Quando o regime ordenou que fossem queimados publicamente
Bertolt Brecht, Poemas 1913-1956
Os livros que continham saber pernicioso, e em toda parte
Fizeram bois arrastarem carros de livros
Para as pilhas em fogo, um poeta perseguido
Um dos melhores, estudando a lista de livros queimados
Descobriu, horrorizado, que os seus
Haviam sido esquecidos. A cólera o fez correr
Célere até sua mesa, e escrever uma carta aos donos do poder.
Queimem-me! Escreveu com pena veloz. Queimem-me!
Não me façam uma coisa dessas! Não me deixem de lado! Eu não
Relatei sempre a verdade em meus livros? E agora tratam-me
Como um mentiroso! Eu lhes ordeno:
Queimem-me!
Em Retrato do Acervo, documento publicado em 10 de junho do ano corrente, sob a coordenação de Marco Frenette, consta a denúncia de “Três Décadas de Dominação Comunista na Fundação Cultural Palmares (1988-2019)”, como vemos enunciado no subtítulo. O alvo da inquirição foi a biblioteca. E as “pesquisas, leituras [leram?] e triagem” dos malfadados livros ficaram a cargo de Marco Frenette, Isabella Maria Silva Barbosa, Gustavo Carvalho da Silva e Guilherme Bruno, profissionais atuantes no Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra (CNIRC). Segundo o introito assinado pelo presidente da fundação, a este inventário seguem outros dois: um relativo ao material museológico e outro ao iconográfico. Aguardemos as novas peças do auto. Antes, passemos brevemente em revista o fruto da primeira triagem.
O relatório apresenta 73 páginas, nas quais constam a descrição do acervo bibliográfico; a formação histórica da biblioteca; a “triagem dos livros por meio da definição de seus conteúdos”; uma lista final contendo 300 títulos que devem ser excluídos do acervo; além de duas seções que os autores chamam, curiosamente, de “Acervo Imaginário” (p. 23) e “Acervo Real” (p. 24). Em termos concretos, a Biblioteca Oliveira Silveira da Fundação Cultural Palmares – cujo patrono, inclusive, é objeto de questionamento – compõe-se de “9.565 títulos”. O resto é imaginação.
Falta ao estudo um trato biblioteconômico, o que se depreende dos aspectos formais, por exemplo, as referências bibliográficas são incompletas; mas também de questões técnicas, que se expressam, dentre outros equívocos, na crítica aos relatórios anteriores, pautados na quantificação do acervo em números de volumes. Isso sem contar a ideia segundo a qual os livros publicados antes do novo acordo ortográfico estariam ultrapassados! Parafraseando Marx e Engels, nenhuma biblioteca resistiria à crítica roaz dessa equipe!
Também a peça acusatória, que consiste em afirmar que 46% da coleção se destina à temática negra (ou seja, 4.400 títulos) e 54% à “temática alheia à negra (5.165 títulos)”, carece de coerência externa. Para aqueles que ainda duvidam que a questão negra é uma questão nacional e de classe, eu os convido a visitar, diariamente, os jornais e a mídia televisiva. No Brasil de hoje a população negra é alvo de grande parte “das balas perdidas” nas ações policiais em comunidades e periferias. Some-se a essa tragédia os casos de feminicídio, homofobia, trabalho escravo, para citar apenas as mazelas mais evidentes. Mas também falta ao relatório uma coerência interna. Ao distinguir os livros nas duas categorias supracitadas, os organizadores contradizem as sábias palavras de Sérgio Camargo, presidente da fundação: “Somos um só povo, e são o caráter, o esforço e a honestidade que devem nos definir, e não a cor da pele” (p. 5).
Existe, sem dúvida, uma abordagem autoritária na relação que se coloca entre literatura e público, tal como ela se expressa em Retrato do Acervo. Pois, se como reza o regimento, cabe à fundação preservar, integrar, produzir e divulgar “a cultura de matriz negra” de nosso país (pp. 11-12), sem, como assume o texto, descuidar do caráter universal que a temática impõe, aos gestores não se reserva o direito de expurgar os livros constantes no acervo, sob nenhum argumento, o que dirá sob justificativas tão frágeis. Em matéria veiculada sobre o tema, o jornal O Globo demonstrou os malefícios dessa “cruzada ideológica”, fundada em leituras apressadas e tendenciosas que resultam, para citar um único exemplo, em tomar um livro de Hobsbawm, Bandidos (Paz e Terra, 2012), como uma apologia ao banditismo. Outros erros foram denunciados pela grande imprensa nesta última semana. Quisesse o presidente enriquecer o acervo em respeito aos “cidadãos brasileiros pagadores de impostos” (p. 11), bastava adquirir novas obras, restaurar as brochuras carcomidas, possivelmente, pelo uso excessivo, seguir, enfim, o bom princípio segundo o qual biblioteca boa é aquela que atende à demanda do público.
Evoé Luiz Gama! Evoé Machado de Assis! Evoé Osvaldo de Camargo (cujo sobrenome não é mera coincidência em relação ao presidente da Fundação Palmares)! Evoé Paulo Lins, Carolina Maria de Jesus, Clóvis Moura, Marighella, Conceição Evaristo… Temo, todavia, que o projeto de enriquecimento e atualização da biblioteca, como deseja nos fazer acreditar o documento em tela, não se converta na abertura efetiva do acervo para tantas vozes. Diante dos nomes evocados por Sérgio Camargo, cabe perguntar quantas outras vozes não foram silenciadas, para além dos autores expressamente expurgados na lista de 300 títulos que encerra o documento. Quero crer, todavia, que aqueles escritores hoje homenageados pela Fundação Palmares, juntar-se-iam, num só coro, aos esquecidos e expurgados pela mesma instituição.
E, a exemplo do “poeta perseguido” de Brecht, ao se descobrir ignorado na grande queima de livros comandada por Goebbels, na noite trágica de 10 de maio de 1933, também eles, enrubescidos, quase em delírio, gritariam: “Queimem-me!” – justamente por lhes parecer insuportável a desonra de uma homenagem feita em tais circunstâncias: quando a tragédia se torna uma grande farsa.
Fonte: Jornal USP
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