Foi durante uma onda de calor em Sydney, na Austrália, que a meteorologista paraibana Micheline Coelho sentiu na pele um dos impactos mais sutis, mas nem por isso menos importante, dos extremos meteorológicos causados pela mudança do clima. Naquele dia de janeiro de 2020, os termômetros chegaram a quase 49 graus Celsius (ºC) à sombra. “O mal-estar foi instantâneo”, lembra ela, que é pesquisadora do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). “Fatores como baixa umidade do ar e altas temperaturas provocam alterações no metabolismo no corpo humano, interferindo nas funções cardiovascular, renal e no controle da pressão arterial, assim como nos níveis plasmáticos de hormônios como o cortisol e o hormônio tireoideano”, explica Coelho, que há oito anos mora na cidade australiana onde cursa mais uma graduação, em medicina.
Ela está entre os autores de um estudo multidisciplinar publicado nesta segunda-feira (31/5) na revista Nature Climate Change, que identificou qual proporção de mortes ocorridas no período mais quente do ano pode ser atribuída ao aumento de temperatura decorrente de mudanças climáticas. O trabalho, assinado por 69 pesquisadores de várias partes do mundo, analisou um total de 29 milhões de mortes registradas em 43 países entre 1991 e 2018. Observou-se que, em dias excessivamente quentes, houve aumento nos óbitos por causas naturais, como infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral (AVC) e outras doenças crônicas nas 732 cidades analisadas.
Os mecanismos de como o calor afeta o organismo em termos de fatores cardiovasculares e hormonais, de função renal e cognitiva já são bastante conhecidos e permitem compreender os achados epidemiológicos que acompanham os acontecimentos em tempo real. Os autores coletaram e cruzaram dados de modelos meteorológicos, que estimam o aumento da temperatura levando em consideração o efeito antropogênico e de mortalidade desses locais. Por meio de modelos estatísticos usados em epidemiologia, estabeleceram uma correlação entre os dois parâmetros. Os resultados indicam que, no geral, 37% das mortes relacionadas ao calor podem ser atribuídas a alterações do clima associadas à ação humana, como a emissão de gases de efeito estufa a partir da queima de combustíveis fósseis. O estudo traz uma contribuição importante por estar assentado em uma grande base de dados global e de revelar um padrão semelhante para todas as cidades analisadas.
Sabe-se que a temperatura média global subiu 1,1 ºC desde o final do século XIX e eventos extremos, como grandes estiagens, inundações bruscas e deslizamentos de terra, devem tornar-se mais frequentes nas próximas décadas (ver Pesquisa FAPESP nº 303). Mas pelo menos no que diz respeito ao calor, as consequências já são realidade, de acordo com os resultados. “Nossa pesquisa mostra que as mudanças climáticas já provocam graves efeitos sobre a saúde, sobretudo em áreas urbanas”, ressalta Coelho.
De acordo com o estudo, os grupos mais afetados pelas ondas de calor se concentram na Europa – particularmente nas regiões sul e central do continente, onde o risco de mortalidade relacionada ao calor é considerado alto. Um exemplo destacado é o de Berlim, na Alemanha, onde dias de calor máximo, que ali podem chegar a 28 ºC, representam um risco de morte 57% maior do que quando a temperatura é ideal, com mínima mortalidade. Esse aumento no risco varia de uma cidade para outra, de acordo com as condições urbanas e a situação térmica à qual a população está habituada. Em Chicago, nos Estados Unidos, os termômetros raramente atingem 31 ºC. Quando isso acontece, o risco de morte por qualquer causa aumenta em 36%.
Ainda que grande parte da Ásia e das Américas apresente riscos menores de morte associada a picos de temperatura, a pesquisa destaca o Paraguai e o Vietnã entre os lugares onde súbitas ondas de calor têm impacto considerável nas estações mais quentes. Estima-se que, nesses países, o total de óbitos tenha aumentado mais de 5% desde os tempos pré-industriais, em razão, sobretudo, da intensificação do calor nos meses mais quentes do ano. Os dados ainda não permitem explicar completamente essa observação, que precisa agora ser detalhada por análises mais focadas. No outro extremo, países do leste da Ásia e norte da Europa apresentaram, em média, aumento de 1% nas mortes por ondas de calor.
O médico patologista Paulo Saldiva, da FM-USP e outro autor do artigo, chama a atenção para os efeitos da urbanização de áreas antes cobertas por vegetação natural. “Os índices de urbanização da Europa são muito altos. A construção de prédios e a pavimentação das ruas fazem com que superfícies urbanas absorvam mais radiação solar do que o solo e a vegetação, contribuindo para o aumento da temperatura média anual”, esclarece ele, um dos responsáveis por consolidar as informações sobre o Brasil para o trabalho.
O estudo destaca que, entre 1991 e 2018, a temperatura média do país subiu aproximadamente 1 ºC, aumentando em até 2,2% o risco de morte durante ondas de calor. “Podemos dizer que o Brasil está no meio-termo entre os países analisados”, afirma Saldiva. “O risco aqui é mais baixo, quando comparamos com a Europa, porque temos mais florestas e fontes de água, e isso ajuda na manutenção de um clima mais úmido.”
No entanto, é possível detectar variações regionais, ressalva Coelho. Isso porque foram analisados dados de 18 capitais brasileiras, de todas as regiões do país. “Nota-se que, em cidades do Centro-Oeste e do Sudeste, o risco de mortes associadas a picos de temperatura é maior do que nas demais regiões.”
Segundo a meteorologista, no caso da região central, identifica-se o chamado efeito da continentalidade: por estar distante do litoral, onde o mar ajuda a manter uma constância térmica maior e o regime de ventos contribui para refrescar. Nessas regiões, há altos picos de temperatura na primavera e no verão, que vêm quebrando recordes ano após ano. Não por acaso, nos últimos anos, as maiores temperaturas máximas no país foram registradas em cidades de Mato Grosso e Tocantins.
Já no Sudeste, a emissão de poluentes tem contribuído para a elevação das temperaturas nos últimos anos. A região liberou 396,2 milhões de toneladas brutas de gases de efeito estufa na atmosfera em 2018, o correspondente a 20% do total nacional, de acordo com dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (Seeg), divulgados recentemente pelo Observatório do Clima. Em 2000, o Sudeste emitiu 120 milhões de toneladas de gases decorrentes do consumo de energia, especialmente nos transportes, número que em 2018 cresceu para mais de 173 milhões de toneladas.
“Embora a única causa específica de mortes diretamente ligadas à exposição ao calor seja a insolação, é cada vez mais evidente a correlação entre altas temperaturas e o agravamento do quadro de pessoas idosas ou com doenças crônicas, como diabetes e problemas cardíacos”, disse a Pesquisa FAPESP o epidemiologista italiano Antonio Gasparrini, da London School of Hygiene and Tropical Medicine, no Reino Unido, e autor principal do estudo.
Contudo, não é simples levantar dados sobre o impacto das ondas de calor na saúde, justamente por haver uma ampla gama de enfermidades que podem ser acentuadas pelo aumento brusco da temperatura. De acordo com Gasparrini, os países com mais dificuldade de produzir dados meteorológicos e de mortalidade são aqueles mais pobres e, portanto, mais vulneráveis às mudanças climáticas. A maioria deles está no continente africano. “Uma solução seria promover, nessas nações, a criação de instituições dedicadas a realizar análises estatísticas e gerenciar repositórios de dados”, sugere. “O fato de termos um quadro incompleto e de não podermos fornecer evidências do impacto do aquecimento global em populações de baixa renda é decepcionante”, reconhece o pesquisador italiano.
Para Coelho, estudos como esse são importantes para subsidiar políticas de saúde que levem em consideração questões ambientais e climáticas. “A ideia é que esse trabalho abra caminho para que cada país faça suas próprias análises com mais acurácia, a fim de entender, no nível local e regional, como as ondas de calor afetam a saúde da população e, assim, desenvolver estratégias para mitigar esses efeitos”, diz.
Uma medida possível, propõe a pesquisadora, é incluir alertas de saúde nas previsões meteorológicas. “Recomendar principalmente atenção para idosos e crianças que desidratam muito rápido nessas ondas de calor devido a ter o organismo mais vulnerável.” Mas para terem alcance, iniciativas desse tipo não dependem apenas de contribuições científicas. “Também é preciso implementar políticas públicas e mobilizar recursos governamentais e privados, como veículos de informação”, recomenda. “É mais fácil precificar a vida humana do que uma geleira”, completa Saldiva. “Os resultados trazem a discussão sobre mudança climática para dentro da casa das pessoas.”
Por Bruno de Pierro
Artigo científico
VICEDO-CABRERA, A. M. et al. The burden of heat-related mortality attributable to recent human-induced climate change. Nature Climate Change. On-line. 31 mai. 2021.
Fonte: Revista FAPESP
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