Soltura das aves, extintas da natureza por degradação ambiental e tráfico, é associada à recuperação da Caatinga, alvo do desmate e da desertificação
Previstas para começar em meados de junho, as solturas de espécimes que podem devolver a ararinha-azul ao sertão baiano acontecerão em áreas protegidas próximas de uma planejada usina eólica, com dezenas de turbinas. A liberação das aves é ligada à recuperação da Caatinga, bioma exclusivo do país, alvo do desmate e da desertificação e carente de maior proteção oficial.
A ararinha-azul (Cyanopsitta spixii) foi extinta da natureza em 2000, por desmate, caça e tráfico. Um primeiro grupo criado em cativeiro deve ser liberado num refúgio de vida silvestre em Curaçá e Juazeiro, na Bahia, em 11 de junho. A reserva é rodeada por uma área de proteção ambiental, também federal. Somam juntas 1.200 km2, cerca do dobro da área da capital Salvador.
Na vizinhança das reservas, a Voltalia quer gerar 288 Megawatts no Complexo Eólico Serra da Borracha. Suas 48 turbinas serão distribuídas em “linhas retas orientadas principalmente na direção Norte-Sul” em 6 parques apartados, mostra o Plano para Levantamento de Fauna Silvestre do projeto. Do local, linhões de alta potência levarão eletricidade a centros consumidores.
Diretor da Sociedade para a Conservação das Aves do Brasil (Save), Pedro Develey vê “grande incoerência” numa possível usina eólica na região onde serão soltas as ararinhas, que voam até 50 km para comer e se reproduzir. Distância suficiente para vencer os limites das áreas protegidas. “Os animais são ainda mais frágeis porque virão de cativeiro, precisarão aprender a viver livres”, apontou.
“É necessário diminuir ao mínimo as ameaças às aves, não aumentar riscos. Há grande chance de que morram topando com geradores ou fios [se a usina for construída], prejudicando grandes esforços e recursos investidos na sua reintrodução”, ressaltou Develey, biólogo e doutor em Ecologia pela Universidade de São Paulo.
As reservas que receberão as aves são cortadas pela rodovia BA120. No Atlas Eólico da Bahia, Curaçá e outros municípios do norte estadual têm alto potencial para gerar eletricidade com os ventos. Pela região, também cruzam linhões desde a Hidrelétrica Luiz Gonzaga, em Petrolândia (PE).
Chancelado no governo Dilma Rousseff, o Plano de Ação Nacional para Conservação da Ararinha-azul descreve que a reintrodução de uma fêmea em 1995 fracassou porque a ave teria morrido justamente em fios de alta tensão. O acidente ocorreu na mesma Curaçá, alvo da usina eólica Serra da Borracha.
Parte da coordenação do movimento Salve as Serras, Andreza Oliveira avaliou que a usina pode replicar impactos como os projetados para outra obra da Voltalia, em Canudos (BA), a 180 km de Curaçá. No local, previstas 81 turbinas cujo giro das pás terá 160 metros de diâmetro assombram a arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari), também em risco de extinção, mostrou O Eco.
Desde 2018, ao menos 50 araras-de-lear morreram por choques na fiação da Companhia de Eletricidade da Bahia (Coelba), em Jeremoabo, Euclides da Cunha e outros municípios. “Não tem como adestrar as araras para que mudem suas rotas de voo. A energia eólica é tida como limpa, mas projetos em locais inadequados prejudicam comunidades tradicionais e matam nascentes”, criticou Andreza.
A usina eólica de Canudos teve licenciamento simplificado do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema), sem estudos prévios de impacto ambiental (EIA). Em 2021, o Ministério Público Estadual recomendou sua suspensão por “impactos irreversíveis para a fauna e comunidades tradicionais”. Entidades civis denunciaram que 600 famílias terão vidas afetadas pelo projeto. Todavia, a usina deve ser finalizada em agosto.
“Essas autorizações precárias [de usinas eólicas] abrem precedentes para que mais projetos para geração de energia sejam licenciados em áreas ambientalmente sensíveis. Há muitos locais favoráveis à produção de energia na Caatinga longe de espécies fortemente ameaçadas”, criticou Pedro Develey, da Save.
A Voltalia não aceitou nosso pedido de entrevista. Por email, sua assessoria de imprensa afirmou que a “empresa está avaliando a região [de Curaçá] e tem realizado diversos estudos, razão pela qual não há como responder questionamentos referentes a projetos em andamento”. O Inema autorizou pesquisas regionais de fauna pela empresa, até fevereiro de 2024. O órgão também não concedeu entrevista.
Sobre o complexo de Canudos, a Voltalia disse ter “todas as licenças” para o parque e programas de proteção da arara-azul-de-lear alinhados ao Plano de Ação Nacional para a Conservação das Aves da Caatinga, do ICMBio. Afirmou, ainda, que realiza “estudos para avaliação e monitoramento de potenciais impactos na região, com propostas de ações de controle e preservação do bioma”.
A empresa tem outros projetos eólicos em localidades como São Miguel do Gostoso e Serra Branca, no Rio Grande do Norte, além de negócios com produção, venda e distribuição de energia no Brasil e no Exterior. A Voltalia e marcas como Decathlon e Leroy Merlin são ligadas à família Mulliez, uma das mais ricas da França.
Voos da esperança
As 8 primeiras ararinhas-azuis que alçam voo em junho integram um grupo de 52 aves que chegou em março de 2020 no Aeroporto Internacional de Petrolina (PE). Elas vieram em dois voos fretados desde criadouros regulares na Alemanha e na Bélgica. Desde então, foram adaptadas à vida na Caatinga, em Curaçá. Duas morreram. As demais devem se reproduzir em cativeiro e assegurar novas solturas.
“A liberação será gradual para aumentar as chances de adaptação das aves à oferta de alimentos e outras características sazonais de seu ambiente natural. Por terem hábitos semelhantes, maracanãs serão soltas com as ararinhas, pois uma espécie pode ensinar a outra a sobreviver na Caatinga”, explicou Camile Lugarini, coordenadora do Programa de Cativeiro da Ararinha-azul junto ao ICMBio.
As aves serão monitoradas com transmissores e vistorias de campo ao menos por um ano após as solturas. Serão coletados dados sobre movimentação, alimentação e reprodução para qualificar novas liberações. Também se deve atentar a predadores, uma grande ameaça às ararinhas e outros psitacídeos, destacou a doutora em Veterinária pela Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Adultos são vítimas de aves de rapina. Ovos e filhotes são alvo inclusive de gambás, cobras e saguis. Pessoas também ameaçam a espécie. “As ararinhas desapareceram sobretudo pela agropecuária e queima da Caatinga, mas também pelo tráfico. Há relatos de aves chegando a colecionadores na Europa desde o início do Século XX”, descreveu Lugarini.
Ao mesmo tempo, moradores da região comemoram a volta das aves e projetam melhorias econômicas com o turismo em torno das ararinhas. Postos de combustível, churrascarias e marcas de roupas já adotaram nome e cores da espécie. Cenários positivos numa das regiões mais pobres do país.
Antigo “vaqueiro de ararinhas”, guia de turistas brasileiros e do exterior para avistamento das aves, Antonio Marçal (74), o Toinho dos Prazeres, usa madeiras regionais como amburana para dar forma a espécies da Caatinga. A produção é vendida em feiras locais e regionais.
“Conhecia vários locais onde a ararinha ficava. Todo mundo foi atrás quando ela sumiu, mas ninguém a encontrou. Sua volta será muito boa para toda a região, para a natureza e as pessoas”, confiou Marçal, ligado à Sociedade dos Vaqueiros de Curaçá.
Mais verde na mata branca
Coordenador do Núcleo de Ecologia e Manejo Ambiental da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Nema/Univasf), Renato Rodrigues explicou que a reintrodução das ararinhas depende das condições ecológicas dos locais de soltura. A ave usa plantas distintas para se alimentar, descansar e construir ninhos.
Por isso, instituições públicas de ensino e pesquisa uniram forças em 2021 para recuperar ao menos 200 hectares degradados, dentro e no entorno das áreas protegidas onde as aves ganharão liberdade. Metade da restauração mira margens de rios permanentes ou temporários, que correm apenas nas chuvas.
“Estamos aumentando as chances de sobrevivência das aves que serão soltas e de várias outras espécies, que igualmente dispersarão sementes das plantas das quais se alimentam, reforçando a recuperação da Caatinga [mata branca em tupi-guarani]”, destacou Rodrigues, professor e pesquisador na Univasf.
As duas áreas que abrigarão as ararinhas foram alvo por muitos anos da criação de gado, desmatamento e mineração descontrolados. As reservas aceitam moradores em seu interior. Conforme a Univasf, cerca de 80% do território têm algum tipo de degradação – 7% severa.
Outras ações como barragens convencionais e subterrâneas aumentarão a oferta de água para consumo e produção, no campo e na cidade. Também serão incentivados Sistemas Agroflorestais, onde árvores exóticas ou nativas dividem espaço com a agricultura.
“A recuperação da Caatinga é conservacionista e humana. Vai melhorar a vida das populações. Não adianta ter a ararinha solta e pessoas vivendo em miséria na região”, destacou Rodrigues, da Univasf.
Análise do MapBiomas apontou que a Caatinga está ainda mais seca desde 1985. No período, a agropecuária tomou 15 milhões de ha de vegetação primária, área semelhante à do Ceará. O desmate atingiu inclusive 112 municípios (9% dos da Caatinga) com grandes chances de se tornarem desérticos.
Áreas oficialmente protegidas por governos somam apenas 9% do bioma. Menos de 3% são de “Proteção Integral”, como parques nacionais, onde a presença humana é restrita.
O Inema não atendeu aos nossos pedidos de entrevista até o encerramento da reportagem. A Voltalia tem outros projetos eólicos em localidades como São Miguel do Gostoso e Serra Branca, no Rio Grande do Norte, além de negócios com produção, venda e distribuição de energia no Brasil e no Exterior.
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