As lutas e o aprofundamento de debates sobre a discriminação resultaram no reconhecimento público da existência do racismo no Brasil, o que possibilitou o estabelecimento da Lei 10.639/03
Por Antonio Carlos Quinto e Camilly Rosabony – Jornal da USP
No dia 20 de novembro de 1995, uma marcha que reuniu cerca de 300 pessoas em Brasília marcou os 300 anos, à época, da morte de Zumbi dos Palmares, em Pernambuco.
A marcha exerceu grande influência no direcionamento da luta contra o racismo no Brasil, possibilitando o aprofundamento de debates sobre a discriminação. Estava caindo por terra o mito da democracia racial brasileira, forçando o reconhecimento público da existência do racismo.
Certamente, muitos caminhos e trilhas percorridos pelos movimentos negros foram pavimentados por lutas persistentes e incansáveis até que, na década de 1990, foi aprovada a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação Nacional. Em sua Lei 9.394/1996, no Artigo 26º, parágrafo 4º, diz que o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia. “Era preciso instituir o protagonismo indígena e negro e deslocá-los do contexto colonial para um contexto contemporâneo diverso, complexo e fundamental para a cultura nacional”, afirma Flávia Rios, pesquisadora em Sociologia na USP.
Em 2003, essa diretriz foi alterada pela Lei 10.639/2003, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas. “A alteração da LDB, que foi a 10.639, vem para tornar complexa essa discussão. Quando o texto é obrigatório, o povo dá um aspecto mais sério”, afirma a professora Míghian Danae, pesquisadora em Educação da USP e professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), uma instituição federal que integra as nações formadoras da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), como a África.
Em 2004, expandiu-se a Lei 10.639, levando a obrigatoriedade do ensino étnico-racial até o nível superior, pelo seguinte parecer: Parecer CNE/CP 003/2004, de 10 de março de 2004
Art. 1° – A presente Resolução institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a serem observadas pelas instituições de ensino de Educação Básica, nos níveis de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Educação Média, Educação de Jovens e Adultos, bem como na Educação Superior, em especial no que se refere à formação inicial e continuada de professores, necessariamente quanto à Educação das Relações Étnico-Raciais; e por aquelas de Educação Básica, nos termos da Lei 9394/96, reformulada por forma da Lei 10639/2003, no que diz respeito ao ensino sistemático de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, em especial em conteúdos de Educação Artística, Literatura e História do Brasil.
Já em 2008, reforça-se o ensino da cultura dos povos indígenas, com a Lei Nº 11.645, de 10 março de 2008. “Para pensar uma educação democrática, que contemple as diretrizes étnico-raciais, isso [Lei 10.693] tem que ser um pilar pedagógico do País de uma maneira geral”, afirma Maurilane Biccas, professora da Faculdade de Educação (FE) da USP e integrante do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História Educação (NIEPHE), um grupo que orienta pesquisas acadêmicas no ramo da educação. “A gente tem que estar conectado com questões do presente que nos remetem ao passado, para entendermos como o objeto de estudo vai sendo produzido no tempo e no espaço”, pontua Maurilane.
Aplicação da Lei
O contexto de execução da Lei 10.639 começou bastante incipiente. Os educadores que já atuavam em salas de aula, em meados de 2003, sentiram uma carência de formações educacionais que mostrassem como integrar os assuntos da cultura afro-brasileira e africana dentro e fora da sala de aula. “Antes da Lei de 2003, as pessoas achavam que, se você falasse do Dia do Índio e do dia 13 de Maio (abolição da Escravatura no Brasil), estavam cumprindo seu papel. Tem muita gente, ainda hoje, que pensa isso”, lamenta Míghian. “Não é uma festa. Agora é preciso colocar no currículo e no projeto político-pedagógico”, observa Flávia.
Eduardo Januário, além de pesquisador da USP e parte integrante do projeto Marcadores Sociais das Diferenças, junto à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP, foi diretor de escola no limiar da aplicação da Lei 10.639. Para ele, nesse período, a sua maior dificuldade era mostrar a importância da Lei dentro das escolas. “Um dos maiores enfrentamentos que eu tive enquanto diretor de escola foi tentar demonstrar para aqueles professores que nunca tinham sido formados, com essa conversa de educação para as relações étnico-raciais, que o negro estava lá sub-representado como escravo”, explica ele.
Muitos cursos de níveis superiores precisavam dessa abordagem. “Como a gente ia colocar em prática se as graduações ainda não tinham essa formação?”, questionou Míghian, em meados de 2003, quando finalizou sua graduação em Pedagogia. “Professores que foram formados antes de 2003 podem não saber dessa discussão”, afirma Januário.
De modo geral, quem fornecia as capacitações aos professores eram os próprios educadores que tinham mais conhecimentos na temática racial dentro da sala de aula. “Meu professor trazia pessoas negras que estavam nas universidades, produzindo conhecimento sobre aquelas temáticas”, conta Míghian sobre sua formação em Pedagogia na Universidade do Estado da Bahia (UEB). Anos depois, a própria pesquisadora passou a fazer as capacitações de professores. “Eu comecei a receber convites para fazer formação porque o mestrado e o doutorado foram nessa área da legislação, desde uma consultoria específica para escrever um texto a pessoas que vão ministrar um curso sobre isso”, expõe Míghian.
Em sua tese de doutorado, intitulada Mandingas da Infância: as culturas das crianças pequenas na escola municipal Malê Debalê em Itapuã, Salvador (BA), assim como na dissertação de mestrado intitulada Histórias de Ébano: professoras negras de Educação Infantil da cidade de São Paulo, Míghian trata da Lei 10.639. “A legislação aparece como um suporte teórico. Ela justifica o porquê de ser importante ouvir as professoras e crianças negras”, explica.
Formação de professores
Ainda que as formações educacionais dos professores tenham sido singelas na totalidade do País, cada região teve ações diferentes diante do cumprimento da legislação.Para Míghian, seu contato com a Lei se deu principalmente por ela estar em São Paulo, um dos polos de desenvolvimento do País, durante sua aplicação. Da mesma forma, para Januário. “Se a gente sair da cidade de São Paulo, tem poucas iniciativas com dinheiro público que banquem a formação dos professores”, afirma ele. “Todos os municípios foram obrigados a agregar essa lei à sua legislação interna, mas o prefeito não tendo verba para a formação de professores deixa isso de lado”, complementa o pesquisador.
Em 2010, Denise Carreira, professora da FE e integrante da rede internacional de ativistas do Fundo Malala, organizou o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, com o objetivo de fomentar condições adequadas para a formação dos profissionais de educação.
“O que acontecia, e acontece ainda hoje, é que, muitas vezes, os sistemas consideram implementar a lei garantindo uma palestra aqui e uma oficina ali”, afirma a educadora. “Então, o que o Plano Nacional de implementação da 10.639 queria é a nossa obsessão: um processo que, de fato, possa institucionalizar e enraizar a Lei nas escolas e nos sistemas de ensino”, complementa, citando como exemplo o acompanhamento do trabalho dos professores, a criação de secretarias de diversidade étnico-racial e formações com quantidades de horas preestabelecidas.
Em 2016, Denise elaborou, junto ao Ministério da Educação e a Ação Educativa, a Coleção Educação e Relações Raciais: apostando na participação da comunidade escolar, uma metodologia de autoavaliação participativa que reuniu escolas para avaliar a implementação da Lei 10.639. “É uma metodologia formativa porque ela contribui para reeducar esses olhares. Ela tem por objetivo gerar um diagnóstico pactuado na comunidade”, afirma a professora.
A formação se baseia em determinadas dimensões: relacionamentos e atitudes, o currículo escolar, a formação docente, a gestão democrática, a relação com o território e outras mais. “A metodologia sensibiliza a comunidade e cria um compromisso, não só com o diagnóstico, mas com um plano de ação”, complementa. Em 2023, a educadora pretende retomar essa metodologia em comemoração aos 20 anos de implementação da Lei 10.639.
Em setembro de 2022, Denise organizou a pesquisa Educação, Valores e Direitos, junto à Ação Educativa e o Cenpec. O estudo revelou que a maior parte da população brasileira entende como fundamental discutir racismo nas escolas. “Então, você tem um avanço de uma consciência social”, afirma a pesquisadora.
Texto publicado originalmente em JORNAL DA USP
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