A extinção do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão criado em 2007, vai acontecer e está sendo planejada desde antes do governo Bolsonaro tomar posse. Esta é uma das declarações feitas por representantes da sociedade civil na audiência pública convocada pelo Ministério Público Federal no Amazonas (MPF-AM) para discutir a fusão das duas autarquias. O Ministério do Meio Ambiente foi convidado pelo MPF a participar dos dois painéis do evento, realizado virtualmente, mas não compareceu.
Os procuradores do MPF-AM usarão as contribuições apresentadas na audiência por especialistas de instituições acadêmicas e representantes de organizações da sociedade civil para subsidiar o inquérito civil que investiga o possível desmonte do ICMBio e orientar uma tomada de posição sobre medidas judiciais e extrajudiciais que poderão ser adotadas sobre o assunto. Ao todo, 17 pessoas participaram da audiência pública como expositoras ou inscritas previamente para tecer comentários a respeito da proposta de fusão dos dois órgãos.
Desde outubro, um grupo de trabalho (GT) formado por seis oficiais da Polícia Militar de São Paulo e um civil discute a extinção do ICMBio e a incorporação de suas atribuições ao Ibama, que poderia ter seu nome substituído. Na quinta-feira (28), ((o))eco publicou reportagem detalhada sobre as atas das primeiras oito reuniões do GT, obtidas via Lei de Acesso à Informação (LAI). O prazo do grupo termina no início da próxima semana, mas pode ser renovado por mais 120 dias.
Para a sociedade civil presente na audiência pública, realizada na manhã desta segunda-feira (01), a decisão já está tomada e o grupo parece ter sido montado apenas para corroborar o que foi definido logo após as eleições presidenciais de 2018 pela equipe de transição de governo do então presidente eleito, Jair Bolsonaro.
“Parece que esse processo é um teatro e que a decisão de extinção já está tomada”, diz Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima (OC) e ex-presidente do Ibama (2016-2019). Ela se debruçou sobre o Projeto de Lei Orçamentária Anual para 2021 (PLOA 2021) e constatou diminuição de 61% do orçamento destinado à criação, gestão e implementação das unidades de conservação em relação à despesa orçamentária para esta ação em 2018.
“O governo não só quer extinguir, ele quer colocar a parte de áreas protegidas dentro do Ibama com muito menos dinheiro do que elas vinham tendo até agora. O que é um verdadeiro absurdo. Se nós pegarmos os 75 milhões [de reais] que têm no projeto de lei orçamentária para [2021], isso representaria 95 centavos por hectare de área protegida. E eu não estou botando na conta nem as áreas marinhas. Quer dizer, isso está sendo feito, na verdade, para desmontar a proteção das unidades de conservação do país”, diz.
Ainda segundo Suely, há um déficit de 1.317 servidores no ICMBio e de 2.311 no Ibama. “A administração do Ibama, em situação crítica de servidores, não conseguirá nem arcar e nem ajudar a gestão das 334 unidades de conservação federais, que representam 9,27% do território brasileiro e 25% da área marinha. O projeto parece ser a paralisia. A fusão vai significar remontar todo o processo de trabalho. As autarquias têm processos administrativos bastantes distintos e na minha opinião é exatamente isso que o governo Bolsonaro pretende: paralisar as duas autarquias”, diz.
Para João Paulo Capobianco, o primeiro presidente do ICMBio, a criação da autarquia, embora tenha gerado polêmica na época – os servidores do Ibama chegaram a ficar em greve por três meses –, veio de uma reestruturação pensada para aprimorar a gestão das Unidades de Conservação federais. Ter uma autarquia específica para as UCs era uma demanda antiga.
“Dezenas de relatórios externos e internos ao próprio governo mostravam que as Unidades de Conservação não eram objeto de prioridade, não tinha uma gestão cuidadosa, constante e permanente e não havia um trabalho de formação de quadros de implementação de forma estruturada. Para se ter uma ideia, nós tínhamos, quando o ICMBio foi constituído como sendo necessário, mais de 100 Unidades de Conservação que não tinham nenhum funcionário. Essa era a realidade que o Ibama vivia, uma gestão muito difícil, com pouquíssimos recursos”, diz.
Ainda segundo Capobianco, o aumento de planos de manejo, criação de conselhos e aumento expressivo da visitação em unidades de conservação – em 2019, foram 15 milhões de visitantes, contra 1.9 milhão de visitantes em 2000 – mostram que o Instituto, apesar dos problemas, está conseguindo avançar e cumprir seu papel.
“O que vai gerar com a extinção do ICMBio? Certamente mais ineficiência. Certamente o abandono das Unidades de Conservação como nós tínhamos antes e a interrupção de um processo positivo e progressivo de melhoria da gestão pública federal”, diz.
Ex-presidente e diretor do ICMBio, Cláudio Maretti lembrou que o número de famílias extrativistas cadastradas em reservas extrativistas e unidades de conservação de categoria similar aumentou mais de 1.200%, chegando a 52 mil em 2020. Não havia esse cadastramento antes da criação da autarquia. A criação e aprimoramento do SISBio – sistema para a solicitação de autorização para coleta e pesquisa em UCs – é outro ponto positivo da autarquia. Desde 2007, o sistema já cadastrou mais de 65 mil pesquisadores, com o envolvimento de 2.896 instituições.
Processo começou antes da posse
Ex-secretária nacional de Biodiversidade e Florestas, Maria Cecília Wey Brito afirmou em sua fala que o processo de extinção do ICMBio começou já em 2019, com uma série de extinções de comitês e conselhos que tinham por objetivo aumentar a participação e o acompanhamento da sociedade brasileira na decisão das políticas públicas – episódio que ficou conhecido como “revogaço”.
Ela também relembrou a reestruturação do Ministério do Meio Ambiente, feito por decreto em agosto do ano passado, que deu status de Secretaria para o antigo Departamento de Áreas Protegidas, com atribuição similar à do ICMBio, de gerir as Unidades de Conservação.
“O que está em curso é uma apropriação pelo MMA de parcela de atividades do ICMBio. O que não tem absolutamente nada a ver com o regramento do Estado brasileiro, do Ministério do Meio Ambiente em particular, e claramente o desmonte (…) das estruturas existentes com o fim simplesmente de pregar ineficiência, quando, na verdade, a eficiência foi destruída nesses últimos dois anos”.
A audiência pública começou às 9h da manhã e prosseguiu até o meio-dia. Primeiro expositor do encontro, Henrique dos Santos Pereira, professor titular da Faculdade de Ciências Agrárias e do Centro de Ciências do Ambiente da Universidade Federal do Amazonas, fez uma análise sobre a evolução do Ibama e ICMBio. Constatou que, embora o órgão tenha sido dividido em dois em 2007, a aplicação de multas e embargos cresceu de 2004 até 2012, ano com a menor taxa de desmatamento da série histórica do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Com a mudança no Código Florestal, o desmatamento voltou a subir nos anos seguintes, mas se manteve abaixo dos 8 mil quilômetros quadrados. A chegada do novo governo, em 2019, fez cair o número de multas e embargos abaixo da média anual e o desmatamento voltou a ultrapassar os 10 mil km², algo que não ocorria desde 2008.
Pereira chamou a atenção para a redução progressiva do contingente de fiscais ambientais do Ibama, o que impossibilita “que se reorganize o órgão para executar suas funções finalísticas”.
Para o professor, a fusão é uma escolha equivocada, “especialmente nesse momento quando os novos modelos ainda não se desenvolveram plenamente e passam por retrocessos”
Causar paralisia
Reestruturações e o fim da transparência nas decisões foram os pontos levantados pela analista ambiental Tânia Maria de Souza, diretora-geral da Associação Nacional dos Servidores do Ministério do Meio Ambiente (Ascema).
“Nós tivemos duas estruturas do Ministério do Meio Ambiente em menos de dois anos. Nós tivemos mudanças na estrutura do ICMBio e do Ibama. Nós, nem ainda aprendemos como é a continuidade de pautas. A cada mudança dessa, você tem um custo de recursos que foram empregados, de mudanças de regras, de mudanças de formas de conduzir as políticas que gera paralisia e essa paralisia tem custo, tem custo ambiental e tem custo financeiro para a sociedade brasileira”, disse Tânia, que acrescentou que a ala técnica não é mais ouvida e está sendo deixada de lado.
“A sensação que nós temos hoje é de um desrespeito profissional e cidadão dos servidores que não são ouvidos, as notas técnicas não passam pela gente, são assinados por DAS [cargo de chefia de livre nomeação]. Nós temos um grupo de trabalho para trabalhar uma fusão que parece já estar decidida, posto que o planejamento estratégico já desconsidera a particularidade de cada um desses órgãos. Nós temos sob sigilo todas as informações que por legislação, que por dever moral e legal deveriam estar disponíveis nos nossos sites, nos nossos órgãos de informação, nossos canais de comunicação com a sociedade estão sumidos”, diz. “(…) Uma prova disso é que estamos aqui numa discussão sem ter informações do que aconteceu, as atas não são atas, quem fez esses estudos, qual a responsabilidade técnica sobre esses estudos? Quem está discutindo isso de verdade? Quais são os pressupostos?” disse.
Não há ganhos
Para Roberto Palmieri, representante da Coalizão Pró-UCs, que reúne 11 organizações da sociedade civil atuantes na gestão de áreas protegidas, colaborando com a implementação do SNUC, não há ganho na extinção do ICMBio. Se houver vantagem na fusão, prossegue Palmieri, ninguém sabe qual seria, pois o governo está tratando o assunto como segredo.
“O painel 1 abordou muito bem isso, todas as falas foram que a separação do ICMBio trouxe mais efetividade, o Ibama também conseguiu trabalhar muito melhor, contendo desmatamento e tudo o mais. Desde 2019, aumentou o desmatamento e os crimes ambientais. Esse grupo [de trabalho] deveria envolver outros atores da sociedade civil [inclusive os] que representam as universidades”.
Segundo Palmieri, a criação do ICMBio melhorou a transparência e isenção nos processos de licenciamento em áreas protegidas. “Ter um Ibama, um órgão que está distante disso para fazer o processo de licenciamento é um ganho também, evita que haja uma confusão de papéis, que o ICMBio com licenciamento, ele seja contaminado pelo trabalho do ICMBio em colaboração com as empresas de turismo, empresas madeireiras, que trabalha dentro da Flona que consegue ser mais isento, que consegue ser mais transparente e o ICMBio não fica tão sujeito também a comprometer os seus trabalhos em colaboração com essas organizações”.
Veja a audiência pública, na íntegra:
Fonte: O Eco
Comentários