Mais importante do que “apenas” plantar árvores, é necessário conciliar a conservação ambiental com produção sustentável através da integração de paisagens e pessoas
Embora o aumento do desmatamento no Brasil tenha ganhado as manchetes em todo o mundo nos últimos anos, para muitos moradores de centros urbanos brasileiros, como eu, os impactos diretos desta perda florestal não são percebidos. Embora esteja difícil de ignorar que algo não vai bem quando somos “invadidos” por fenômenos biofísicos outrora considerados raros, como tempestades de poeira, nuvens de gafanhotos, quedas de granizo, chuvas e secas mais intensas. No entanto, longe das cidades, milhares de pessoas dependem diretamente das florestas e estão com seu meio de vida ameaçado pela degradação ambiental, que empobrece o solo, afeta a qualidade e quantidade de água, o clima e a produção de alimentos.
O que talvez poucos de vocês saibam é que, ironicamente, nós estamos vivendo a Década da Restauração (2021-2030), liderada pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). A proposta da Década é apoiar a revitalização dos ecossistemas do mundo – restaurando áreas de florestas degradadas – recuperando seu potencial ambiental e melhorando o bem-estar das pessoas, revertendo assim, os impactos negativos causados pelo desmatamento. A ideia é ótima, mas como fazer isso na prática?
Uma forma é através de variadas técnicas de plantio, de consórcio de espécies e de metodologias que podem ser adaptadas de acordo com bioma, com o uso histórico e atual do solo e do resultado esperado da restauração. Mas a informação técnica por si só não garante o sucesso dos projetos de restauração, pois um passo importante, e muitas vezes negligenciado, é o contato com as populações e instituições locais. (Vou me aprofundar nisso daqui a pouco). Então, mais importante do que “apenas” plantar árvores, é necessário conciliar a conservação ambiental com produção sustentável através da integração de paisagens e pessoas. E isso inclui a delimitação e o planejamento espacial de um determinado local (paisagem), que deve englobar e conectar diferentes áreas (privadas ou não), e considerar as diferentes relações (negativas e positivas) entre as pessoas e o ambiente. Basicamente, é preciso ter uma visão mais holística da paisagem, indo além dos limites da propriedade rural, e considerar todos os elos da chamada cadeia da restauração, que incluem a coleta de sementes, produção de mudas e insumos, e os serviços de restauração e manutenção dos plantios.
Notaram um ponto em comum entre esses elos? Em todos eles são necessários conhecimento e mão de obra. E, para isso, é preciso ter pessoas! Coletores de sementes, viveiristas, prestadores de serviço, financiadores, compradores de produtos, proprietários de terra a serem restauradas, são a base necessária de todas as conexões da cadeia produtiva e uma parte fundamental para que a restauração aconteça de maneira efetiva e eficaz. Assim, o ideal é que haja contato com esses atores desde a concepção do projeto, a fim de envolvê-los no planejamento, captando suas percepções, os problemas locais e suas opiniões sobre possíveis soluções. Dessa maneira, o projeto pode desenhar e implementar atividades de forma participativa e feitas sob medida para aquele local e aquelas pessoas, valorizando o conhecimento local, aumentando o seu comprometimento com as atividades e, consequentemente, o sucesso da restauração. Não é à toa que a inserção social é um dos tripés do desenvolvimento sustentável (junto com economia e ambiente).
Mais importante do que “apenas” plantar árvores, é necessário conciliar a conservação ambiental com produção sustentável através da integração de paisagens e pessoas.
Alguém pode dizer: “muitos dos problemas da cadeia da restauração são semelhantes em todo o Brasil, e podem não variar muito entre as paisagens”. Ou então: “que para a elaboração de um projeto, pesquisadores e tomadores de decisão fazem (ou deviam fazer) um amplo levantamento socio-ecológico-econômico da região, e fazem o melhor que podem, pois querem que o projeto tenha êxito”. Sim, isso tudo é verdade e é muito válido! Só tem um “detalhe” nesse raciocínio: normalmente os tomadores de decisão não vivem na região a ser restaurada e não conhecem as nuances do local. E ao chegar com o projeto pronto para ser implementado, estes podem se deparar com desconfiança, falta de engajamento e entusiasmo local. Lembram que mencionei anteriormente que os elos da cadeia da restauração são baseados em pessoas? Então… seria como se um estranho chegasse na sua casa, sentasse no seu sofá e mudasse o canal da tv sem te perguntar nada, e depois reclamasse que você não está assistindo o programa que ele escolheu! Além de “não assistirem ao programa”, se as pessoas que vivem na região não forem envolvidas e consultadas antes e durante o projeto, quando o projeto acaba (e ele invariavelmente acaba), a restauração não é cuidada, as mudas não vingam e a paisagem literalmente não floresce. E todo o esforço, tempo e recurso terão sido em vão.
Outro ponto importante para conseguirmos dar escala à restauração e conectar paisagens é a sensibilização das pessoas sobre a importância e o benefício de se ter florestas. Essa é uma etapa que inevitavelmente necessita anteceder o plantio e as demais ações práticas do projeto. Um território é formado por diversos tipos de pessoas, alguns curiosos e já adeptos da agroecologia e da inclusão de árvores nas pastagens, e outros mais conservadores a “novas opções” de cultivo. Assim, é necessário disseminar informações e demonstrar na prática que floresta em pé pode dar lucro, e não é perda de espaço e produção! E que esse lucro pode vir de forma direta (com a venda de produtos madeireiros e não madeireiros) ou indireta (através do turismo, do aumento da produtividade por conta de mais polinizadores, de menos gasto com água, etc.). Há ainda possibilidades de Pagamentos por Serviços Ambientais (PSAs), onde produtores que geram benefícios para toda a sociedade (ex. ar puro, água, sequestro de carbono etc.) podem ser remunerados financeiramente pelos serviços prestados. Existem alguns programas estaduais e municipais de sucesso no Brasil e espera-se que o PSA ganhe força com a nova Política Nacional. Mas muitas pessoas não estão informadas sobre essas possibilidades e é por isso que a sensibilização foi incluída como uma das oito iniciativas estratégicas para a restauração da vegetação nativa pelo Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (PLANAVEG).
Muitos projetos de restauração no Brasil já estão em andamento e trazem essa visão integrada de paisagens e pessoas! E “para não dizer que não falei de flores”, o papel e a liderança feminina na restauração também fazem parte deste processo. Na Área de Proteção da Bacia do Rio São João, onde desenvolvemos um projeto de manejo sustentável da paisagem, as mulheres têm liderado várias ações de restauração com sistemas agroflorestais, planejamento, organização e vendas dos produtos, e na produção de mudas. Diferentemente da canção do Vandré, o direito à liberdade (no sentido de uso racional do meio ambiente), a união e a ação através da restauração tornam possível a revolução, usando as flores e seus frutos.
Fonte: O Eco
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