No Acre, propostas para conectar ‘municípios isolados’ a estradas principais tendem a avançar desmatamento já em alta para regiões intactas do bioma; após o Alto Juruá, o Alto Purus é o alvo de políticos
No momento em que a Amazônia registra taxas recordes de desmatamento impulsionado, principalmente, pelo desmonte da política de proteção ambiental promovida pelo governo Jair Bolsonaro (Sem partido), lideranças locais se articulam para tirar do papel projetos de infraestrutura que colocam, ainda mais em risco, a preservação do bioma. É o que acontece, por exemplo, no Acre, com articulações políticas para abrir estradas em regiões hoje intocadas pela ação humana.
Após o projeto da rodovia entre as cidades de Cruzeiro do Sul, no extremo oeste do estado, e Pucallpa, no Peru, na bacia do rio Juruá – que concentra uma das maiores biodiversidades do mundo – agora começam as tratativas para construir uma estrada na região do Alto Rio Purus. A proposta é fazer a conexão rodoviária entre os municípios de Manoel Urbano e Santa Rosa do Purus.
Ambos os projetos têm como principal fiador político o senador bolsonarista Márcio Bittar (MDB-AC), cuja principal atuação no Congresso Nacional é encampar pautas que fragilizam a agenda ambiental do país. Junto com a deputada federal Mara Rocha (PSDB), ele é autor do Projeto de Lei 6.024/2019, que reduz o tamanho da Reserva Extrativista Chico Mendes e transforma o Parque Nacional da Serra do Divisor numa Área de Proteção Ambiental (APA).
Estradas atingem áreas protegidas
Caso de fato se concretizem, as duas rodovias provocariam impactos inestimáveis para duas áreas preservadas da Floresta Amazônica, livres da exploração madeireira, da grilagem de terras públicas e da abertura de áreas para a pecuária – principais atividades econômicas a exercer pressão sobre o bioma no Acre. O estado ainda mantém conservado, dentro de seu território, ao menos 86% de cobertura florestal.
O entorno do rio Purus concentra a maior área de floresta nativa de bambu do planeta. Segundo a Embrapa, o Acre possui 4,5 milhões de hectares de florestas de bambu. A região do Alto Rio Purus ainda é formada por imensas áreas de floresta intactas com espécies de árvores de rentável valor comercial.
No Médio Rio Purus, região que conta com a BR-364 pavimentada, na divisa entre Acre e Amazonas, toda essa riqueza madeireira já é bastante explorada por meio de planos de manejo. A rodovia federal se tornou o principal corredor madeireiro do Acre, com caminhões e mais caminhões “toreiros” trafegando dia e noite.
De acordo com o prefeito de Santa Rosa do Purus, Tamir de Sá (MDB), o objetivo é conectar o perímetro urbano do município a uma estrada de terra batida já adentrou a região do Alto Rio Purus. Segundo ele, a via teria sido aberta, justamente, pela empresa detentora da concessão do manejo madeireiro.
“Nós só temos 82 quilômetros para emendar aqui. O manejo já tem 70 e poucos quilômetros de estrada para chegar aqui. Então eu não vejo diferença nenhuma de chegar até aqui uma estrada, num município com oito mil habitantes, onde só um manejo, sozinho, para eles terem lucro, eles abrem 72 km de estrada e nós não podemos abrir 82 km”, diz o prefeito ao ((o))eco.
A construção da estrada, afirma Sá, iria tirar a população santa-rosense do isolamento, tendo como reflexo principal a redução no custo de vida. Segundo o IBGE, o município é habitado por 6.717 pessoas; Santa Rosa do Purus tem a maior população indígena do Acre; os Huni Kuin (Kaxinawa) e Madijá (Kulina) representam 53,8% dos moradores.
Banhada pelo rio Purus, a cidade apresenta os piores indicadores em termos de qualidade de vida. Entre os 22 municípios acreanos, ocupa a 20o posição no Índice de Desenvolvimento Humano do IBGE: 0,517; já dentro do ranking nacional, fica na 5.473o colocação entre os 5.570 municípios brasileiros.
“Quando se mexe com os mais pobres, para garantir uma melhor qualidade de vida, todo mundo faz barulho. Quando mexe com a riqueza, com o lucro, ninguém fala nada. É o caso do plano de manejo que já abriu 70 km de estrada e ninguém falou nada. Agora que queremos tirar o povo mais humilde do isolamento todo mundo se mete”, afirma Tamir de Sá.
Procurado para comentar a proposta, o senador Márcio Bittar informou, via assessoria, que não se manifestará.
Santa Rosa do Purus, na fronteira com o Peru, está entre os quatro municípios acreanos definidos como “isolados” por só ser possível chegar ou sair por via aérea ou fluvial. O argumento dos defensores da abertura de estradas é que elas tirariam os moradores destas cidades do isolamento, visto como “entrave” para o “progresso e desenvolvimento”.
Uma das principais vozes do movimento indígena acreano, a liderança Francisco Piyãko, do povo Ashaninka, afirma que a construção de estradas na Amazônia é sempre uma imposição de cima para baixo e de fora para dentro, para atender apenas a grandes interesses econômicos. Esse processo, afirma ele, se dá sem levar em consideração as verdadeiras demandas das comunidades impactadas.
“Com relação às estradas eu penso assim: ainda não é uma demanda vinda da comunidade. Ainda é uma imposição de fora. Interesses de fora ou para ser um espaço de escoamento de produto ou para levar pessoas. Mas, com relação às comunidades, ainda está muito longe de ser uma necessidade delas”, afirma ele.
“E temos outro problema que é muito sério. A questão do controle destas estradas. Isso é uma porta, uma abertura muito perigosa para os territórios indígenas, para as unidades de conservação.” Completa Piyãko: “Você vai abrir mais estradas do jeito como está sendo pensado sem nenhuma base preparada, você vai aumentar os conflitos e não vai ter retorno para nossa sociedade. Ao contrário, vai retirar os benefícios que são poucos.”
Secretário-executivo da ONG acreana SOS Amazônia, Miguel Scarcello elaborou sua tese de mestrado sobre os impactos da abertura de rodovias no estado. Scarcello estudou um trecho de 70 quilômetros da BR-364 situados em frente a um mosaico de áreas protegidas do rio Gregório, município de Tarauacá.
“Eu sou da tese de que as estradas na Amazônia são vetores do desmatamento. Isso é comprovado. Vários estudos científicos foram feitos neste sentido. Qualquer abertura de caminhos, estradas como estas, provocam isso”, afirma ele. Segundo Scarcello, a abertura de novas estradas tem como efeito principal o avanço do desmatamento por uma área de 20 quilômetros em ambas as margens.
“Essas estradas vêm com um pacote econômico forte para incentivar desmatamento, principalmente para a bovinocultura, além da retirada da madeira, depois vem o pasto.” No caso de uma eventual rodovia na região do Alto Purus, Scarcello afirma que as nascentes de água tendem a ser as áreas mais prejudicadas.
“Se não vier com pacotes restritivos de ocupação de suas margens, vai causar um efeito nas nascentes dos afluentes que abastecem o rio Purus e outros rios que têm suas nascentes no Alto Purus, e que vão afetar diretamente a oferta de água. Uma perspectiva muito perigosa e grave”, ressalta.
Conforme informações apuradas pela reportagem, o prefeito de Santa Rosa do Purus, Tamir de Sá (MDB), entrou em contato com técnicos do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para saber quais passos deve dar para que o projeto de construção da rodovia – que conectaria a cidade à BR-364 – seja aprovado pelo órgão. A consulta se fez necessária porque grande parte da região está protegida pela Floresta Nacional do Purus.
Além da unidade de conservação, existe a Terra Indígena Alto Rio Purus, formada por 46 aldeias dos povos Huni Kuin (Kaxinawa) e Madijá (Kulina). Portanto, um eventual processo de licenciamento da estrada precisaria contar com o componente indígena e participação da Fundação Nacional do Índio (Funai). Nesta parte da fronteira amazônica Brasil-Peru também há registro de povos indígenas em isolamento voluntário.
A articulação do prefeito santarosense junto aos órgãos no estado, dizem as fontes, está resguardada pelo senador Márcio Bittar, bastante próximo do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. O parlamentar tem influências políticas dentro do ICMBio e Ibama do Acre. A atual superintendente do Ibama, Helen Cavalcante, atuava como advogada dos ruralistas, e foi indicada por Bittar a Salles.
Além da ligação entre Santa Rosa do Purus e Manoel Urbano, também há a proposta de conectar o também isolado município de Porto Walter a Cruzeiro do Sul, no Vale do Juruá. Outra iniciativa é ligar a cidade amazonense de Envira à acreana Feijó, localizada às margens da BR-364. Em ambos os casos, “picadas” (trilhas) chegaram a ser abertas no meio da mata. As obras foram embargadas pelo Ministério Público por não possuírem licenciamento ambiental.
Em outubro de 2020, o governador do Acre, Gladson Cameli (PP), usou suas redes sociais para comemorar a integração entre Feijó e Envira, mostrando fotos de tratores abrindo caminho para a construção da estrada. Por não estar licenciada, foi interrompida.
A abertura destas novas estradas contribuiria para expandir o desmatamento hoje concentrado no entorno da BR-364 – entre a capital Rio Branco e Cruzeiro do Sul – para áreas preservadas da Amazônia. Municípios cortados pela BR-364 passaram a ser pressionados pela abertura de novas áreas para pecuária desde a conclusão de sua pavimentação, nos primeiros anos da década passada.
Não por acaso, tais municípios – tidos como “isolados” até a completa pavimentação da estrada federal – registram os maiores índices de desmatamento e queimadas no Acre nos últimos anos. Segundo dados do INPE, entre 2010 e 2020, Feijó registrou desmatamento de 489 km2. Na vizinha Tarauacá, foram perdidos 318 km2 de floresta. O pico se deu entre 2019 e o ano passado.
Os números estão bem acima do desmatamento registrado no município de Brasiléia, às margens da BR-317, e que desde a década de 1970 sofre com a pressão da abertura de áreas para a agropecuária. Segundo o INPE, na última década foram desmatados 274 km2 em Brasiléia.
Pesquisadora e coordenadora do Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (Labgama), da Universidade Federal do Acre (Ufac), Sonaira Silva tem estudado os impactos da pavimentação da BR-364 na preservação da floresta. De acordo com ela, um dos principais efeitos da abertura e pavimentação das estradas principais é a abertura de ramais, como são chamadas as estradas vicinais na Amazônia, criando o que é conhecido como “espinha de peixe”.
Segundo Sonaira, 87% do desmatamento no Acre está relacionado com a abertura de estradas e ramais. Além de ramais a partir das rodovias principais, nos últimos anos se observa a abertura de estradas paralelas a partir das fazendas de gado localizadas às margens de rios como o Juruá, o Purus e o Envira. Essas “picadas” no meio da floresta tem como objetivo conectar tais propriedades às rodovias, o que facilita o transporte do gado.
“É claro que nem todo desmatamento está associado a estrada, porque a gente tem outra via de transporte importante que são os rios. O Purus, o Tarauacá, o Envira e o Juruá funcionam como estradas, e isso faz com que muito desmatamento ocorra ao longo destes rios.”
Conforme análises feitas pela equipe do Labgama, nem mesmo as unidades de conservação localizadas às margens da BR-364 estão livres das pressões, também com imagens de satélites mostrando a abertura de ramais em seu interior. A criação destas UCs estaduais e federais no entorno da rodovia tinha como objetivo, justamente, proteger a floresta às margens da rodovia do avanço do desmatamento. Todavia, nem as áreas protegidas têm escapado da grilagem.
Para ela, mesmo também contando com unidades de conservação e terras indígenas, a região do Alto Rio Purus pode sofrer as mesmas consequências caso ocorra a construção da rodovia.
“A forma como foram feitas estradas no Acre e na Amazônia não pode continuar, principalmente nestas regiões que são totalmente intactas. Se tiver que ser feita que se pense um novo modelo de gestão de conexão terrestre, senão nosso estado vai ser ainda mais ‘picotado’, mais do que já está”, alerta Sonaira Silva.
Fonte: (O) Eco
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