Há muito o que se fazer, mas iniciativas como a de Jorge Dantas, criador do Refúgio Jamacaii, apontam um dos rumos que devemos seguir
Filho de pai e mãe do interior, Jorge Dantas é um oficial de justiça que em 2016, aos 49 anos, entrou no curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) buscando entender melhor os passarinhos, animais que sempre o encantaram. Já no curso, durante as aulas de ornitologia, o estudo das aves, ele se encontrou e fortaleceu ainda mais o encantamento por esse grupo de seres vivos, mas agora com algumas centenas de nomes científicos, cantos e padrões de coloração para decorar. O resultado disso é que Jorge está prestes a defender o seu trabalho de conclusão de curso, que envolve as aves da fragmentada e ameaçada Mata Atlântica do Centro de Endemismo Pernambuco, porção do bioma ao norte do rio São Francisco, incluindo o território potiguar, onde ele concentra seus esforços.
Mas foi mirando na biodiversa e semiárida Caatinga (mata branca, em tradução do tupi-guarani) que Jorge acabou de realizar seu maior sonho, a criação da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Refúgio Jamacaii. A reserva com nome de um dos pássaros mais bonitos da Caatinga, o concriz ou corrupião (Icterus jamacaii, no nome científico), está localizada justamente na região onde seu pai nasceu e cresceu, na zona rural da pequena Equador, no coração do Seridó potiguar. Criada pela Portaria Nº 459, de 2 de junho de 2022, do Instituto Chico Mendes da Biodiversidade (ICMBio), a mais nova RPPN da mata branca brasileira tem pouco mais de 135 hectares de vegetação de caatinga preservada ou em estágios diferentes de regeneração. “É a realização de um sonho. Espero que mais RPPNs sejam criadas para que nossa Natureza seja preservada, nossos biomas sejam preservados, a nossa existência neste Planeta seja prolongada”, comemorou Jorge ao se deparar com a publicação da portaria do ICMBio.
Quem acha que os esforços de conservação do Jorge e sua família começam só agora, com a criação da reserva, está muito enganado. Desde que comprou a área, há cinco anos, têm sido realizadas na área atividades como o controle de plantas invasoras, o plantio de árvores nativas e, especialmente, o manejo de bebedouros artificiais para dessedentação da fauna nos períodos de estiagem associado ao monitoramento por meio de câmeras automáticas. Através destes aparelhos já foram registradas mais de 12 espécies só de mamíferos terrestres nos bebedouros, incluindo tatus, raposas, tamanduás e até dois pequenos felinos ameaçados de extinção.
O gato-do-mato-pintado (Leopardus tigrinus) e o gato-mourisco (Herpailurus yagouaorundi) são a maior sensação da reserva, já que sempre aparecem mães com seus filhotes brincalhões nos registros. Mas não é só isso, o Refúgio Jamacaii já participou de ações de conservação previstas no Plano de Ação Nacional para Conservação dos Pequenos Felinos do ICMBio, através de uma campanha de vacinação de cães domésticos visando diminuir a disseminação de doenças para felinos silvestres, atividade apoiada pelo Projeto Gatos do Mato Brasil e o Tiger Cat Conservation Initiative.
Se antes o Refúgio Jamacaii já contribuía muito para a conservação da fauna e da flora da Caatinga, como RPPN sua relevância ganha outro patamar. Após criada, uma área averbada como RPPN tem como objetivo principal conservar a diversidade biológica local, permitindo apenas a pesquisa científica e a visitação com objetivos turísticos, recreativos e educacionais nos seus limites. Segundo Lívia Cavalcanti, ecóloga e mestranda do Programa de Pós-graduação em Ecologia da UFRN, RPPNs são hoje uma das principais ferramentas para se alcançar os objetivos de conservação, dada a alta porcentagem de terras sob propriedade privada no Brasil (e no mundo). Esse tipo de iniciativa deve ser complementar aos esforços do poder público em conservar a biodiversidade e garantir a sadia qualidade de vida da população, obrigação prevista desde a Constituição Federal de 1988. No entanto, a iniciativa particular ganha cada vez mais destaque. “Frente a um quadro em que se torna cada vez mais cara, complexa e demorada a criação de áreas de proteção pública, a destinação voluntária de terras particulares para implementação de áreas protegidas se tornou uma alternativa complementar necessária”, complementa Lívia, que pretende com sua pesquisa identificar fatores no cenário nacional que incentivam e ajudam na manutenção das RPPNs, e para isso está coletando repostas de proprietários de reservas particulares de todo Brasil (link do formulário).
Essa nova unidade de conservação vem em boa hora. A Caatinga figura entre os biomas brasileiros menos protegidos por unidades de conservação criadas pelo poder público, isso é ainda mais uma realidade em estados como o Rio Grande do Norte. Por isso, pesquisadores defendem, por exemplo, que aumentar o número de áreas protegidas públicas e particulares deve ser uma ação estratégica dentro dos crescentes processos de licenciamento ambiental de empreendimentos eólicos e solares em áreas prioritárias para a conservação da Caatinga. Em se tratando de reservas particulares, a RPPN Refúgio Jamacaii é a oitava UC desta categoria no território potiguar, sendo a quinta na Caatinga. Mas segundo Robson Henrique Pinto da Silva, Coordenador de Meio Ambiente e Saneamento da Secretaria do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos do Rio Grande do Norte (SEMARH), esse número deve crescer em breve, já que em fevereiro deste ano foi publicado um decreto que estabelece os critérios e processos para criação de reservas particulares a nível estadual, o que deve simplificar e agilizar esse tipo de processo e beneficiar proprietários particulares interessados em destinar áreas para fins de conservação. “Como parte das ações de divulgação, está sendo organizado junto a UFRN o ‘II Seminário para Criação de Unidades de Conservação Particulares: Conservação Ambiental e perspectivas de Sustentabilidade Financeira’, o qual será realizado nos próximos dias 05 e 06 de julho”, finaliza Robson.
Há muito o que se fazer, mas iniciativas como a de Jorge Dantas apontam um dos rumos que devemos seguir. A proteção e recuperação de áreas naturais é especialmente importante em um cenário de mudanças climáticas e avançado processo de desertificação em regiões da Caatinga, como recentemente destacado na capa de um dos jornais mais famosos do mundo, o The New York Times, que denunciou a transformação da vegetação natural em um quase deserto justamente na região Seridó do Rio Grande do Norte, onde o Refúgio Jamacaii acaba de ser criado. É aqui que o gesto de Jorge, iniciado pelo amor às aves e apego às suas origens, torna-se ainda mais relevante para a causa ambiental, garantindo habitat preservado e a manutenção e serviços ecológicos para os habitantes do Refúgio Jamacaii e seu entorno e inspirando outros proprietários a repetirem esse feito em outras áreas naturais da Caatinga, para assim como Jorge, carregarem consigo a consciência de devolver um pouco para a natureza o que tanto retiramos dela!
Fonte: O Eco
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