A política ambiental no Brasil inaugurou componentes imponderáveis desde 2019, com a gestão do presidente Bolsonaro e do ministro Ricardo Salles. Trata-se da obscura arte de “fazer passar a boiada”. Este fenômeno também pode ser citado como efeito arapuca. A arapuca é uma armadilha para animais incautos. Versão de estratagema, armadilha, é uma forma enganosa de, de forma disfarçada, enganar e atingir o objetivo de captura.
O efeito arapuca, na política ambiental, pode ser sentido na captura da área de fiscalização do Ibama, especialmente com a neutralização de um importante elemento pedagógico para convencimento dos infratores, que é golpear o plexo “bolsar”, ou seja, multar, fazer pesar no bolso do transgressor as inflações ambientais. Sim, aquilo mesmo que ocorreu com Bolsonaro quando pescava de forma ilegal perto de Angra dos Reis, e que lhe rendeu uma multa de R$ 10.000,00.
A arapuca normativa, como decreto, resolução, portaria ou despacho, para ser eficiente, vem revestida do disfarce, da burla, com aparência até de melhoria, ou “avanços”, como “menor burocracia, agilização, modernidade”. Também é frequentemente atestada por frases vazias, desde que afirmadas com convicção, como “tudo foi analisado”, “todo o aprofundamento foi feito”, “em conformidade com toda a normativa” etc.
A arapuca normativa atingiu o sistema de multas do Ibama com o Decreto 9.760/2019, que cria a comissão de conciliação ambiental, que tem funcionado para engavetar multas. Isso envolve bilhões de reais que deixam de ingressar nos cofres públicos. Recentemente foi instaurado outro mecanismo de neutralização, centralizando poder decisório em “autoridades hierarquicamente superiores”, acima dos agentes autuantes, com prazos exíguos para análise e que podem anular os atos dos fiscais (Instrução Normativa Conjunta MMA/Ibama/ICMBIO Nº 1, de 12 de abril de 2021).
Agora a boiada estourou. Depois de tanto tempo de impunidade, começa a passar em escala ampliada e agressiva, que inclui ação direta do ministro em defesa dos degradadores como no caso de apreensão recorde de madeira na região Amazônica, processo em investigação pela Polícia Federal.
A realidade e a prática estão visivelmente desassociadas das promessas. As metas de contenção do desmatamento até 2022 apresentam cálculos absurdos, permissivos, de mais de 8.700 km² por ano, enquanto Bolsonaro sinaliza com promessas de que estes números serão zerados até 2030.
A ação deslavada do ministro em defesa dos desmatadores levou o superintendente da Polícia Federal do Amazonas a encaminhar representação ao Supremo Tribunal Federal, contra Salles e o presidente do Ibama, pela prática de advocacia administrativa. Para piorar as coisas, ato contínuo o superintendente da PF foi afastado, e o caso virou escândalo nacional. A passagem de boiada foi explícita, arrombou a porteira e evoluiu para a truculência. Lideranças políticas imediatamente encaminharam representação ao MPF para apuração dos fatos e o procurador do Ministério Público junto ao TCU pediu o imediato afastamento do ministro do Meio Ambiente. Alega que Salles pode provocar novos prejuízos ao patrimônio ambiental brasileiro.
Como se todos fôssemos ingênuos, o governo do Brasil caminha para a Conferência do Clima convocada por Joe Biden com uma posição completamente ambígua. A realidade e a prática estão visivelmente desassociadas das promessas. As metas de contenção do desmatamento até 2022 apresentam cálculos absurdos, permissivos, de mais de 8.700 km² por ano, enquanto Bolsonaro sinaliza com promessas de que estes números serão zerados até 2030. Não há ambição climática, mas sim uma salada de números que tenta dar uma aparência de esforços enquanto a realidade apresenta preocupante aumento do desmatamento. Mais uma arapuca, desta vez voltada à área internacional, que não padece absolutamente de credulidade.
Há duas perguntas para este momento: primeiro, como uma sociedade inteligente, que possui uma legislação ambiental entre as mais avançadas do mundo, está permitindo este estado de coisas há mais de dois anos? Segundo, que tipo de influência nefasta sustenta no poder um ministro que, em um país ambientalmente tão rico como o Brasil, de forma reiterada – e agora confessa – trabalha contra o meio ambiente?
Será que seu estratagema para a passagem da boiada, baseado na distração da mídia em função da pandemia, continua a funcionar? Não acredito nisso.
O estratagema obscuro da boiada, revelado há mais de um ano, concretizou-se em fatos explícitos. Em conversas com instituições ambientais e especialistas em direito ambiental, tem surgido a constante afirmativa de que há um nível detectável de tibieza dentro das instituições que deveriam agir como salvaguarda da Constituição Federal, do Meio Ambiente e da Sociedade Brasileira.
Tudo tem um limite. A obscura arte de fazer passar a boiada não pode continuar a usar a ingenuidade do povo e a tibieza das instituições. Há forças degradadoras envolvidas que parecem ter capturado a ação estatal. Os fatos merecem uma profunda investigação. Jamais poderemos admitir que instituições brasileiras encarregadas de fazer cumprir a lei, como se ingênuas fossem, continuem reféns deste efeito arapuca, de estratagemas para a passagem da boiada, visíveis nas atuais práticas dos representantes do Ministério do Meio Ambiente.
Fonte: O Eco – Coluna Carlos Bocuhy
Comentários