Há poucos dias do Enem, um grupo de servidores do Inep, que coordena o exame, solicitou afastamento dos seus atuais cargos e funções. Para especialistas da USP, situação reflete desmonte da Educação no País
Após enfrentarem mais de um ano de pandemia, estudantes brasileiros de todas as regiões do País precisam lidar com um novo desafio no final de 2021, o Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem.
Ainda que bem-vindo, já que serve como uma das principais portas de entrada para a universidade, neste ano, o exame se vê cercado por uma crise preocupante que envolve a organização responsável pela prova, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Há poucos dias da avaliação, que será aplicada em 21 e 28 de novembro, um grupo de servidores do Inep solicitou afastamento dos seus atuais cargos e funções. O que começou com um pedido coletivo de dispensa de cargo, inicialmente assinado por 13 servidores, cresceu para englobar um conjunto de 37 funcionários que, até o dia 8 de novembro, citaram ”falta de comando técnico” e “clima de insegurança e medo”, promovido pela gestão atual do presidente do Inep, Danilo Dupas Ribeiro.
Também conhecidos como funcionários de carreira, os exonerados deixam apenas seus cargos comissionados, mas permanecem trabalhando no órgão, sem exercerem função de coordenação ligada ao Exame.
Em mensagem enviada à diretoria, o grupo afirma que a solicitação “não se trata de posição ideológica ou de cunho sindical”. Além disso, os funcionários reiteram que Dupas Ribeiro promoveu um desmonte no órgão, com decisões sem critérios técnicos, segundo denúncia da Associação de Servidores do Inep (Assinep).
A preocupação levantada pela atual crise acomete o Enem, que, com pouco mais de 3,4 milhões de inscritos neste ano, fica sob risco de falhas em sua aplicação. Em nota oficial, o Inep confirmou a data de aplicação das provas e defendeu que elas não serão afetadas pelos pedidos de demissão. O ministro da Educação, responsável pela indicação de Dupas Ribeiro à presidência do Inep, ainda não se pronunciou sobre a crise.
A complexidade do Enem
Para Renato Janine Ribeiro, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e ex-Ministro da Educação, a situação atual é vista “com muita preocupação”.
A crise na gestão “indica realmente que nem o Inep nem o MEC dão a devida importância a esse exame que é o segundo maior do mundo, somente superado pelo Gaokao, na China”, alerta Janine Ribeiro.
De acordo com o professor, a diminuição no número de inscrições em relação aos anos anteriores, em especial dos estudantes mais pobres, já dava o alerta para a edição de 2021.
“O fato de haver poucas inscrições indica um certo desânimo”, comenta o ex-ministro. “É possível que muitos alunos de escola pública acreditem que não vão poder concorrer por causa do ensino remoto de pouca qualidade, oferecido durante a pandemia.”
Para ele, é urgente que o presidente do Inep receba os funcionários exonerados para uma série de conversas, antes da aplicação da prova. “O presidente do Inep precisa tomar as medidas que não tomou até agora. Ele tem que receber os demissionários e atender os pedidos deles, porque são pessoas que entendem do assunto muito mais do que o próprio ministro da Educação e muito mais do que o presidente do Inep”, pontua.
Fato é que o Enem é um dos exames educacionais mais complexos do mundo, já que o Brasil é um país de dimensões continentais, que sofre com a desigualdade de suas diferentes regiões, mas que precisa aplicar uma prova de maneira equânime e simultânea para todos. E é papel da equipe de coordenação do Inep garantir a segurança deste processo, não apenas nas etapas anteriores à prova, mas principalmente durante sua execução.
“O Enem exige uma logística muito boa que foi sendo aprimorada ao longo dos anos”, comenta o professor ao enumerar as situações de emergência que podem afetar a realização do exame. “Por exemplo, cada pacote de provas tem um relógio que indica a hora em que ele foi aberto; se (o pacote) for aberto antes da hora devida, isso pode indicar fraude.” Se um carro que entrega as provas sofrer um acidente, faltar luz em uma escola que aplica ou, por algum motivo, juízes de primeira instância tentarem impedir a aplicação da avaliação via liminar, a equipe do Inep precisa estar a postos para intervir e resolver a crise. “E a equipe que se exonerou lida com esse tipo de emergência”, reforça Janine Ribeiro.
De onde veio a crise
“O governo Bolsonaro sempre interpretou o Enem como algo a ser desconstruído, como um entrave às políticas da gestão, e não como uma política de Estado, de democratização do acesso ao ensino superior”, sintetiza Daniel Tojeira Cara, professor e pesquisador da Faculdade de Educação (FE) da USP.
Para ele, embora todo vestibular tenha componentes excludentes, nas últimas décadas, o Enem se transformou em um exame “bem estruturado e inteligente”, que permite ingresso em universidades no Brasil e até fora dele.
Em 2021, a prova recebeu diversos ataques que partiram de dentro da gestão federal, exigindo até mesmo a intervenção da Justiça, que decidiu que não iria acatar o pedido da Defensoria Pública da União sobre a isenção da taxa de inscrição do Enem 2021 para quem faltou ao exame por medo da pandemia.
“O governo atual considera que o conhecimento estabelecido em avaliações como o Enem seja um conhecimento com viés ideológico, e o resultado disso são ataques em diversas formas”, argumenta Cara. Para ele, isso gerou uma crise interna no Inep que, em novembro, tomou enormes proporções. “O que o Danilo Dupas decidiu fazer neste ano foi responsabilizar os servidores pelos equívocos da gestão. Ele deixou de investir no caráter logístico do Enem e, ao mesmo tempo, foi responsabilizando os servidores pelas decisões que deixava de tomar”, afirma.
A logística do Enem envolve, entre outros aspectos, a segurança da prova, que já passou por diversas crises no passado.
Na opinião do professor, a equipe tomou uma “decisão acertada” ao se afastar dos cargos de coordenação, ainda que permaneçam como funcionários do instituto. “Eles continuam fazendo a gestão do exame, mas sem a responsabilização”.
Para Cara, a saída estrutural para a crise só poderá ser alcançada na mudança do governo. “Enquanto estivermos sob o governo Bolsonaro, o Enem estará sob ataque.”
Falha na comunicação
Para Reynaldo Fernandes, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP) da USP e presidente do Inep entre 2005 e 2009, existe uma clara “queda de braço entre funcionários e o [atual] presidente do Inep”, entretanto, “espera-se que, a essa altura, todas as questões estruturais envolvendo o Enem já estejam equacionadas”.
Evidentemente, de acordo com o professor, percalços podem acontecer durante a execução do exame, por isso “são feitas comissões que ficam de plantão para resolver problemas” e a ausência dos funcionários exonerados pode impactar na solução desses possíveis conflitos.
Sobre a motivação por trás dos afastamentos, Fernandes teoriza que a insatisfação dos funcionários não surgiu agora. “A informação que eu tenho é que há uma certa insatisfação já há muito tempo. Foram várias trocas de ministro, trocas de presidente [do Inep], falta de continuidade na gestão”, lista ele com receio.
Preencher o vácuo deixado pelos coordenadores deveria ser prioridade para o Inep, na opinião do ex-presidente.
De acordo com o professor Mozart Neves Ramos, especialista em educação pública, ex-secretário de Educação do Estado de Pernambuco e atual titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP-Polo de Ribeirão Preto, “só se faz educação se tiver diálogo permanente, tanto horizontal quanto vertical. Ou seja, é preciso conversar entre seus pares, mas também conversar com o pessoal técnico, para melhorar os processos e resultados da instituição”.
A ausência de conversa entre funcionários e o comando do Inep, teoriza Ramos, não surgiu com a gestão de Dupas Ribeiro, embora possa ter sido exacerbada durante o período. “Essa crise vem se arrastando em alguns momentos de maneira quase que silenciosa, em outros, com ruído bastante elevado”, afirma o professor ao lembrar que o presidente anterior do órgão, Alexandre Lopes, foi exonerado em fevereiro deste ano.
“O então presidente Alexandre vinha articulando, com diferentes setores de educação, o aperfeiçoamento dos processos educativos, que incluíam o próprio Enem, em função de uma mudança importante do novo ensino médio. Ele foi subitamente exonerado e aí veio o atual presidente, uma pessoa de confiança do ministro da Educação, mas que não estava a par da estrutura do Inep”, conta ele.
O professor também concorda que a insatisfação da equipe diante da falta de diálogo e do possível desconhecimento de Dupas Ribeiro sobre o funcionamento do instituto pode ter levado o grupo aos afastamentos. “Era melhor não estar na função para não incorrer em insucesso”, sumariza Ramos.
“Não ter aberto o diálogo com esses técnicos num momento tão crucial é uma demonstração do que não se faz. A educação exige esse diálogo permanente, mesmo quando temos posições distintas”, defende o professor.
“Intervenção saneadora”
Para José Marcelino de Rezende Pinto, professor e pesquisador da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP e ex-diretor do Inep, os profissionais envolvidos na coordenação do Enem são “muito qualificados” e ao tomarem uma atitude radical como a exoneração coletiva dão motivo para preocupação geral.
A atitude firme, para o professor Rezende Pinto, envolve defender os interesses dos milhões de estudantes que prestarão a prova nos próximos dias, boa parte deles, prejudicada pela pandemia. “O Brasil já é um país de acesso à educação superior extremamente excludente”, reforça.
Na opinião dele, diante da crise, as medidas cabíveis deveriam envolver inclusive o Congresso Nacional. “Não adianta chamar apenas o presidente do Inep, precisaríamos da atuação do Congresso Nacional, precisamos chamar esses servidores, principalmente aqueles que ocupavam cargos estratégicos em relação ao exame, para tentar entender o que está acontecendo, e o que são essas acusações”, postula o especialista.
Além de convocar os funcionários para esclarecimentos, o professor avalia se o adiamento da prova seria uma possível solução a essa altura do ano. “O adiamento do Enem é algo que gera impactos gigantescos, e isso nos preocupa.”
Para o professor, para contornar o problema e evitar novas crises, seria necessária uma “intervenção saneadora”, não apenas no Inep, mas no próprio Ministério da Educação, quem sabe, envolvendo até mesmo o Poder Judiciário.
Ao longo da entrevista ao Jornal da USP, o ex-diretor do Inep relembra momentos em que o atual ministro, Milton Ribeiro, o quarto a assumir a pasta durante o governo de Jair Bolsonaro, foi pivô de polêmicas envolvendo o acesso ao ensino superior no Brasil.
Em entrevista à TV Brasil, Ribeiro afirmou que as “vedetes” do futuro seriam os institutos federais, capazes de formar técnicos. As universidades, segundo ele, “não são tão úteis à sociedade”.
Outra polêmica envolveu uma crítica do ministro ao conteúdo cobrado em edições anteriores do Enem. Em entrevista à CNN Brasil, em junho deste ano, ele citou uma pergunta sobre a diferença salarial entre os jogadores Neymar e Marta, e outra que aborda o dialeto de gays e travestis (pajubá).
Na mesma ocasião, o ministro manifestou o desejo de ter acesso prévio ao exame para evitar o que chama de “questões de cunho ideológico”. Foi necessária uma declaração do presidente do Inep, Dupas Ribeiro, esclarecendo que o ministro da Educação não participaria da elaboração do exame.
Levando tudo isso em consideração, o professor Rezende Pinto vai mais longe e coloca em foco questões estruturais que envolvem a atual gestão do ministério. “Hoje quando você analisa, por exemplo, o orçamento do MEC em relação ao melhor ano, 2012, o atual gasto federal com educação superior está menos da metade, corrigido pela inflação, em relação ao de nove anos atrás. Quer dizer, tivemos uma expansão muito grande até 2016, o Brasil praticamente dobrou as vagas nas universidades federais. O que foi uma grande conquista, mas, a partir do governo Temer e principalmente do governo Bolsonaro, começou um corte sistemático”, conta ele.
Para os especialistas, a crise demonstra a despreocupação do atual governo com a educação no Brasil. De acordo com o ex-ministro Janine Ribeiro, “o MEC é muito complexo, mas você tem um corpo técnico muito adequado, você precisa escutá-lo. Você não constrói uma equipe qualificada da noite para o dia”.
“É muito fácil destruir, mas muito difícil construir”, finaliza o professor.
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