Especialista em política econômica europeia, Markus Krajewski analisa as exigências para que os produtos brasileiros respeitem o meio ambiente e os direitos humanos e a oposição que isso desperta em segmentos econômicos, sob a alegação de que se trata apenas de barreira comercial para prejudicar as exportações do Brasil.
Instituto Escolhas
Desmatamento, trabalho escravo, subsídios e o Acordo Mercosul-União Europeia são alguns dos temas da nossa entrevista do mês de abril. Para comentar esses assuntos, o Escolhas trouxe Markus Krajewski, professor de direito público e internacional na Universidade de Erlangen-Nürnberg (Alemanha) e especialista em direito econômico internacional, direitos humanos e relações externas da União Europeia (UE).
Durante a conversa, Krajewski comentou sobre as polêmicas envolvendo as exigências comerciais da Europa para que a produção brasileira não prejudique o meio ambiente, vistas por muitos como barreiras comerciais e uma forma de protecionismo disfarçado – a preocupação com este tema fez a ministra da Agricultura do Brasil, Tereza Cristina, defender no início desta semana que as preocupações ambientais não podem se tornar barreiras ao comércio entre os países.
O professor falou ainda sobre as dificuldades relacionadas ao rastreamento de bens e serviços para garantir a origem dos produtos, fez críticas à forma como a Europa há décadas concede subsídios agrícolas e defendeu a necessidade de uma revisão global desses benefícios, para que o apoio seja feito de forma justa, beneficiando os pequenos agricultores, tanto no Brasil quanto na Europa.
Veja abaixo a entrevista completa.
ESCOLHAS – Como você enxerga o panorama mundial para a adoção de novas regulações que previnam a importação de produtos associados ao desmatamento e à violação de direitos humanos no comércio global?
MARKUS KRAJEWSKI – As novas regulações são um tema importante e urgente, que tem originado debates em diferentes espaços, como na União Europeia, nas negociações comerciais UE-Mercosul, na Organização Mundial do Comércio e em diferentes contextos regionais. Porém, devemos reconhecer que as sanções comerciais ou restrições de importação podem ser apenas um dos elementos de uma estratégia global, sendo certo que não devemos confiar em só um modelo para que isso surta efeito.
Por exemplo, sabemos que se a Europa decidir só importar determinados produtos, os países exportadores ainda poderão vender para a China ou outros lugares do mundo. Portanto, seria muito importante ter uma estratégia global em que a proibição de importação de certos produtos que prejudiquem o meio ambiente possa ser um dos elementos. Também é importante que isto seja feito não apenas no cenário bilateral ou regional, mas também seja considerado no cenário global. Claro que pode levar algum tempo e acho difícil prever quando algo assim vai realmente acontecer, mas essa é uma questão que ganhou destaque nos últimos anos, com avanços e um aumento de pedidos para tais medidas.
ESCOLHAS – A Alemanha e a União Europeia estão discutindo regras para implementar standards ambientais e de direitos humanos para a compra de produtos. Você pode explicar como elas devem funcionar?
MARKUS KRAJEWSKI – Essa é uma questão ampla, em que existem muitos tópicos e subtópicos para cada tema, mas o primeiro elemento é implementar regulamentações sobre produtos de determinados países e algo que está sendo discutido atualmente são as chamadas taxas de ajustamento de fronteira (“carbon border tax adjustments”). Basicamente, haverá impostos a serem pagos a partir do cálculo da pegada de carbono de um produto que entrar na Alemanha ou na Europa. Além disso, há um argumento de que precisaríamos ajustar o preço de produtos que viriam de outros lugares onde não há esse tipo de regulamentação. Há também uma discussão atual, e provavelmente essa é a parte mais importante, sobre como as empresas estão respeitando os direitos humanos em seus processos produtivos.
ESCOLHAS – Essas políticas preveem mecanismos para rastreio de produtos e garantia de que estão livres de impactos ambientais e violações de direitos humanos? Se não, o que ainda falta?
MARKUS KRAJEWSKI – Esta é uma questão prática fundamental: “como podemos ter a certeza sobre tal produto?”. A gente não consegue ver se o produto foi feito em uma fábrica, se teve trabalho escravo ou por trabalhadores que não usavam equipamento de proteção ou coisa parecida. Para isso, existem basicamente duas respostas: a primeira é a resposta tradicional e a outra é a resposta mais moderna. A resposta tradicional é que você basicamente tem que passar pela rotulagem. Temos selos quando se trata de regras de origem, temos selos de padrões de qualidade, temos selos sobre o teor alcoólico das bebidas. Claro que você sempre pode abrir uma garrafa de vinho e ver se é realmente vinho e não suco de uva ou algo parecido. Mesmo assim, se alguém tiver instituições e empresas em funcionamento que também estejam interessadas em proteger o valor de um selo, eu vejo possibilidades para a rotulagem ser eficaz.
Agora, a resposta mais moderna, que todo mundo fala, é a “tecnologia blockchain“, em que, de alguma forma, por meio de comunicação pela Internet e computadores, você pode rastrear a origem de certos produtos. Devo admitir que não sei realmente como essa tecnologia funciona e tenho alguns colegas que dizem que talvez seja tecnicamente difícil de implementá-la porque, no final do dia, mesmo que você tenha blockchain, ainda vai precisar de alguém para dizer que isso vem de uma fábrica onde há condições seguras de trabalho, de uma mina onde não há crianças trabalhando, que não estava localizada em um Território Indígena ou algo assim. Portanto, você precisa de pessoas que certifiquem e garantam que determinados padrões sejam atendidos.
ESCOLHAS – Como você avalia a alegação de produtores brasileiros de que essas exigências se referem a um protecionismo disfarçado, feito para proteger os produtores europeus e que prejudicam os interesses do Brasil?
MARKUS KRAJEWSKI – Como em todos os debates, há dois lados da mesma moeda. É claro que há quem use essas disputas para alguma forma de protecionismo disfarçado, mas, no final das contas, a menos que exijamos dos países algo que eles realmente não podem oferecer, não acho que seja protecionismo. Quer dizer, sabemos que existem produtos do Brasil e de todo o mundo que atendem aos padrões que esperamos. É claro que as empresas no Brasil, assim como as empresas de todo o mundo, precisam mudar e ajustar seus métodos de produção. Porém, desde que isso seja possível e desde que isso não faça com que empresas brasileiras ou de outros lugares percam sua vantagem competitiva, eu diria que não é protecionismo.
Eu acredito que existe a possibilidade de um produtor brasileiro dizer “bem, se é isso que os consumidores europeus querem, então prefiro exportar para a China porque os consumidores chineses não se importam [com as questões de desmatamento e trabalho escravo], mas isso é uma decisão de negócios. Eu diria que estamos falando de protecionismo somente se os mercados estiverem sendo fechados, de tal forma que os produtores de outros países não consigam acessá-los.
ESCOLHAS – Como você avalia os questionamentos que têm sido feitos a respeito da ratificação do Acordo Mercosul-União Europeia em função do enfraquecimento da governança ambiental no Brasil? Você acha que, mesmo com toda a divulgação extremamente negativa, o acordo será ratificado pelo Parlamento da União Europeia?
MARKUS KRAJEWSKI – Isso é algo difícil de prever. O que ouvi até agora é que a Comissão Europeia ou o Conselho Europeu não esperam uma ratificação este ano e que existe uma forte oposição em alguns partidos do Parlamento Europeu e em outros governos. Porém, precisamos distinguir aqui uma série de coisas. A primeira é que sempre há governos ou partidos políticos que são contra os acordos de livre comércio simplesmente porque são contra esses acordos. Há outros que são contra os acordos de livre comércio que são feitos com governos que nós dizemos que fazem coisas das quais não gostamos. Depois, há aqueles que dizem que certos acordos de livre comércio também são problemáticos porque, independentemente de qual governo esteja realmente no poder, os acordos podem enviar incentivos errados.
Acho que isto é o que estamos vendo no projeto de Acordo de Livre Comércio do Mercosul com a União Europeia até agora: está muito claro que ele ainda é deficiente do ponto de vista do desenvolvimento sustentável, independentemente de qual seja a atual política do governo brasileiro em relação ao desmatamento. Portanto, eu diria que o acordo precisa ser melhorado, precisa haver mudanças no que está na mesa agora e há atores políticos que estão exigindo essas mudanças. Agora, se isso é algo que os atuais governos dos países do Mercosul estão dispostos a concordar, é uma história completamente diferente.
ESCOLHAS – Como você vê a alegação de produtores brasileiros de que se a Europa quer produtos mais corretos do ponto de vista da produção, ela deveria pagar um prêmio, já que produzir melhor custa mais caro?
MARKUS KRAJEWSKI – Este ponto é crucial, porque a estrutura dos acordos comerciais não pode resolver esses problemas. Um acordo comercial poderia dizer “nós vamos conceder a você tarifa zero se você exportar o produto que atenda a certos padrões; se não atender a esses padrões vamos aplicar 5% de tarifa”. Mas se os produtos já têm tarifa zero de qualquer maneira, o que costuma ser o caso quando se trata de produtos agrícolas, então está claro que esta não é uma opção. Assim, teríamos que pensar em elementos totalmente inovadores nos acordos comerciais e que exigiriam uma cooperação estreita, não apenas entre os governos, mas também entre empresas, importadores e exportadores. Seria preciso começar a construir certas cadeias de valor, com apoio dos dois lados, de ambos os governos, para empoderar os produtores no Brasil a fim de atender aos padrões e, ao mesmo tempo, ser muito transparentes sobre o fato de que esses produtos serão mais caros.
O problema é que os consumidores europeus muitas vezes não sabem o preço real dos produtos e isso acontece mesmo com os produtos agrícolas dentro da União Europeia. O consumidor médio vai a um supermercado, compra um litro de leite e não tem ideia se é um bom valor para um agricultor ou não. Há agricultores europeus que dizem que mesmo na União Europeia produtos agrícolas e alimentos são vendidos baratos demais para eles terem uma vida sustentável. Nós precisamos de muito mais conversa, explicação e educação das pessoas sobre o valor real dos produtos.
ESCOLHAS – Os standards ambientais e de direitos humanos e o próprio movimento de consumo responsável também se aplicam a outros produtos, como o ouro?
MARKUS KRAJEWSKI – Acredito que eles deveriam ser aplicados. As pessoas que estão familiarizadas com a forma como que é feita a mineração sabem que ela muitas vezes cria enormes problemas ambientais, enormes problemas para os direitos humanos, direitos dos povos indígenas e tudo mais. Porém, é muito difícil – ou muito mais difícil – vender [essa ideia] para o consumidor europeu. Nós vemos que a floresta está queimando. As imagens deixam imediatamente claro o que isso significa, podemos ver uma conexão ali. Mas se você comprar um anel de ouro em uma joalheria em algum lugar da Europa, você não tem ideia de onde o ouro vem. E isso não é apenas com o anel. Acontece o mesmo com o celular ou produtos eletrônicos, e aí é muito mais complicado.
Mas, novamente, se as pessoas souberem mais sobre o contexto de produção, a questão humana e o ambiente de degradação ambiental que estão associados a esses tipos de produtos, não vejo por que não se poderia fazer ações semelhantes. Nos tempos modernos, é uma questão de imagem. Se você conseguir mostrar que para produzir atum você mata golfinhos ou, que para ter um camarão você mata essas lindas tartarugas, essas são imagens poderosas e todo mundo entende imediatamente. Portanto, precisamos pensar de forma criativa como podemos criar outras imagens para que as pessoas comuns entendam as conexões.
ESCOLHAS – Você sabe se também há uma preocupação com esse tipo de standards pelo governo chinês e, de toda forma, qual é o risco de os critérios mais rigorosos na União Europeia promoverem uma mudança nos fluxos de comércio em vez de uma mudança na produção?
MARKUS KRAJEWSKI – Este é o perigo real, uma preocupação real. Todo mundo diz que agora tudo é sobre a China – e realmente é. Acho que todo mundo percebe agora que a China é o novo jogador mais importante nos últimos 10, 20 anos em governança global e política global. E isso não apenas porque a China é tão poderosa econômica ou militarmente, mas porque é um mercado consumidor em crescimento enorme: são um bilhão de pessoas e a maioria delas foi tirada da pobreza – o que, é claro, é um tremendo sucesso do ponto de vista da política interna chinesa. Mas sabemos que essa saída da pobreza também traz muitos problemas: problemas sociais, problemas ambientais, problemas de direitos humanos.
O fato é que existe um mercado consumidor enorme e você sabe que essas pessoas querem consumir. Podemos supor que talvez elas não estejam tão preocupadas com certas questões quanto outros consumidores, mas, se a história nos diz alguma coisa, acho que será apenas uma questão de tempo até que os consumidores chineses também comecem a se tornar mais responsáveis. Eles já perceberam que há problemas com o meio ambiente. Talvez o consumidor médio da comunidade chinesa não esteja muito interessado na violação dos direitos dos povos indígenas no Brasil, mas os chineses são inteligentes e sabem que precisamos da Floresta Amazônica. Agora há uma enorme demanda no mercado chinês e precisamos estar cientes de que é claro que é possível que se a União Europeia disser que só quer certos produtos haverá uma mudança de comércio e alguns produtos vão para o mercado chinês. Mas, qual é a alternativa? Se a alternativa for [renunciar aos padrões e] importar esses produtos também para o mercado europeu, então não teremos mesmo muitas mudanças.
ESCOLHAS – Um estudo do Instituto Escolhas mostra que os subsídios correspondem a 79% do que foi arrecadado em impostos na cadeia brasileira da carne bovina¹. Além disso, os municípios que mais emitem gases de efeito estufa no Brasil são justamente os produtores de gado, devido ao desmatamento. O que fazer para que tanto no Brasil quanto na Europa os subsídios sejam direcionados para exigir boas práticas agrícolas ou para pagar mais por quem produz melhor?
MARKUS KRAJEWSKI – No campo da agricultura, os subsídios desempenham um papel talvez até mais importante do que tarifas ou barreiras comerciais e isso não é algo novo. Os subsídios agrícolas têm sido um problema no comércio global nos últimos 30 ou 40 anos e acredito que países como o Brasil e outros sempre criticaram – com razão – a União Europeia por seus subsídios e pelo fato de que os subsídios também têm um efeito de distorção no comércio. Agora, à medida em que o Brasil se desenvolve, tem mais dinheiro e o governo brasileiro aprende com o governo europeu, ele agora também dá esses subsídios a grandes empresas agrícolas.
É bom dizer que você apoia pequenos agricultores, apoia a transição e apoia produções ambientalmente seguras. O problema é que a maior parte dos subsídios não vai para os pequenos agricultores, vai para os grandes fazendeiros. Quando o Reino Unido ainda fazia parte da União Europeia, ouvi uma vez que a maior parte dos seus subsídios agrícolas ia para a Rainha da Inglaterra (para as fazendas da Família Real). Isso também se aplica aos subsídios agrícolas em outras partes do mundo. No final das contas, precisamos estudar o impacto desses subsídios e, portanto, parabenizo o Instituto Escolhas por esse estudo fazer essa conexão. No contexto dessas negociações comerciais, países como o Brasil e outros acertadamente apontam para o fato de que ainda existem esses subsídios na União Europeia, e que isso precisa ser justo. É necessário exigir um ajuste desses subsídios de tal forma que eles não protejam os mercados de forma injusta.
ESCOLHAS – O que podemos esperar para os próximos anos? Você imagina que as regulações que estão sendo desenvolvidas serão suficientes para frear o desmatamento e a violação aos direitos humanos nas regiões produtoras de commodities?
MARKUS KRAJEWSKI – Eu sou otimista. Sabe por quê? Nós não sabemos o que vai acontecer, mas sabemos que, se todos forem pessimistas, isso também não vai mudar o mundo. Portanto, precisamos ser otimistas. Quando todos os países saírem da crise da Covid, apesar de que muitas pessoas simplesmente vão se sentir aliviadas e começarão a festejar novamente, espero que haja um número suficiente de pessoas que comece a refletir sobre certos aspectos de nosso modo de vida. E tenho esperança de que as pessoas vão perceber ainda mais de perto como a vida é frágil e como o meio ambiente pode ser frágil.
Ano passado, muitos de nós ficamos completamente arrasados. Mas, olhando para o que aconteceu nos Estados Unidos com as eleições, agora, pelo menos, parece-me que a maioria do país está voltando para normalidade e essas coisas mudaram. Acho que as pessoas estão percebendo que algo precisa ser feito sobre o desmatamento. Agora, se isso vem tarde demais? Acho que essa é a pergunta errada, porque é claro que é sempre tarde. O cérebro humano funciona muito devagar para os perigos que o mesmo cérebro humano pode realmente produzir, mas não há alternativa. Precisamos trabalhar nessas questões e, se as medidas vierem nos próximos cinco anos será ótimo. Se viessem apenas nos próximos 10 anos, é melhor que elas venham em 10 anos do que nunca. Portanto, estou otimista de que essas medidas virão e terão um impacto. Apenas espero e torço para que seja o suficiente.
Fonte: Instituto Escolhas
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