Após ajudar a prender os acusados, lideranças indígenas querem entrar no programa de proteção a testemunhas, por medo de morrer
A prisão de mais cinco suspeitos de envolvimento nos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, nos sábado (6) e domingo (7), está longe de encerrar o caso. Testemunhas que ajudaram desde os primeiros momentos na solução do crime, do encontro dos corpos até apontar a rede criminosa que atua no Vale do Javari, revelam estar com medo. Pelo menos oito indígenas querem ingressar no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH). Eles se sentem abandonados pelo governo federal.
“Eu não sei mais quem está envolvido no assassinato do Bruno e do Dom que possa está solto por aí”, revela um indígena que esteve até minutos antes da partida dos dois à comunidade São Rafael, em 5 de junho, quando foram assassinados pelos agora réus Amarildo da Costa Oliveira, conhecido como “Pelado”, e Jefferson da Silva Lima. A testemunha indígena integrava a Equipe de Vigilância da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), um grupo que, na ausência do poder público, assumiu a autoproteção de Terras Indígenas (TI) no Vale do Javari. Por razões de segurança, a Amazônia Real não revelará seu nome.
“A gente não tem segurança pra nada, eu vivo com medo agora… por mim e pela minha família. Ainda tem gente solta e ninguém sabe o que eles podem fazer contra nós”, diz ele. A liderança indígena decidiu se aldear por conta própria, pelo menos enquanto alguma solução não é oferecida pelas autoridades. No Vale do Javari, após o desmonte do cerco policial e midiático, restam apenas os indígenas, os ribeirinhos e uma estrutura social que gira em torno de crimes, como a pesca ilegal de pirarucu e tracajá, o narcotráfico na tríplice fronteira e o garimpo em algumas TIs.
No último dia 6, a Polícia Federal (PF) deflagrou mais uma fase da Operação Javari. Foram cumpridos sete mandados de prisão preventiva, sendo dois contra os já presos “Pelado” e o próprio “Colômbia”, nome do agora identificado Ruben Dario da Silva Villar. Este último está preso por apresentar documentos falsos, mas a PF já identificou fortes indícios de que “Colômbia” seria líder e financiador de uma associação criminosa armada dedicada à prática da pesca ilegal na região do Vale do Javari. Por enquanto, o órgão federal não confirma o envolvimento dele com o duplo homicídio.
Os outros cinco detidos são parentes de “Pelado”, entre eles seu filho, Amarílio de Freitas Oliveira (conhecido como “Dedei”), de 21 anos, preso em uma festa em Atalaia do Norte, na madrugada do dia 7 (domingo); seu cunhado, Laurindo Alves (conhecido como “Caboclo”), nomeado pela Prefeitura de Atalaia do Norte para ser a ponte entre poder público municipal e os pescadores da região; e seu irmão, Eliclei Costa de Oliveira, conhecido como “Sirinha”. Os dois últimos nomes foram revelados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), horas depois das prisões. “Sirinha” chegou a mentir em uma reportagem, dizendo que não acreditava no envolvimento de “Pelado” no crime.
Situação de abandono – Lideranças indígenas se manifestam
A PF ainda cumpriu dez mandados de busca e apreensão em busca de mais provas para elucidar as circunstâncias dos assassinatos de Bruno e Dom. Ainda há questões não resolvidas, mesmo depois de o Ministério Público Federal (MPF) ter denunciado “Pelado”, seu irmão Oseney da Costa de Oliveira e Jefferson, e da Justiça Federal ter transformado os três em réus. É justamente sob esta atmosfera de indefinição que as testemunhas foram abandonadas.
“A culpa desse abandono é do Estado brasileiro”, disse Beto Marubo, coordenador da Univaja. Em entrevista à Amazônia Real, ele afirmou que o cenário de insegurança e ameaças históricas, apesar da amplitude midiática que ganhou após os assassinatos de Bruno e Dom, é algo que sempre existiu no Vale do Javari e está longe de acabar.
A organização indígena apresentou uma lista com oito nomes à Comissão Externa da Câmara para serem incluídos no PPDDH, programa ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH). A comissão, cuja relatora é a deputada federal Vivi Reis (PSol-PA), acrescentou, após uma diligência na cidade de Atalaia do Norte, outros seis nomes de indigenistas e servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), atuantes nos municípios da tríplice fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia, e que também estão sob ameaças de morte.
A deputada apresentou a lista final com os 14 nomes à Procuradoria Geral da República no dia 6 de julho, em reunião com a procuradora Eliana Torelly, que coordena a 6° Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, responsável por assuntos ligados aos povos indígenas. Até agora, silêncio absoluto.
“É fundamental que o Estado brasileiro garanta a vida e a integridade física de indígenas, indigenistas e servidores públicos que estão ameaçados de morte no Vale do Javari […] é inadmissível a demora de alguns órgãos públicos em darem respostas quanto à proteção das pessoas ameaçadas”, afirmou a deputada Vivi Reis.
Beto Marubo também disse ter solicitado providências em relação à segurança dos indígenas do Vale do Javari ao Conselho Nacional de Direitos Humanos, mas o processo “vem se arrastando na burocracia dessas instâncias”. Segundo o líder indígena do povo Marubo, outras solicitações já haviam sido encaminhadas ao conselho antes mesmo dos assassinatos de Bruno e Dom.
Proteção demorada
“Uma pessoa me ligou sem se identificar direito, a ligação estava ruim também, dizendo que era dos Direitos Humanos. Mas a gente fica até com medo, eu não confio em telefone”, contou um indígena ouvido pela Amazônia Real, que afirmou ter recebido uma ligação possivelmente de algum servidor ligado à Procuradoria Geral da República (PGR) ou ao MDH.
Questionada pela Amazônia Real, a PGR informou que no dia 24 de junho o MPF promoveu uma reunião na cidade de Tabatinga (vizinha à Atalaia do Norte), com o PPDDH “sobre a possibilidade de oferta de inclusão, no programa, de integrantes da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), para que relatassem ameaças”.
Na mesma data, de acordo com a PGR, um ofício foi encaminhado à Univaja “informando a possibilidade de encaminhamento dos nomes para inclusão no PPDDH, caso fosse de interesse dos integrantes da organização indígena, e ressaltando a necessidade de apresentação de representação criminal em caso de ameaça, para que o MPF possa dar início a investigação no âmbito criminal”. Segundo o órgão, até o momento não houve manifestação da Univaja, fato negado por Beto Marubo.
A PGR confirma ter recebido a lista apresentada pela deputada e informou ter despachado a demanda ao MDH. “Na sequência, o MPF enviou ofício ao PPDDH pedindo informações sobre a solicitação de ingresso de líderes da Univaja no programa, conforme a lista encaminhada pela deputada. Enviou também ofício à Funai solicitando informações sobre as medidas de proteção implementadas para assegurar a vida e a incolumidade física dos servidores, terceirizados e colaboradores da fundação em Tabatinga e na Base de Proteção Etnoambiental, além da ampliação dos agentes da Força Nacional na região”, afirmou a assessoria do órgão, sem informar se houve resposta do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – responsável pelo programa de proteção a testemunhas.
A reportagem também solicitou informações do MDH sobre a inclusão dos nomes listados no PPDDH, mas até o momento não obteve resposta.
Insegurança no Javari
“Eu não tenho segurança e nem dinheiro para me deslocar de um lugar pro outro. E se acontecer alguma coisa comigo, como essas crianças vão ficar?”, lamentou a testemunha indígena. Casado e com filhos pequenos para criar, ele não consegue mais circular na casa onde morava, no Vale do Javari, por estar se sentindo desprotegido. A solução foi procurar refúgio na aldeia. “Tem dia que até para arranjar o alimento é difícil aqui. Na aldeia, pelo menos a gente pode contar com os parentes”, conta.
Essa testemunha ainda vive assombrada por ter vivido os minutos finais do jornalista britânico e do indigenista. “Eu estava lá no barco com o Bruno e o Dom quando eles levantaram as armas ameaçando a gente.” Esse fato ocorreu no dia 4 de junho, um dia antes dos assassinatos e da ocultação dos cadáveres das vítimas nas margens do rio Itacoaí, no Vale do Javari.
Bruno Pereira e Dom Phillips foram assassinados na manhã do dia 5 de junho por Amarildo da Costa Oliveira (o “Pelado”), seu irmão Oseney da Costa de Oliveira (o “dos Santos” e Jefferson da Silva Lima (o “Pelado da Dinha”), que já respondem por duplo homicídio qualificado e ocultação de cadáver. Segundo a denúncia do MPF, o crime teria ocorrido por “motivo futil”.
Para agravar a sua situação, uma testemunha indígena teve seu nome exposto em um dos documentos da Justiça no curso das investigações. Um deles, que tramita em segredo judicial e ao qual a reportagem teve acesso, foi vazado do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM). Questionado pela Amazônia Real, o TJ-AM afirmou que em nenhum momento divulgou o documento e que o vazamento, inclusive, é passível de investigação. Mas o estrago já estava feito. O indígena soube por terceiros que, preocupados com sua segurança, avisaram sobre a exposição.
Exposição e medo
“Eu tenho medo dessa exposição, medo do meu nome estar circulando desse jeito. A Justiça em nenhum momento me perguntou se eu aceitava ter meu nome lá pra todo mundo ver, sem nenhum cuidado. A minha situação agora fica como?”, questiona a testemunha.
Beto Marubo afirmou que o caso do indígena citado não é o único. “A situação não é uma exclusividade, atinge a maioria das lideranças indígenas que estão ligadas direta e indiretamente nas demandas do Movimento Indígena no Vale do Javari. [Ele] era um dos que estavam nas buscas ao Bruno e ao Dom, eram 20 parentes no total”, declarou o coordenador da Univaja, apontando para pelo menos outros 19 indígenas que também se encontram em situação de ameaça na região que concentra o maior número de indígenas isolados do mundo, segundo levantamentos da própria Univaja e da Funai.
“Com certeza houve um erro por parte das autoridades quando divulgaram nomes. Nós estamos constituindo questionamentos sobre esses erros, o que é relativo também. Porque depois que divulgam, os efeitos disso já são nefastos”, declarou. A PGR afirmou que, “em relação ao indígena [citado na reportagem], não houve comunicação específica ao MPF narrando qualquer ameaça.”
O sucesso das buscas se deve à participação maciça dos indígenas dos povos Kanamari, Marubo e Matis – todos originários do Vale do Javari e que conviviam com Bruno Pereira. Eles, juntos à Univaja, “só sossegaram depois de encontrar os corpos às suas famílias”, como lembrou Beto Marubo em uma audiência pública, ocorrida na Câmara dos Deputados no início de julho.
Fonte: Amazônia Real
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