José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – O Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados e o último a abolir formalmente a escravidão. Estima-se que 4,8 milhões de africanos tenham sido transportados para o Brasil e vendidos como escravos. Outros 670 mil teriam morrido no caminho. Transcorridos 133 anos desde a abolição formal, esse elemento decisivo na formação da sociedade brasileira é uma ferida que ainda não cicatrizou.
Ao longo de mais de três séculos, três conjuntos de protagonistas combinaram seus interesses para instaurar e efetivar esse negócio abominável: os grandes compradores radicados no Brasil, especialmente ativos nos portos de Salvador e do Rio de Janeiro; os agentes do comércio atlântico (na maioria europeus), responsáveis por mais de nove mil viagens marítimas da costa africana para o Brasil; e os chefes políticos das sociedades africanas, que guerreavam entre si com o objetivo de aprisionar, escravizar e vender os adversários.
Mercadorias como aguardente, tabaco, tecidos, móveis e animais, obtidas com a venda de escravizados, eram utilizadas por esses governantes para agradar seus apoiadores e se afirmar no poder. Mas, acima de tudo, interessavam-lhes as armas de fogo, com as quais promoviam guerras e conquistavam mais escravizados. “Era um círculo vicioso: as vendas de escravizados lhes davam armas e as armas possibilitavam obter mais escravizados. O comércio de escravizados acirrou rivalidades, estimulou guerras e desarticulou profundamente as sociedades africanas tradicionais”, diz a historiadora Marina de Mello e Souza, professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
Seu aluno, Raphael dos Santos Gonçalves, investigou um aspecto menos conhecido desse empreendimento político-comercial: o envio de duas “embaixadas” daomeanas ao Brasil, no período de 1795 a 1805, com o objetivo de estreitar laços com as autoridades coloniais portuguesas e os compradores residentes no Brasil e garantir que estes continuassem adquirindo escravizados fornecidos pelo reino do Daomé (que existiu entre 1600 e 1904, onde atualmente está localizada a República do Benim, na África) e não por reinos rivais. O estudo – “Os ‘embaixadores’ do comércio de escravos na América Portuguesa: diplomacia entre tensões e tradições (1795-1805)” – contou com Bolsa de Iniciação Científica da FAPESP e, recentemente, foi premiado com menção honrosa no 28º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP (Siicusp).
“A cidade de Salvador, na Bahia, manteve relações comerciais constantes com a região do Golfo do Benim, na qual estavam instalados diversos reinos africanos. Havia uma diversidade de portos escravistas, cada qual sob o mando de um chefe político. De acordo com o historiador Robin Law, a cidade portuária de Uidá, dominada pelo reino do Daomé desde 1727, era a mais ativa nesse comércio. Dela, foram deportados mais de 50% dos escravizados do Golfo ”, afirma Santos Gonçalves.
As relações entre Uidá e Salvador, e a mútua influência entre os dois espaços, foram estudadas por pesquisadores como Pierre Verger e Mariza de Carvalho Soares. Em uma abordagem ficcional, mas fortemente embasada em dados históricos, essas relações constituem o pano de fundo do premiado romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Mas o trabalho de iniciação científica de Santos Gonçalves avançou além das fontes secundárias e se aprofundou na análise das cartas assinadas pelos reis daomeanos, que foram transcritas pelo historiador Luis Nicolau Parés, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
“A pesquisa mostrou que, antes de enviar ‘embaixadas’ para o outro lado do Atlântico, a elite política do Daomé já possuía experiência diplomática, dispondo de ampla estrutura física para recepção e tratamento de estrangeiros e de funcionários administrativos preparados para esse tipo de diálogo. As cortesias incluíam até mesmo banquetes servidos à moda europeia em Abomé, a sede do poder daomeano. As autoridades luso-brasileiras, por sua vez, receberam os emissários daomeanos, interessadas que estavam em manter a ‘boa harmonia’ com os exportadores de escravizados, mas rejeitaram quaisquer propostas de monopólio de comércio”, informa Santos Gonçalves.
A partir das reflexões dos historiadores Robin Law e Kristin Mann, a pesquisa de Santos Gonçalves apontou ainda a importância dos intermediários da chamada “comunidade atlântica” para a execução dessa diplomacia. Constituída por portugueses, ingleses, franceses, luso-brasileiros e, principalmente, por euro-africanos, filhos de europeus e africanas, essa “comunidade” reunia indivíduos ambiciosos, audaciosos e habilidosos, que dominavam, por assim dizer, as duas culturas e estavam de alguma maneira envolvidos no comércio escravista. Foram esses intermediários que atuaram como escrivães e tradutores das cartas dos reis daomeanos.
O recorte cronológico adotado no estudo englobou dois acontecimentos de grande importância: a visita ao Daomé do padre luso-brasileiro Vicente Ferreira Pires, que esteve na região em 1796 com a missão de converter o “dada” (título equivalente ao de rei) ao catolicismo; e, no ano seguinte, a sucessão de Agonglo por Adandozan.
“O dadá Agonglo apoiou a visita do padre e disse que queria se converter ao catolicismo. Mas, na iminência do batismo, foi assassinado por opositores políticos, que colocaram seu filho Adandozan no poder”, conta Santos Gonçalves.
A sucessão foi um golpe palaciano, que se completou com a escravização da rainha Nã Agontimé, vendida por Adandozan aos traficantes. Embora esse não tenha sido um tema da pesquisa de Santos Gonçalves, vale a pena recordá-lo aqui pela importância cultural e religiosa que veio a ter no Brasil. Segundo Pierre Verger, Nã Agontimé teria sido enviada como escrava a São Luís do Maranhão, onde foi batizada como Maria Jesuína. Mas não se converteu ao catolicismo e, depois de liberta, fundou a famosa Casa das Minas, o mais importante templo dedicado ao culto dos voduns em território brasileiro.
“O comércio de escravizados, que se transformou em um empreendimento altamente lucrativo, estimulou essas dissensões, tanto entre diferentes sociedades africanas quanto no interior das próprias linhagens governantes. Os potentados africanos negociavam seus inimigos, fossem eles externos ou internos. Houve conflitos importantes, por exemplo, entre os chefes do Daomé, que tinham seu porto de embarque em Uidá, e os de Oió, que se serviam do porto de Lagos”, comenta Mello e Souza.
A historiadora lembra que, exceto em Luanda na primeira metade do século 17, quando a conquista portuguesa foi seguida pela escravização de habitantes locais, os europeus não escravizavam, mas compravam escravizados. A escravização demandava guerras e incursões mais fundas no território. Os europeus concentraram-se nas regiões costeiras, de onde demandavam escravizados, fornecidos a partir de mecanismos internos às sociedades africanas. Foi somente a partir de meados do século 19 que os europeus entraram no interior do continente africano, dando início ao processo de colonização”, diz Mello e Souza.
Um artigo no qual Santos Gonçalves desenvolve alguns aspectos de seu estudo pode ser acessado em www.revistas.usp.br/humanidades/article/view/159331/170444/.
Fonte: Agência FAPESP
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