Uma lei sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro alterou as diretrizes da educação de surdos e abriu espaço para o fomento de escolas especiais. A legislação tem apoio da comunidade surda, mas há resistências entre especialistas relacionadas à intensificação da segregação de crianças e jovens.
Com a nova lei, sancionada na terça-feira (3), que atualizou a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), a educação bilíngue de surdos ganha status de modalidade própria, independente da educação especial.
Com isso, a Libras (Língua Brasileira de Sinais) passa a ser a primeira língua nessa modalidade e a língua portuguesa, a segunda.
Hoje já existem escolas para surdos, assim como escolas especiais para pessoas com outros tipos de deficiência. Mas o regramento sobre educação especial preconiza a oferta escolar inclusiva, com alunos matriculados preferencialmente em escolas comuns.
A previsão agora para a educação de surdos é de uma oferta escolar especializada e separada. A lei, no entanto, pontua que a efetivação do texto deve ocorrer sem prejuízo “das prerrogativas de matrícula em escolas e classes regulares, de acordo com o que decidir o estudante ou, no que couber, seus pais ou responsáveis”.
Especialistas ressaltam que a comunidade surda é bastante heterogênea, com indivíduos com surdez profunda, oralizados (usam a língua portuguesa e fazem leitura labial), com deficiência auditiva (que podem usar aparelhos auditivos), sinalizados (comunicam-se em Libras) e bilíngues.
Em 2017, o tema ganhou destaque no debate nacional ao ser abordado como tema de redação do Enem. O argumento de boa parte da comunidade surda é que o princípio da inclusão, mesmo que bem-vindo, não teria provocado impactos de aprendizado para esse público.
Para eles, os alunos não aprendem nas escolas comuns e não basta ter intérprete de Libras na escola, mas sim que é preciso um projeto pedagógico e curricular direcionado. A Feneis (Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos) se posiciona a favor da mudança.
Até agora, a legislação desconsideraria “as especificidades linguísticas e culturais dos surdos e a necessidade de metodologias específicas para o seu processo de ensino e aprendizagem”, segundo nota publicada pela entidade.
O professor Valter Lenine Fernandes é surdo oralizado e sinalizado e hoje atua como docente do IFSul (Instituto Federal Sul-Rio-Grandense) e do programa de pós-graduação de História da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Para ele, a lei é um avanço e torna o debate mais visível sobre outras possibilidades de legislação das inúmeras culturas surdas.
“A lei é clara no aspecto que define o público: uma parcela da população que usa a Língua Brasileira de Sinais. Acredito que o grande questionamento se dá pela comunidade de surdos oralizados, um medo de que essa possa ser a única via de ensino e aprendizagem, anulando todas as possibilidades da tecnologia”, diz.
“Não acredito na segregação, mas sim em mais uma possibilidade de pensar investimentos públicos para um grupo da comunidade surda que há anos, em diferentes gerações, vêm lutando pelo reconhecimento da sua cultura”.
Essa alteração legal é fruto de demanda antiga de parte da comunidade surda. Mas a abordagem encontrou ressonância no atual governo sobretudo pela atuação da primeira-dama, Michele Bolsonaro.
A lei prevê que a União assegure recursos financeiros e apoio técnico para implementar a medida. Questionado sobre eventuais planos, o MEC (Ministério da Educação) não respondeu.
Um decreto federal, de setembro, estipulou a nova Política Nacional de Educação Especial também com maior incentivo ao atendimento em escolas especiais. Alvo de críticas por contrariar o princípio da inclusão, o decreto teve os efeitos suspensos por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal).
Há no Brasil cerca de 10,7 milhões de pessoas com surdez ou deficiência auditiva, segundo levantamento do Instituto Locomotiva. O censo populacional de 2010 apontava uma população de 9,7 milhões.
Na educação básica, há registro de 62.581 matrículas de crianças e jovens com surdez ou deficiência auditiva. Desses, 12% estão em classes especiais, segundo o Censo Escolar de 2020.
A oferta de Libras nas escolas não é novidade do texto. Isso é previsto há 16 anos, desde decreto sobre sua incorporação no sistema de ensino, não como primeira língua, e a formação de professores de Libras. A oferta, no entanto, não é disseminada.
Apesar de defasados, os números do Censo 2010 apontam um cenário de grande exclusão. A população surda e com deficiência auditiva somava 616 mil crianças e adolescente de até 14 anos.
Raquel Franzim, do Instituto Alana, diz que as demandas da comunidade surda são legítimas, mas, para ela, os desafios de aprendizado desses estudantes têm relação com as precariedades de todo o sistema educacional.
“Há muitos surdos que já estão em escolas regulares e precisamos melhorar o atendimento transformando as escolas para todas as crianças, e não criando novos espaços apartados. Até porque ninguém vive numa sociedade com empresas só com pessoas surdas ou moradias só de pessoas surdas”, diz ela, que é diretora de Educação e Cultura da Infância da entidade.
Para Franzim, a lei deve, por um lado, fomentar a segregação escolar e, por outro, não se adequar à realidade brasileira.
“As pessoas estão espalhadas pelo território, muitas vezes tem uma escola no município, com um ou dois estudantes surdos. É melhor uma escola para todos os estudantes, concentrar os esforços e recursos na escola comum”.
O bilinguismo abordado de forma ampla nas escolas seria um passo importante, diz Franzim. “Deveríamos pensar a Libras como campo de conhecimento, com culturas, saberes e interações muito ricas”.
Em 2017, o professor Valter Lenine Fernandes disse em depoimento à Folha que, mesmo em uma escola para surdos onde lecionava em São Paulo, era o único docente surdo.
“É engraçado que as pessoas viajam para outros países e querem aprender outro idioma. Dão um jeito de aprender o mínimo, a dar bom dia em outra língua. E quem sabe dar bom dia para o surdo?”, disse na ocasião.
Fonte: Amazonas Atual
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