As agroflorestas mostram que não existe contradição entre florestas e agricultura, é possível produzir alimentos com alta produtividade de maneira sustentável
Houve um tempo em que se dizia que, para recuperar um pasto degradado ou um solo empobrecido pelo uso intensivo de agrotóxicos, bastava deixá-lo quieto por alguns anos. A natureza, sem qualquer intervenção humana, cuidaria da regeneração daquela área. No seu ritmo, no seu tempo.
É bem verdade – e muito lindo de perceber – que a vida brota da terra. Que muitos animais são polinizadores e que há uma rede natural de cooperação biológica formidável para que o equilíbrio se restabeleça sempre.
Mas o problema é que a humanidade chegou em um ponto tão brutal de interferências maléficas nos mais diversos ecossistemas que minimizar impactos não é mais suficiente. É preciso correr no tempo (mas não contra o tempo). E dar uma mãozinha ou muitas a este que talvez seja o trabalho mais importante do presente e do futuro da humanidade. Regenerar a vida no planeta.
Pois é aí que entram as agroflorestas ou sistemas agroflorestais (SAFs). Elas têm potencial para serem grandes aliadas nessa tarefa. O conceito ganhou repercussão no Brasil a partir do trabalho do agricultor e pesquisador suíço Ernst Götsch.
Em mais de 40 anos de experiência no país, ele desenvolveu um conjunto de técnicas capazes de reintegrar a produção agrícola com a regeneração da paisagem, especialmente a florestal. Ensinou a cultivar comida sob a copa de grandes árvores perenes, igualmente inseridas por mãos humanas.
Sua fazenda na Bahia, onde vive com a família desde 1984, é exemplo vivo disso. Por lá ele recuperou 410 hectares de solo degradado, viu ressurgir mais de uma dezena de nascentes e celebrou o reaparecimento de diversas espécies da fauna nativa. Suas lições já foram compartilhadas com mais de 8 mil famílias brasileiras que tiveram contato com seus cursos e palestras.
Agroflorestas ou agricultura sintrópica?
“O conceito de agroflorestas é muito amplo, existem diferentes possibilidades dentro dele. Na Europa, por exemplo, ele vem da definição criada pelo ICRAF, o World Agroforestry Center, que abarca muitas versões, digamos assim. Algumas permitem simplesmente uma rotação de cultura entre um ano e outro, usando ou não insumos químicos”, afirma o jornalista Felipe Pasini. Felipe é um dos pioneiros na divulgação dos trabalhos de Götsch, que acompanha de perto há 15 anos. Além disso, é produtor em sua fazenda no Rio de Janeiro, que ainda sedia o Centro de Formação em Agricultura Sintrópica.
Segundo ele, na América Latina e também no Brasil, o termo agrofloresta ganhou um tom diferente, muito em função do trabalho de Ernst com frentes campesinas e cooperativas de pequenos produtores. “Essas diferenças de conceito levaram seus alunos e o meio acadêmico a criar o nome ‘agrofloresta sucessional’ para diferenciar do trabalho feito em outras agroflorestas, já que era algo tão específico. Mais tarde, em 2013, o próprio Ernst resolveu rebatizar de agricultura sintrópica, um termo que ele já usava desde a década de 1990”, conta Pasini.
Logo depois, em 2016, a agricultura sintrópica ganhou um impulso importante em 2016 a telenovela Velho Chico, transmitida pela Rede Globo. Com consultoria técnica de Felipe Pasini e sua parceira Dayana Andrade, o tema foi inserido nos conflitos da trama e conquistou uma expansão incrível.
Princípios de vida nas agroflorestas
Nas palavras de Ernst, em todo lugar onde há vida ela cria, com o passar do tempo, um saldo positivo de energia e complexidade. É um saldo sintrópico, contrário à ideia de entropia da Termodinâmica, que representa a degradação de energia e a desordem de um dado sistema.
“A agricultura que denominei de sintrópica trabalha com esses princípios da vida, submetidos à própria vida, em todas as relações entre as espécies e intraespecíficas, baseadas no amor incondicional e na cooperação. Todas as espécies são equipadas para se comunicar com todas as outras. E todos os indivíduos e cada geração deles, para cumprir suas funções, são movidos pelo próprio prazer interno, e todos eles formando um grande macro-organismo”, diz Ernst Götsch.
Este e outros ensinamentos estão disponíveis em vídeos e conteúdos do site Agenda Götsch, idealizado por Dayana Andrade, comunicadora e doutora em Ciências Ambientais e Conservação pela UFRJ, com tese defendida sobre a adotabilidade da agricultura sintrópica.
Para Ernst, então, não se trata de uma receita de como fazer agricultura em um determinado lugar. É um modo de pensar, uma filosofia, um conjunto de princípios que, traduzidos na prática, nos levam à agricultura sintrópica. Assim, não importa se estamos nos trópicos, no Mediterrâneo ou em lugares áridos. Os princípios são os mesmos.
Alimentar e restaurar a um só tempo
Por essas características, a agricultura sintrópica é em si regenerativa e restauradora dos ambientes. Isso porque ela trabalha ouvindo e observando a natureza e seus ciclos, com o intuito de acelerar os processos naturais de sucessão ecológica (tempo) e a estratificação (espaço), criando condições ideais para o desenvolvimento das plantas.
É uma agricultura que se desenvolve sempre incrementando a quantidade e a qualidade de vida consolidada. Dessa forma, ela se baseia em processos, não em insumos agrícolas. “A colheita agrícola passa a ser vista como um efeito colateral da regeneração de ecossistemas, ou vice-versa”, pontua Dayana.
“É uma solução muito concreta. Globalmente, a humanidade falhou em seus modelos de agricultura, que têm degradado os ecossistemas. A gente costuma dizer que o grande problema da agricultura foi a mecanização, a Revolução Industrial, os agroquímicos, mas hoje sabemos que, embora isso tudo tenha acelerado a degradação, a agricultura desde 10 mil anos atrás tem causado alterações nos ecossistemas sempre no sentido de degradá-los”, expõe Felipe.
Ele lembra que existem hoje vários esforços de restauração alinhados à iniciativa da ONU de eleger o período de 2021 a 2030 como a Década da Restauração dos Ecossistemas. “Mas nós, seres humanos, não sabemos lidar com os ecossistemas. Temos uma interpretação muito errada e estamos vendo alguns projetos falharem nesse sentido”.
Agricultura sintrópica para a restauração
Como exemplo, Felipe menciona os bilhões de árvores plantadas na China, com grande alarde na mídia. Imagens de satélite mostram que menos de 15% sobreviveram. Na África, o projeto da Grande Muralha Verde, criado para conter a expansão do deserto do Saara, teve uma taxa de sucesso tão baixa que eles decidiram restringir a implantação para áreas onde chove mais de 400 mm ao ano, o que exclui quase toda a região. No Sul da Europa, em Portugal e na Espanha, projetos de restauração tiveram taxa de sucesso menor que 2%.
“Na agricultura sintrópica não temos essa distinção em termos de abordagem, porque trabalhamos com as dinâmicas dos próprios ecossistemas para substituir a adubação, a irrigação e para ter comida com qualidade. Então, agricultura e restauração ambiental se confundem no meio disso porque têm o mesmo propósito”, afirma Felipe.
Nesse sentido, a agricultura sintrópica é ferramenta essencial para essa restauração. “Inclusive, o legado que o Ernst tem deixado é o que existe de mais inovador e promissor para a restauração de ecossistemas e para dar uma resposta também para a agricultura”.
Agroflorestas em grande escala, sim, por favor
Felipe conta que as agroflorestas já acontecem na pequena escala, mesmo com os desafios que temos de acesso ao conhecimento, a crédito e assistência técnica. “Para a grande escala, o obstáculo ainda é a mecanização, algo a que o Ernst tem se dedicado nos últimos cinco anos, desenvolvendo máquinas para que se possa ter um aparato tecnológico que permita aplicar os princípios de modo a sermos economicamente competitivos com o modelo convencional de agricultura”.
Aos que imaginam que a agricultura sintrópica é algo restrito a círculos alternativos, ele rebate: “A postura alternativa é egoísta, quer fazer o próprio quintal ser bom, mas não muda o modelo dominante. Na história da agricultura isso aconteceu diversas vezes. Se uma agricultura alternativa não vira dominante ela fatalmente acaba junto com a falência do modelo dominante. Não podemos permitir que isso aconteça”.
Mas como fazer para que os agentes do agronegócio parem para ouvir a experiência da agricultura sintrópica? Para Dayana, é preciso desconstruir ideias muito sedimentadas no setor antes de começar a construir novos conceitos.
“Em Portugal, tivemos a oportunidade de trabalhar com crianças entre 7 e 10 anos em cinco escolas públicas de pequenas vilas. Foi muito mais fácil porque elas não tinham uma ideia fixa na cabeça, não precisamos desconstruir nada. O resultado foi incrível porque elas levaram isso para as famílias, que mudaram os jardins de casa, as escolhas alimentares e até praças públicas adotaram práticas semelhantes. Essas crianças têm um conhecimento de microbiologia do solo que alguns agrônomos teriam dificuldade para aceitar num primeiro momento”, conta.
Da monocultura à agricultura sintrópica
No Brasil, já existem histórias de grandes fazendeiros de monocultura que foram impactados pela agricultura sintrópica. “Sabemos de grandes produtores que, quando entraram em contato com a prática dessa agricultura mudaram um pouco o olhar, quiseram experimentar e repensaram a própria atividade. É o que o Ernst diz, que aprendemos na escola a explorar recursos, mas não a gerar recursos”.
“Quando eu estava na universidade estudando Agronomia na USP, eu já notava que haviam dois mundos muito separados. Pois, de um lado, tinha o pessoal do agronegócio e, do outro, o pessoal da agroecologia, das ONGs etc. Eles nunca dialogavam, era muito polarizado mesmo”, conta a agrônoma Maria Vitória Constantin Vasconcelos, que depois de formada voltou à Mata do Lobo, fazenda do pai, em Rio Verde, Goiás, disposta a convencê-lo a ceder uma parte das terras para experiências em sistemas de agroflorestas.
“Ele topou, mas precisei passar um ano conhecendo o trabalho dele com as monoculturas de soja e milho. Na faculdade, eu tinha maus olhos para isso, mas ao mesmo tempo pensava que meus estudos e oportunidades vinham daquela atividade”, desabafa Maria Vitória.
“Tem um coisa que pouco se fala, mas o pessoal do agronegócio vive com a corda no pescoço. É um trabalho muito difícil porque é muito dependente dos insumos e de toda a lógica dessa cadeia. Ou seja, temos aí uma oportunidade de levar a esses produtores algo que pode gerar mais autonomia e independência para eles”.
Mudanças na paisagem com a agroflorestal
Em 2017, ela conseguiu uma consultoria com Ernst Götsch na fazenda. Dos 2400 hectares, o pai cedeu 47 hectares para a criação de dois sistemas de agroflorestas. Um com foco na produção de café e outro voltado ao cultivo de limão siciliano, ambos consorciados, com plantios de mandioca, banana, cedro, mogno, eucalipto e diversas outras espécies, seguindo a boa cartilha de princípios (não fórmulas prontas) dessa corrente da agricultura.
“No início, meu pai dizia que era ‘o projeto dos meninos’, referindo-se a mim e meu marido, gestor ambiental. Agora ele já fala em ‘nosso projeto’. Foi muito importante ver como essa mudança, por meio das agroflorestas, trouxe novas possibilidades, abriu nossos olhos e nos deu mais autonomia, mais liberdade, e até as pessoas trabalham mais satisfeitas”, comemora.
Suas conquistas ela compartilha no perfil @matadolobo, no Instagram. Lá é possível ver fotos aéreas dos sistemas de agroflorestas e das experiências com novos maquinários que devem ajudar na viabilização dos sistemas em escalas maiores. “Às vezes, quando estou no meio do campo e olho ao redor e percebo a mudança na paisagem. Hoje muito mais biodiversa, com mais animais e tudo, eu me pergunto, emocionada, por que não vimos isso antes”.
Por Por Giuliana Capello | Yam.com.vc
Comentários