre clima, por exemplo. Mas não podemos superestimar nosso papel enquanto nação no que diz respeito ao clima. Nós sabemos o que acontece por aqui, e essa coisa de botar fogo nas florestas está causando mudanças na qualidade de vida mundo afora, em países como o Tibet, por exemplo, ou até mesmo descongelando outras regiões do planeta. Então, é preciso encarar a questão climática não como algo regional, mas planetária. Se todo mundo entender que precisamos ter uma equação e participação de todos, a gente pode diminuir esse dano. Caso contrário, como diz o António Guterres, Secretário Geral da ONU, seguimos marchando a passos largos para o inferno.
Depois de anos de retrocesso no que diz respeito aos direitos dos povos e populações indígenas, dá para se ter alguma esperança no atual momento que o Brasil vive?
Já abordamos isso aqui nessa conversa, mas vale repetir: as mudanças são tão circunstâncias e ocorreram em um período tão curto, que é preciso, primeiramente, ver o que vai acontecer antes de achar que vamos virar um paraíso tropical de uma hora para a outra. Ainda está muito cedo para isso.
Fonte: O Tempo
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