O ano de 2017 foi bem difícil para mim. A pressão por produtividade acadêmica, a necessidade de publicar, a escassez de financiamentos para pesquisas e inúmeros problemas pessoais. O estresse era grande.
Eu tinha impressão de sentir os níveis de cortisol, um dos hormônios do estresse, aumentando na minha corrente sanguínea. Veio a sonolência excessiva durante o dia e a motivação diminuiu. Então eu intensifiquei as caminhadas e corridas no Parque Estadual do Utinga, em Belém, meu refúgio para enfrentar os desafios da vida.
Eu chegava bem cedo, geralmente entre 6 e 6:30 da manhã. Eu me sentia bem com toda aquela natureza – vento, flores e cheiros, cantos de pássaros, o sol ainda nascendo… uma paisagem exuberante. Sentia felicidade ao amanhecer. Como neurocientista, ficava pensando no que acontecia no meu cérebro. Por que ao caminhar naquele local maravilhoso, uma obra prima na cidade de Belém, me sentia tão bem?
Em pouco tempo, notei o estresse indo embora. A sonolência excessiva durante o dia tinha passado, bem como a ruminação negativa. A motivação estava recuperada e as dificuldades da vida não impactavam tanto, mesmo ainda existindo. Eu tinha aumentado a minha resiliência ao estresse.
Na física, resiliência “é a propriedade que alguns corpos apresentam de retornar ao seu estado natural após terem sido submetidos a uma deformação elástica”. Na psicologia, “resiliência significa resistência a estímulos negativos, às adversidades”. Na vida, é a capacidade de superar obstáculos, por mais duros que sejam, é ter força de vontade para vencer, mesmo que seja no último minuto.
Pensando sobre essa palavra incrível e seu imenso significado, elaborei a frase que diz que “A resiliência é a maior força transformadora de realidades”. As nossas realidades, “os divórcios da vida”, a falta de emprego e do pão diário, a doença de um filho, uma pandemia que mata 600.000 mil pessoas, um governo federal nefasto e insensível.
Em umas das minhas caminhadas, eu tive um insight. Pensei que além dos estímulos motores que aumentam a plasticidade cerebral, o que chamamos em neurociências de Neuroplasticidade, também os estímulos sensoriais devem ser importantes.
Como o vento batendo na pele, o cheiro das plantas, um tucano cantando no meio da mata, os papagaios galhofando nas árvores e as paisagens naturais poderiam deixar tão feliz? Comecei a pensar em como estímulos motores e estímulos sensoriais estavam relacionados para trazer o bem-estar mental. Como as coisas simples da vida eram importantes e impactavam o cérebro de forma benéfica.
Como já relatado neste blog, em 1999, Henriette van Praag, à época no Instituto Salk, em La Jolla, na Califórnia (Estados Unidos), publicou um artigo no periódico Nature Neuroscience mostrou que camundongos que corriam voluntariamente em rodinhas adaptadas às suas gaiolas de laboratório tinham o dobro do número de novos neurônios nos seus cérebros, em uma região chamada giro denteado do hipocampo, do que os animais sedentários.
Na época, já se sabia que o chamado ambiente enriquecido, ou seja, colocar objetos nas gaiolas dos roedores, como túneis e obstáculos, propiciava uma gama maior de estímulos sensoriais e aumentava o número de neurônios. Van Praag mostrou, experimentalmente, que tanto correr em rodinhas como explorar o ambiente enriquecido propiciavam aumento e sobrevivência do número de novos neurônios (neuroblastos).
Estava claro que a natureza do Parque do Utinga era o meu ambiente enriquecido e que andar nos seus 8 Km da sua pista de pedras poderia produzir no meu cérebro o mesmo efeito que correr nas rodinhas tinha nos cérebros dos camundongos.
Inúmeros outros estudos confirmaram o achado original de Van Praag em roedores, mas o correlato humano do ambiente enriquecido não foi investigado adequadamente em humanos. Naquela manhã de agosto de 2017, durante uma caminhada no Parque do Utinga, eu criei a hipótese da “Simbiose Neural”, já apresentada aqui neste blog . Ela diz que o cérebro é dinâmico e sua estrutura é influenciada pelo ambiente. Que estímulos motores e sensoriais induzem neuroplasticidade e impactam fortemente na saúde mental.
Busquei uma razão evolutiva para este fato e ficou claro que o segredo estava no ambiente e modo como os cérebros dos nossos ancestrais caçadores-coletores evoluíram por milhões de anos.
Nossos ancestrais eram caçadores-coletores e, a partir do Homo erectus, nosso primeiro ancestral a ter uma postura totalmente bípede, houve uma evolução progressiva do cérebro e da cognição em ambientes naturais e com muito movimento. Adaptações evolutivas forjaram a capacidade dos nossos ancestrais de caminhar e correr por longas distâncias.
Isso ocorreu durante milhões de anos até o surgimento do Homo sapiens, a nossa espécie, há cerca de 300.000 mil anos. Só o Homo erectus viveu por dois milhões de anos antes de sua extinção. Houve um progressivo aumento do volume cerebral durante a evolução das diferentes espécies de hominídeos. Isso foi fundamental para a sobrevivência dos nossos ancestrais que puderam capturar caça usando a técnica da exaustão.
Os animais eram perseguidos impetuosamente. Seus pelos não permitem transpiração. A temperatura corpórea aumentava tanto que eles simplesmente desistiam e eram capturados. Com o surgimento das ferramentas de caças, nossos ancestrais contribuíram para a extinção espécies de grande porte, como o mamute, e os animais menores foram a opção de alimento. Eles eram mais ágeis e, cada vez mais, estratégias mais eficazes de caça foram desenvolvidas.
É bem provável que a interação social durante o ato de caça e o delineamento das técnicas de captura mais sofisticadas tenham tido um grande impacto sobre o desenvolvimento de atributos superiores da cognição humana, como o raciocínio-lógico dedutivo. Eu sintetizei essas ideias em uma revisão recente publicada no periódico Frontiers in Neuroscience e também em artigos publicados neste blog.
As ideias discutidas acima formam a base neural para o chamado “exercício verde”, praticar exercício em contato com a natureza, o qual é imensamente benéfico para o condicionamento físico e saúde mental. Evidências científicas obtidas em animais de experimentação confirmam que produção de novos neurônios no giro denteado no hipocampo, uma região que produz novos neurônios no cérebro adulto, mesmo em humanos, diminui os sintomas de ansiedade e depressão.
O pesquisador Christoph Anacker, da Universidade Columbia em Nova York, mostrou em um experimento recente que a neurogênese hipocampal é fundamental para a resiliência ao estresse, pois os novos neurônios formados no cérebro adulto controlam vias neurais que contribuem para a liberação de hormônios de estresse. Christoph Anacker mostrou claramente que a diminuição genética experimental do número de novos neurônios no hipocampo impacta negativamente na capacidade de resiliência de animais expostos a situações adversas, como a presença contínua de um roedor invasor em suas gaiolas.
No momento atual, com uma terrível pandemia ceifando centenas de milhares de vida, sequelas neurológicas e psiquiátricas da Covid-19 são cada vez mais descritas. Já temos meio bilhão de pessoas no mundo com várias desordens afetivas, incluindo depressão e ansiedade, e esses números continuam aumentando. O medo da morte, a morte de pessoas queridas, um governo federal nefasto e insensível, a fome, a incerteza de um futuro e que a humanidade não vai ser assolada de novo por outras pandemias.
Situações adversas estão por toda parte. Temos que aprender a valorizar as coisas simples da vida: uma caminhada, uma corrida, um passeio de barco, uma pescaria, andar de bicicleta, brincar com os filhos no parque, sentir o vento, a chuva, olhar para o “encontro das águas” dos gigantes rios Tapajós e Amazonas – nossos ambientes enriquecidos. Isso impacta positivamente o cérebro e contribui para uma melhor saúde mental.
A felicidade pode vir ao amanhecer, com a tênue luz do raio do sol ou ao crepúsculo do dia. Como disse um famoso monge vietnamita: “Não existe caminho para a felicidade, a felicidade é o caminho”.
Fonte: Jeso Carneiro
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