Produtos da biodiversidade precisam de incentivos e regulação para fortalecimento do mercado que protege a natureza
O Brasil é conhecido por ser o país que abriga a maior biodiversidade do planeta. Estima-se que cerca de 10% a 15% da diversidade biológica mundial esteja no território nacional. Com isso, explorar economicamente as riquezas naturais pode se tornar um caminho próspero, principalmente em um cenário de valorização da floresta em pé para combater as mudanças do clima.
A bioeconomia, modelo de produção baseado nos recursos biológicos, movimenta no mercado mundial cerca de € 2 trilhões e gera cerca de 22 milhões de empregos. No Brasil, ela já movimentou o equivalente a US$ 285,9 bilhões e representou 13,8% do PIB em 2018. No entanto, ainda há muitas oportunidades para o desenvolvimento desse setor, que tem o potencial de se tornar o grande aliado na preservação da floresta em pé.
De acordo com Luiz Fernando Bandeira de Melo, conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e advogado licenciado do Serur Advogados, o Brasil ainda tem um vasto caminho a trilhar quando se fala em bioeconomia. Essa jornada começa pela própria definição sobre o que pode caracterizar um produto como sendo resultado da bioeconomia ou não. “Atualmente, não há um órgão que certifique o que é o produto bio. Não temos os requisitos para essa classificação, como a poluição gerada durante a produção, se os insumos são biodegradáveis e qual foi o frete utilizado no transporte, por exemplo”, afirmou. Segundo Melo, há um grande desafio regulatório em nível primário: o que é a bioeconomia, quais são os requisitos para configurar essa produção e quem certificará esses produtos? Esses pontos-chave ainda não foram definidos na legislação brasileira.
Ao mesmo tempo, os questionamentos não implicam que novas estruturas precisam ser criadas para avançar neste setor. Melo destacou que os próprios órgãos ambientais, como o Ibama e o ICMBio, poderiam ter a preocupação com a fiscalização. Para o diretor executivo do Instituto Escolhas, Sérgio Leitão, a regulação precisa ser aprimorada e o mercado precisa ser destravado para que a bioeconomia floresça. “O que vemos hoje é a concorrência desleal por causa das atividades ilegais, que não pagam impostos e não replantam a floresta para garantir a perpetuidade. No caso da indústria madeireira, por exemplo, a concorrência elimina a chance de ter um mercado sustentável”, disse. Para Leitão, no caso de uma concessão florestal, o caminho é reduzir as exigências que impeçam outras formas de agregar valor aos produtos da floresta além da extração madeireira. “Quem ganha a concessão precisa poder comercializar a madeira e os créditos decorrentes das emissões evitadas, o que é fundamental para que essas atividades tenham valor financeiro”, disse.
As discussões sobre o uso da biodiversidade na economia começaram a se fortalecer em 1992, no Rio de Janeiro, durante a Eco-92, quando foi assinada a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), o tratado internacional mais importante sobre o tema.
Em 2000, foi assinado o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, que tem o objetivo de garantir o manuseio, transporte e uso seguro de organismos vivos modificados que podem ter efeitos sobre a diversidade – o Brasil aderiu ao Protocolo em 2003. Em junho do mesmo ano, o Brasil editou a Medida Provisória 2.052, norma para garantir o acesso aos recursos genéticos e a repartição dos benefícios.
Já em 2010, foi desenvolvido o Protocolo de Nagoia, que detalha as normas e mecanismos internacionais de acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios. Uma década depois, em 2020, o Congresso Nacional aprovou um decreto para a adesão do Brasil ao acordo. O PL 13.123/2015 é considerado o novo marco legal brasileiro de acesso ao patrimônio genético e conhecimento tradicional.
No Congresso, atualmente, tramita o Projeto de Lei 5.518/20, de autoria de Rodrigo Agostinho (PSB-SP) e de parlamentares de diversos partidos, que prevê flexibilizar o modelo de licitação e os contratos para concessão de florestas públicas.
O que é a bioeconomia
Quando se fala em bioeconomia, logo se pensa em produtos provenientes da floresta em pé, como extração de frutos e sementes para a produção de alimentos, óleos, fármacos e cosméticos. Para o presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), Marcello Brito, a bioeconomia trata sobre qualquer produto que venha da terra, incluindo a soja. “A bioeconomia se encaixa em todos os espaços econômicos, seja no setor que já está consolidado ou em algo ainda embrionário, em estágio de pesquisa, como produtos da floresta”, disse. Para Leitão, há uma divisão clara entre o tradicional e o novo. “Soja pressupõe a floresta derrubada. Bioeconomia trata do que mantém a floresta preservada, sem negar a importância da agricultura, que é fundamental para a sobrevivência das atividades econômicas”, afirmou. “Estamos falando sobre a revolução que passa por soluções baseadas na natureza. Ela também vai atingir a agricultura, mas não tem nada a ver com a bioeconomia da floresta em pé”, disse.
No ponto de vista do presidente da Abag, a bioeconomia traz a reformulação dos meios de produção. “Nesse campo, o Brasil é líder mundial. A maioria dos processos foram desenvolvidos aqui. Termos como agricultura regenerativa, de baixo carbono, sistemas agroflorestais, entre outros, são inovações bioeconômicas sobre sistemas tradicionais de plantio”, disse Brito.
Enquanto o tradicional pode se beneficiar das inovações sustentáveis, os novos negócios precisam das mesmas condições oferecidas aos setores que se fortaleceram ao longo das últimas décadas. “O principal desafio é o de se destinar os incentivos e apoios governamentais, principalmente do sistema financeiro oficial de crédito, para que essas atividades possam ter as mesmas oportunidades daquelas permitidas na economia tradicional”, disse Leitão. Outro elemento importante é o período de tempo para a chegada dos resultados. “Se queremos ter a bioeconomia como setor vibrante do desenvolvimento de negócios no Brasil, precisamos oferecer as mesmas vantagens e no mesmo espaço de tempo que as outras atividades já tiveram a oportunidade de receber. Somente dessa forma as novas atividades vão poder mostrar as suas qualidades como setores econômicos que têm diferença para assegurar um futuro para o país”, disse Leitão.
De acordo com Brito, o setor privado tem sido o principal canal de investimentos para o desenvolvimento de soluções – a falta de recursos para a ciência e a tecnologia reflete no trabalho que é desenvolvido no campo. “Quando olhamos para trás, a produção e o plantio de qualquer produto eram muito diferentes de como está sendo feito hoje. Daqui a 20 anos, com certeza tudo será diferente. Essa bioeconomia nada mais é do que uma disrupção completa de todos os modelos de produção econômica, tanto de 20 anos atrás quanto o mesmo período para frente”, explicou. Outro desafio a ser vencido nas próximas décadas é o descontrole do desmatamento e das queimadas na Amazônia. “Temos uma chance enorme de mudar a floresta, mas ainda há um caminho a seguir. Essa nova economia não combina com desmatamento ilegal, grilagem, garimpo e contaminação das águas. Isso gera insegurança jurídica para o investidor. Temos que nos preparar para esse movimento”, disse Brito.
Uma das principais iniciativas que envolve ciência, tecnologia e recursos da natureza é o projeto Amazônia 4.0, que incentivará a utilização da tecnologia para a exploração sustentável da biodiversidade. O diretor científico da empreitada, Ismael Nobre, explica que a iniciativa olhou para todas as dificuldades da região para agregar valor aos produtos, como carência de estrutura, dificuldade logística, falta de capacitação para uma função especializada, entre outras questões, e buscou tecnologias para melhorar o processo. “Qualquer iniciativa na Amazônia faz com que seja difícil chegar a um produto de qualidade, que alcance um mercado exigente e que faça a economia girar com agregação de valor. Com inovação, facilitamos a produção, substituímos a capacitação e a qualidade dos produtos será gerida pelo sistema, com sensores e tecnologia”, disse.
Enquanto busca-se soluções para as ilegalidades que ganham espaço na floresta, Nobre defende que não há mais tempo para esperar que a forma tradicional da economia se organize para valorizar a matéria-prima e fortalecer o fair trade. “Não podemos confiar que o futuro da Amazônia vai se resolver com o desenvolvimento sustentável, pois essas iniciativas não trouxeram respostas nos últimos 30 anos”, afirmou.
Com uma estrutura que se assemelha ao formato de um iglu, os chamados Laboratórios Criativos da Amazônia, unidades móveis que levarão tecnologias da Indústria 4.0 à cadeia produtiva da floresta – no primeiro momento, cacau e cupuaçu –, serão instalados em diferentes comunidades. No caso do cacau, a valorização sobre o produto pode chegar a 2.000%. “A essência do Amazônia 4.0 é combater o cenário em que a floresta é facilmente substituída por outras atividades econômicas, como madeira, gado, e grãos, por uma produção que reflete a própria existência da floresta”, disse Nobre.
Fonte: Jota
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