Quando eu soube que já tinha sido contaminado pela Covid-19, 48 dias depois dos sintomas, comemorei. A confirmação veio após fazer um teste no final de abril. Na ocasião, pensei: “Oba! Quem sabe estou livre”. Não diria que estou seguro de que não vou mais me infectar, porque já surgiram variações do vírus. Mas me senti um pouco mais confiante de ter certo grau de imunidade. Acredito que o risco de transmitir também seja menor. Não que isso diminua os cuidados necessários.
Adoeci entre os dias 8 e 10 de março. Não tive febre e nenhum desconforto respiratório, apenas uma cefaleia muito grande, uma moleza, um mal-estar somado à boca sempre seca. Mas não perdi o paladar nem o olfato. Cheguei a ligar para dois colegas infectologistas, que me aconselharam a fazer testes para dengue e gripe H1N1, que deram negativo. Mesmo assim, fiquei isolado em casa com minha mulher e meu filho. Até agora, eles não tiveram Covid-19. Com 10 dias já estava melhor. Depois que melhorei, nós três e minha sogra deixamos Fortaleza e fomos para nossa outra casa que fica na praia do Morro Branco, no município de Beberibe, e passamos uns seis meses por lá, entre idas e vindas para a capital, para trabalhar.
Desde o final de março até meados de agosto tivemos que parar de 85% a 90% dos trabalhos com a pele de tilápia, do qual sou coordenador-geral. Hoje somos uma rede de grupos de pesquisa composta por 242 pessoas em oito estados brasileiros (Ceará, Pernambuco, Goiás, Paraná, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo) e sete países (Colômbia, Holanda, Alemanha, Estados Unidos, Argentina, Equador e Portugal). Paralisamos todas as pesquisas em humanos, em animais e em laboratório.
Começamos esses estudos há seis anos. Iniciamos usando a pele esterilizada no glicerol e armazenada em geladeira para uso na cicatrização de queimaduras. Depois partimos para os estudos na área de ginecologia, utilizando a pele para a reconstrução do canal vaginal, inclusive em cirurgias de redesignação sexual para mudança de sexo de homem para mulher. Agora no final de novembro enviamos um lote de peles para um grupo de Cali, na Colômbia, que faz parte da nossa rede de pesquisa, que acabou de retomar as cirurgias de redesignação. Essa pele também tem sido testada para o tratamento de úlcera varicosa. Ela já passou por todas as fases de testes clínicos em animais e em humanos.
Mais recentemente desenvolvemos a pele de tilápia liofilizada, que é desidratada, irradiada, embalada a vácuo e que não precisa de refrigeração, por isso pode ficar em prateleiras e tem validade de dois anos. Nós já testamos em pessoas e animais queimados, na ginecologia, na veterinária e até para aplicações na odontologia. Ela está na fase clínica 3 e assim que finalizar poderá ser registrada e comercializada.
Fora isso, temos outros produtos em desenvolvimento e que já estavam sendo testados em animais. Um deles é a placa de matriz de colágeno, extraída da pele da tilápia, para uso interno no organismo. Foram dois anos e meio para o seu desenvolvimento. Ela está sendo testada em telas para hérnia abdominal em animais; na urologia, com faixas para levantar útero, bexiga e pênis; em válvulas cardíacas; e também em animais para a neurocirurgia. Tudo isso está em fase experimental. Essa placa funciona como um arcabouço que facilita o processo de cicatrização. Ela não tem células do peixe, é feita de colágeno puro. Ainda há a possibilidade de utilizar o colágeno em produtos cosméticos para a pele. São várias pesquisas e precisamos organizar tudo muito bem, planejando passo a passo.
Sempre que um novo grupo passa a trabalhar com a gente, vamos pessoalmente até o local, oferecemos palestras, treinamento e material. Infelizmente, com a pandemia, isso ficou paralisado. Mas pretendemos retomar tudo no ano que vem, se for possível. Por enquanto nos reunimos virtualmente com os grupos de pesquisa. E tive umas três reuniões presenciais com o núcleo de coordenadores de alguns grupos. Desde setembro já participamos de 35 palestras on-line e lives via redes sociais para falar das pesquisas. Há uma grande procura. Nós nos dividimos entre os pesquisadores para dar conta de tudo.
Como os grupos ficaram em casa, trabalhando em home office, os alunos de mestrado e de doutorado conseguiram avançar na publicação de artigos científicos em revistas nacionais e internacionais: publicamos oito durante o período da pandemia. Nesse sentido, acho que até deu uma acelerada no processo, porque muitos revisores das publicações ficaram em casa e tiveram mais tempo de analisar os trabalhos, e nós, de corrigir o que eles pediam. Agora, houve certo prejuízo na produção de artigos sobre novos projetos que tiveram suas pesquisas interrompidas. Esses vão demorar mais para sair.
Nesse meio tempo, uma novidade é que um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Ceará [UFC], do qual faço parte, e a empresa que financiou a pesquisa da tilápia no glicerol, a Enel Brasil, está em tratativas avançadas para licenciar a comercialização do produto no país. Ela precisará fazer o registro na Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] e construir a fábrica. Selecionamos uma empresa brasileira, entre inúmeras daqui e do exterior que se candidataram. Acredito que em breve teremos algo consolidado. É um produto que utiliza material que iria para o lixo. Além disso, tem um grande potencial de gerar mão de obra. Uma condição da qual não abrimos mão, durante a conversa com as empresas, é a de que o produto precisa ter um baixo custo, para que chegue primeiro à rede pública de saúde. Porque 97% dos pacientes que se queimam não têm plano de saúde. Por isso, o Sistema Único de Saúde [SUS] é o maior beneficiário com pesquisas desse porte.
Um acontecimento importante desse período, para nós, foi ganhar o prêmio Euro Inovação na Saúde, patrocinado pela empresa farmacêutica Eurofarma. É um grande e importante reconhecimento para a pesquisa. O valor do prêmio é de € 500 mil. Isso quer dizer que vamos receber cerca de R$ 2,5 milhões, brutos. A UFC ficará com a metade do valor líquido, descontados os impostos, porque a parte laboratorial da pesquisa acontece lá, no Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos. Já ganhamos outros 15 prêmios, em primeiro lugar, tanto no Brasil como no exterior.
Logo depois vieram os convites para as missões. Ainda em agosto, com a tragédia da explosão no Líbano, fomos convidados por colegas cirurgiões plásticos de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília para ajudar. Fizemos um levantamento do nosso estoque e conseguimos enviar 130 peles de tilápia por meio de um grupo que não é ligado à nossa rede. Infelizmente, além do acidente, estava ocorrendo uma verdadeira catástrofe financeira somada à pandemia. Por isso, não conseguimos enviar ninguém da nossa equipe e não tivemos retorno do resultado.
No final de setembro veio o convite para ir ao Pantanal. A ONG Ampara Animal nos chamou para ajudar os animais queimados por lá nos incêndios que devastaram a região. Enviamos uma equipe de quatro pessoas no começo de outubro, todos pesquisadores da UFC, como biólogos e veterinários. Eles ficaram lá por uma semana e socorreram animais silvestres como antas, sucuris, tamanduás-bandeira, veados-catingueiros e queixadas. Nossa veterinária Behatriz Odebrecht deu palestras e fez o treinamento presencial de como aplicar a pele naqueles animais de grande porte. Levamos 130 peles de tilápia e depois enviamos mais 70. Foi um grande aprendizado, a primeira vez em que usamos esse material, no formato liofilizado, em animais silvestres. Continuamos acompanhado a recuperação deles.
Ainda em outubro, 18 dias depois do retorno do Pantanal, fomos convidados pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro, em Uberaba, para uma nova missão. Aconteceram algumas queimadas por lá também. Dessa vez apenas a Behatriz foi, deu todo o treinamento e atendeu um tamanduá com queimaduras e outros animais como cachorros, gatos e uma égua, que tinham outros tipos de ferimentos acidentais. Também levamos 40 peles e ensinamos os pesquisadores como utilizar em cada tipo de caso.
No final de setembro começamos a retomar as pesquisas laboratoriais na UFC. Já voltamos com 50% das atividades. Acredito que até março de 2021 tudo esteja normalizado. Também vamos reabastecer o nosso estoque de peles. Em dezembro estamos preparando um lote de 800 e em janeiro prevemos mais mil. É exatamente o que precisamos para toda a pesquisa prevista para o ano que vem. A não ser que apareçam grandes missões: esperamos que não, porque com elas geralmente vêm grandes tragédias.
Fonte: FAPESP
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