Há 37 anos a pesquisadora estuda e protege a harpia, a águia mais poderosa das Américas
Por Paulina Chamorro | Fotos: João Marcos Rosa
A nona personagem do projeto Mulheres na Conservação nos recebeu na Mata Atlântica, em maio de 2022. Tânia Sanaiotti, pesquisadora do INPA – Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, é a maior referência na pesquisa e conservação do gavião-real, a imponente harpia, a águia mais poderosa das Américas. Ela trabalha há 37 anos no bioma amazônico principalmente, além de outros biomas brasileiros.
Em 1997 começou monitorando o primeiro ninho, e, em 2022, vê o Projeto Harpia completar 25 anos de estudo e atuação pela proteção desta ave. “Tento contribuir com o conhecimento para auxiliar nas tomadas de decisões para a conservação desta espécie no Brasil”, nos contou depois de quatro dias monitorando a possível nascimento de um filhote em um ninho da Mata Atlântica, na Reserva Biológica de Sooretama, no Espirito Santo.
Estivemos com a pesquisadora e a equipe do Projeto Harpia esperando ansiosamente que a mãe harpia sinalizasse alguma resposta sobre o ovo que estava no enorme ninho. A notícia de um novo filhote, em um ninho natural, seria uma conquista para a espécie neste bioma. Infelizmente, soubemos depois que o ovo não vingou.
Mas a Tânia e os demais integrantes da equipe não desanimam. Como ela me disse em conversas, a “conservação é a busca dessa linha tênue entre manter as comunidades vegetais e animais para gerações futuras e a convivência com o ser humano.” E o trabalho segue.
Confira abaixo trechos da conversa com Tânia Sanaiotti:
Paulina: O que que é ser uma mulher na conservação? Uma mulher que trabalha pela conservação, com conservação de espécies?
Tânia: Eu vejo como uma idealista, uma pesquisadora, uma investigadora, buscando entender esse projeto para uma espécie, mas com tantas outras espécies que eu já trabalhei. E sinceramente eu não vejo assim uma mulher, né? Eu vejo um ser ali tentando descobrir e fazer a diferença e avançar, continuar puxando aquele caminhãozinho.
Paulina: Como a harpia contribui para as próximas gerações ou pro planeta?
Tânia: Sendo um predador de topo de cadeia, sua maior ameaça ou única é o homem. Onde tem harpia, é um indicador de qualidade de floresta, então ainda que possa estar num tamanho pequeno, aquela floresta tem boa qualidade porque tem presa para ela estar sobrevivendo e procriando. Aí entra o trabalho na conservação, para que a harpia continue mantendo a sua função, para que o tamanho que chegou esse fragmento não diminua mais.
A harpia se alimenta principalmente desses folívoros, arborícolas. Estima-se que se desaparecesse a harpia, você teria um aumento da população dessas espécies e poderia ter um desbrotamento, uma defloração, um consumo muito maiores dos brotos ou dos botões de árvores, o que ia causar um impacto no dossel da floresta.
Tem também o lado simbólico. Ela é a mãe da natureza para várias etnias no Brasil. Ela é o sol para os sateré-mawés, por causa do desenho que o disco facial faz e eles a consideram como o sol. Então, a harpia tem um papel para eles de muito respeito, enquanto ela ali, é claro que também tem o simbolismo caça para ter a pena, fazer um cocar na iniciação ou poder ser um bom caçador etc. Mas acima de tudo, por exemplo, nos aymore tumari, a garra é colocada na cabeça porque este vai ser um grande guerreiro. Então tem a energia que passa de uma harpia para um indígena, isso dentro dessa parte de visão cósmica do indígena. E dentro do ponto de vista de uma floresta, ela contribui para manter uma floresta em equilíbrio.
Paulina: Você falou da cosmovisão indígena e eu lembrei da Queda do Céu. Proteger a harpia seria evitar a Queda do Céu.
Tânia: Isso, acho que é uma das visões também. Vejo uma outra que coordena o projeto fora do Brasil, no Equador, em que a ave onde está o ninho é sagrada para os indígenas. Então antes do escalador subir, ele faz uma oração junto com o indígena, antes de acessar onde que é o céu da harpia.
Paulina: Quando foi a primeira vez que viu a harpia?
Tânia: Ver a primeira harpia no mato demorou muito. A primeira vez que vi a harpia, então foi já na década de sessenta, tinha harpia taxidermizada, eram uma loja de venda de armas de fogo. Tinha uma vitrine, uma onça pintada e uma harpia em cima de um veado. Eu tinha uns seis anos, era a primeira vez que vi um animal tão grande. Assim, apropriado e matado um ou outro e é uma cena inesquecível. E a onça também do lado. E a harpia era tão grande quanto a onça. E parecia as duas tão feroz quanto, pela idade.
Depois na adolescência, nos anos 1970, tinha um zoológico na minha cidade e chegou do interior uma harpia, naquela época dos anos 70. Aí eu a vi numa jaula, demorou muitos anos para ter um recinto e onde ela podia voar. E muitos anos depois já na biologia, eu quis trabalhar, fiz estágio, e quis fazer um projeto para melhorar as condições do recinto para a prefeitura. Tinha essa preocupação de adequar um animal que está em cativeiro para uma qualidade de vida maior. Então gastei um tempo aprendendo também do recinto, altura, espaço, para vários animais do zoológico, mas também da harpia.
Mas foi só depois que terminei a faculdade que eu vim pra Amazônia fazer meu mestrado no INPE. Aí sim que eu fui para uma floresta, subi numa torre e a primeira harpiazinha que eu vi lá numa luneta foi numa mata virgem, na reserva do INPA.
Paulina: E aí, como é que foi o impacto?
Tânia: Eu não entendia porque os gringos gritavam tanto “a harpia, a harpia”. E eu até traduzi o nome em inglês, tinham vários colegas visitando. E era pequeno e eu lembrava o tão grande que ela era de perto, né? E você a vê infinito e ainda assim ela aparecia no dossel. Essa foi a primeira e ainda demorou alguns anos depois disso até que, por um acaso, um motorista viu um ninho, numa outra reserva do INPA, não muito longe dali, uns 20km dessa primeira que eu vi. Então é um território de alguns casais e eu jamais imaginaria que eu ia começar o projeto em 1997 ali, uns 7, 8 km da mesma torre, da mesma harpia, que eu acredito até que era o mesmo casal. Dez anos, quinze anos depois, a gente começa a estudar o primeiro ninho de harpia.
Paulina: Quero te pedir pra contar do estado de conservação da harpia no Brasil, quais são os principais desafios nessa conservação e essa corrida em busca de informações, porque são 25 anos do projeto. E de praticamente um campo limpo para ser preenchido, uma folha em branco pra ser preenchida de uma espécie topo de cadeia sumamente importante.
Tânia: O estado de conservação da espécie é diferenciado dentro do Brasil. É um país tão grande, com suas florestas sendo alteradas em velocidades diferentes. Então a harpia na Amazônia ainda é encontrada ocorrendo pela extensão de mata contínua. Mas o estado de conservação é muito preocupante na Mata Atlântica, no Cerrado e no Pantanal. No que restou hoje, o trabalho que será para garantir gerações futuras das harpias.
Hoje estamos com seis ninhos na Mata Atlântica, filhotes nascendo, mas para onde vão esses filhotes que estão nascendo hoje daqui a três anos? Onde eles estarão? Quais os riscos e os desafios que eles estarão enfrentando? É essa uma das preocupações do projeto, tanto tentar trabalhar com transmissores, entender para onde eles estão indo e nesse mosaico de florestas que sobrou na Mata Atlântica e no sul do centro-oeste. Nada diferente da realidade no oeste da Amazônia, em Rondônia, que é também de pequenos fragmentos, tanto quanto a Mata Atlântica.
Na conservação dela aqui, acho que a busca é a construção de corredores. Não tem outra solução para a sobrevivência das harpias na Mata Atlântica. E essa ligação pequena que seja, mas que permita que a harpia seja capaz de ir caçar e voltar nessa área maior. Em Rondônia, tem um ninho de harpia em um hectare. O sufoco é pra ela sair e voltar, reproduzir de forma geral.
Indo trabalhar nessas áreas que estão sendo desmatadas, muitas vezes a gente tem a notícia do ninho e, até a gente chegar lá, a árvore já foi cortada. A velocidade com que estão substituindo a floresta por monoculturas é uma grande ameaça e tudo que vem junto, as estradas, as grandes moradias, a caça.
Paulina: Conservar a harpia ou trabalhar com o conhecimento da harpia, como você falou lá no começo da nossa conversa, vai responder também muito sobre ecologia de um ambiente ou de uma floresta?
Tânia: Isso, um indicador de boa qualidade ambiental, porque eu costumo dizer se tem onça pintada, tem harpia. E onde eu vi uma onça, passa uma onça caçada e um couro de onça na casa, eu viro na mesma hora e falo: tem harpia aqui também. Dos predadores, a onça na Amazônia caça muita preguiça. Harpia também, é o carro chefe. Então elas estão utilizando alguns recursos compartilhados.
Paulina: Porque tem alimento?
Tânia: Porque tem o alimento naquela floresta. Tem o alimento das suas presas e isso permite que elas procriem e se mantenham. É um animal que vive muito, né? A harpia em cativeiro, o máximo que se conhece é 52 anos. Então muitas vezes vem a dúvida: ah, não tem mais no Rio de Janeiro? Pode ser que sim, que existam alguns raros registros, podem ser só raros de avistar, ou podem ser aves solitárias, muito antigas, velhinhas, que já estão voando de bengala.
Paulina: Bom, a gente está falando da importância da floresta de um ecossistema minimamente equilibrado para a sobrevivência da harpia e isso foge da sua mão, da mão do pesquisador. É imponderável o estado de conservação quando você está num país que desmata como o Brasil desmata. Em relação ao sentimento, como é trabalhar pela conservação de uma espécie ameaçada de extinção, que depende da floresta. O que você sente? Você ainda sente energia? O que você pensa todo dia quando acorda e vai trabalhar pela conservação da harpia?
Tânia: É uma pergunta intrigante. Sim, eu acho que nas primeiras décadas, eu acordava todo dia e pensava “hoje eu vou salvar mais uma harpia”. Eu acho que os anos, a forma como tem sido explorada a Amazônia nos mostra que não, que tem sido bem mais difícil do que pensávamos 25 anos atrás. E eu dediquei 37 anos, né, a uma instituição do governo federal em que trabalhava e trabalho em função de conhecer, defender a biodiversidade, formar gente e transmitir conhecimento. E extra a isso, eu trabalhei como voluntária para Greenpeace, Ministério Público, jamais fiz uma consultoria paga. Está na minha conta ajudar a criar uma unidade de conservação no sul do estado do Amazonas, fazer levantamentos pra mostrar a diversidade, a importância ou tentar embargar obras inadmissíveis. E conseguimos muito.
Mas você vê, nós criamos e agora essas criações têm sido alteradas. Por um lado, tem a frustração de dizer “nossa, quantos anos e suor em campo para ter uma vitória mesmo de aquela região importante está dentro de uma UC”. Mas não, não é só desânimo, frustração, eu vejo ao mesmo tempo gente com muito gás agora, com brilho, sangue fervendo ali para defender, para mudar essa condição de ameaça. E fazer a diferença, mudar um pouco de rumo e garantir essas harpias, principalmente aqui nessa região da Mata Atlântica. Ou em outras regiões, como uma das mais desmatadas do sul do Pará e no Rondônia. Então o que me move é ver a criatividade da moçada do grupo, tanto da Amazônia, como nos vários biomas.
Paulina: Tem gente que fala que tem que ser um otimista responsável e não perder de frente a realidade. A harpia te ensinou alguma coisa? Você tanto tempo dedicada ao estudo, a descobrir o que vem se descobrindo sobre comportamento, sobre a importância dela no ambiente, na floresta. Se você pudesse dizer o que você aprendeu com harpia, o que seria?
Tânia: Eu diria… resistência. A dedicação, o insucesso e a dedicação de novo e o sucesso num ciclo reprodutivo. Acho que a harpia mostra isso. Perde tudo e começa imediatamente tudo de novo. E tem que dar certo de novo e se não der, vai vir uma outra vez que eu vou tentar de novo. Isso a gente vê em cada casal. Eu acho que é isso que o casal de harpia mostra também, assim como tantos outros casais ao longo desses 25 anos na Amazônia me mostraram. Então se deu tudo errado, tá bom. E aí começo de novo.
Paulina: Você sente uma coisa emocional, uma energia, uma força que a harpia tem?
Tânia: É, eu acho que eu sinto quando eu olho na luneta, eu tenho certeza que ela está olhando pra mim. Porque é certeiro, é impressionante o poder do olhar de uma harpia. Eu acho que quem está ali do outro lado da lente nunca mais esquece. Elas têm personalidades diferentes. Os indivíduos são diferentes. Você nunca sabe se aquela fêmea é mais calma ou menos calma ou o macho. E pra cada coisa dela, como ela usa aquela floresta. Se a área do ninho está próxima a pastagem, ela vai comer mais tatu ou não. Se está só dentro da floresta amazônica, ela vai comer mais preguiça. Se está dentro de uma floresta de Mata Atlântica, ela vai comer mais macaco, que são as presas que estão disponíveis naquele ambiente.
Paulina: A gente está acompanhando de um ninho e soube que pelos indícios que existe um filhote lá dentro… Você ainda fica emocionada?
Tânia: Ainda fico porque… nascer um na Mata Atlântica é muito significativo, né? Ela conseguir deixar sua contribuição e ele sobreviver e depois, quando dispersando, sobreviver, ainda é emoção. São várias etapas de risco aqui. Então agora é muito sensível a primeira semana até duas semanas do filhotinho. E ali depois você relaxa um pouco mais. E aí agora é essa torcida, essa sintonia e boa energia que o filhote vai passar.
Paulina: Por que que é importante que a harpia seja conhecida?
Tânia: Porque é uma visão meio errônea de que ela é perigosa ou de que é um matador de gato, cachorro, pato, peru no quintal. E pode pegar meninos. E isso a torna mais vulnerável, ela pode correr mais riscos de caça, né? Então tanto nisso, quanto no trabalho participativo com as comunidades, porque se ele não conhecer as várias cores, das várias idades, quando ele vê um gavião no céu, ele “ah, mas não sabia que era aquele que a senhora estava procurando”.
Divulgar, chegar junto, é importante, porque precisa conhecer como se parece. Se você falar pra mim “ah, tem um lagartinho ameaçado”, não sei nem a cor dele, então como é que eu vou saber se eu o vi algum dia ou não. Então a mesma coisa é a harpia.
Para conhecer melhor o trabalho de Tânia e outra mulheres que dedicam a vida para proteger espécies ameaçadas no Brasil, confira as reportagens do projeto Mulheres na Conservação, na National Geographic. A conversa com Tânia também está no podcast do projeto. Quer saber mais? a história destas mulheres incríveis é tema de uma websérie, com apoio da Fundação Toyota.
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