Acompanhar a devastação do Cerrado nas últimas décadas é um exercício necessário, sobretudo porque o desaparecimento do bioma compromete a segurança hídrica e alimentar do Brasil.
A savana mais biodiversa do planeta já perdeu 55% de sua vegetação nativa e é surpreendente que seja mais conhecida como “celeiro do mundo” do que por sua inestimável contribuição socioambiental.
Num esforço para trazer dados precisos, jogar um holofote sobre a situação e ajudar na tomada de decisões sobre a gestão do bioma, o Lapig/UFG (Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento da Universidade Federal de Goiás) lançou, no final de 2020, a Plataforma de Conhecimento do Cerrado.
A ferramenta virtual, bilíngue e colaborativa permite identificar cronologicamente a situação do uso do solo e da socioeconomia do bioma, associando fatores físicos, dados sociais e de biodiversidade, por meio do cruzamento de dados, inclusive com imagens aéreas.
“O Cerrado precisa urgentemente ser conhecido, só assim teremos a chance de salvá-lo. Sua devastação é resultado de ações e políticas públicas, que desde 1970 foram transformando a paisagem da savana para beneficiar o agronegócio“, diz o professor Ivanilton Oliveira, diretor do Instituto de Estudos Socioambientais da UAFG, no qual o Lapig está inserido.
“É preciso mudar essa ideia de ‘celeiro’ que as pessoas têm sobre a região”, acrescenta.
Água, aquíferos, chuva
Do ponto de vista hidrológico, o Cerrado abriga três dos aquíferos que abastecem o país: Guarani, Urucuia e Bambuí.
A ecologia do Pantanal, a maior planície alagada do mundo, depende da água que flui do Cerrado, enquanto a maioria dos afluentes sul do Rio Amazonas origina-se também neste ecossistema.
O bioma ainda fornece água para o consumo humano e a agricultura através de escoamento superficial, recarga subterrânea e por meio de fluxos na atmosfera para a formação de chuvas em várias regiões do país — recurso beneficiado pela localização central do Cerrado, conectando diversos biomas.
Parcerias e subplataformas
A plataforma, produzida com financiamento de instituições estrangeiras através do Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos (CEPF, na sigla em inglês), levou cerca de seis meses para ser consolidada.
O esforço coletivo envolveu a UFG e diversos parceiros, incluindo ONGs, Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTIC/Inpe), Ministério Público de Goiás e Mapbiomas Brasil.
Dividido em três subplataformas — Socioambiental, Imagens Aéreas e Desmatamento —, o site traz ainda dados estatísticos de 1985 a 2019, tutoriais de geoprocessamento, acervo de fotos e biblioteca digital para livros e artigos científicos relacionados ao bioma.
Todos foram contribuição de instituições públicas, privadas, acadêmicas e organizações ambientalistas.
No ambiente virtual é possível identificar, por exemplo, conflitos territoriais ou conflitos por água em terras indígenas, unidades de conservação, propriedades rurais e territórios quilombolas, denunciados pela Comissão Pastoral da Terra.
A ferramenta permite visualizar os resultados por estado, município ou localização geográfica de interesse próprio.
Pode-se ainda visualizar cartograficamente uma clara divisão na paisagem atual do bioma: o centro-sul já bastante transformado pela bovinocultura e a expansão da fronteira agrícola (especificando os principais tipos de cultivo), avançando para o norte do país, especialmente nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia (região conhecida por Matopiba).
“Canivete suíço”
Segundo Paulo Cícero Lopes, mestrando em Geografia da Unimontes, em Montes Claros (MG), participante de um dos cursos de capacitação para uso da plataforma, trata-se de uma ferramenta muito sólida, intuitiva e clara para quem busca dados precisos.
“Ter tudo num ambiente só possibilita análises não só para organizações ambientalistas, mas também para o poder público, já que são dados que podem melhorar o planejamento do território. Eu diria que é um canivete suíço: dá uma visão do Cerrado como um todo e vai nos ajudar a implementar a boa gestão que precisamos para os recursos naturais desse hotspot”, atesta.
Manuel Ferreira, professor da UFG e coordenador geral da iniciativa, revela que a fonte de inspiração foi o Global Forest Watch:
“Claro que existem várias plataformas que disponibilizam informações sobre o Cerrado; contudo, reunir esse enorme conhecimento numa única plataforma favorece os pesquisadores do Brasil e do mundo no intuito de encontrar e cruzar esses dados com maior facilidade”.
O professor reforça que a plataforma é inédita no Brasil e reitera a necessidade da divulgação e colaboração de órgãos e instituições na constante atualização de dados:
“Na seção ‘Contribua com a Plataforma’, existe um formulário a ser preenchido e um ambiente para o upload de arquivos. Depois de uma avaliação por nossa equipe técnica, o material pode ser disponibilizado publicamente, acompanhado dos devidos créditos e contexto”.
“Nossa intenção é sermos referência nacional para quem pesquisa o Cerrado. Em três meses, já temos muito conteúdo, mas contamos com a contribuição da comunidade acadêmica, órgãos públicos e sociedade civil em prol da preservação do bioma”, conclui o professor da UFG.
Os idealizadores já realizaram quatro capacitações online para acessar a ferramenta, que podem ser consultadas aqui.
Fonte: Mongabay
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