Uma harpia, a maior ave de rapina que ocorre no Brasil, é um animal belo e imponente. Um indivíduo pode medir até 1 metro de altura e 2 metros da ponta de uma asa a outra. Não à toa, são predadores de topo de cadeia e é de fato do alto da floresta que observam suas presas. O que as harpias não sabem é que do chão, uma outra criatura a observa, o bicho-homem. E movido por uma letal “curiosidade” diante deste animal tão poderoso e ainda assim tão vulnerável e exposto na copa das árvores, este tal bicho-homem dispara sua espingarda. Uma, duas, quantas balas forem necessárias para levar a ave ao chão e à morte. O corpo abatido da maior ave de rapina brasileira é então observado e exibido em foto pelo homem que, para matar sua curiosidade, matou uma harpia. E assim, mais de uma centena de curiosos, mataram 148 harpias num período de dois anos no norte do Mato Grosso.
Esta situação dramática foi identificada por um trio de pesquisadores que se propôs a analisar a relação entre proprietários de terra e a maior ave de rapina do Brasil, a harpia (Harpia harpyja), e os motivos que os levavam a abater estas aves. O estudo aplicou questionários entre os moradores de áreas rurais situados ao norte de Mato Grosso, no Arco do Desmatamento, na Amazônia, entre 2015 e 2016. Os resultados revelados pela pesquisa estão disponíveis em artigo publicado nesta na terça-feira (03) no periódico científico Animal Conservation, assinado pelos três pesquisadores: Everton Miranda e Colleen T. Downs, ambos da Universidade de KwaZulu-Natal, na África do Sul, e Carlos Peres, da University of East Anglia, do Reino Unido.
O levantamento chegou à espantosa conclusão de que, das 181 harpias abatidas pelos proprietários entrevistados para o trabalho, 148 delas (80,5%) haviam sido mortas pela “curiosidade” dos moradores, não familiarizados com a espécie. As outras 33 mortes estavam associadas à retaliação pela predação da harpia em animais de criação como porcos e galinhas, ou domésticos, como cães e gatos.
“Eu queria ver de perto” e “eu nunca tinha visto um gavião desse tamanho” foram algumas das respostas dadas pelos proprietários rurais aos pesquisadores sobre o porquê abateram a harpia. “A população que ocupa ali a região do Arco do Desmatamento está dividida entre os migrantes que vieram do sul na década de 70 estimulados pela política do governo militar de ocupar a Amazônia, e os assentados. E eles não têm familiaridade com a harpia e a matam de forma tão fútil”, avalia Everton Miranda, que também é pesquisador do The Peregrine Fund.
A taxa é altíssima, especialmente quando considerada a baixa densidade populacional das harpias, com 8 a 12 indivíduos por 100km². Além disso, são aves com uma reprodução lenta, que gera apenas um filhote a cada 2 ou 3 anos.
A partir de 2017, já com os números preocupantes nas mãos que indicavam uma taxa média de abate de 90 harpias por ano apenas do norte do Mato Grosso, o que poderia levar a espécie a desaparecer da região num futuro próximo, Everton Miranda decidiu que, antes mesmo de concluir sua pesquisa, precisava agir. “Quando terminamos esses formulários e a amostragem estava pronta, começamos uma parceria com uma empresa de turismo através do qual as pessoas vêm visitar a região para observar a harpia. E o dono da área onde é feito o avistamento da ave recebe um retorno financeiro por isso. Isso mudou a opinião das pessoas sobre a espécie muito depressa. Além disso, instituímos uma recompensa de 500 reais para qualquer pessoa que encontrar um ninho de harpia e reportar para gente”, explica Miranda, em referência ao projeto Construindo uma Estratégia para Conservação da Harpia na Amazônia, coordenado por ele.
“A forma mais certeira de impedir que alguém destrua qualquer recurso natural é dando a essa pessoa um incentivo econômico para isso. É mais efetiva porque, independente do quanto aquela pessoa respeita ou está convencida da importância daquela espécie, ela verá um incentivo palpável para deixar aquela floresta de pé ou não perturbar um ninho de harpias”, acrescenta o pesquisador. De 2017, quando a iniciativa de turismo começou, até a eclosão da pandemia – que comprometeu as atividades turísticas – o projeto recebeu em média 100 a 120 turistas por ano, todos eles estrangeiros.
A iniciativa deu frutos. Nos cinco anos desde que começou o projeto para valorizar a presença das harpias e mudar a percepção dos moradores sobre ela, Everton comenta que registrou em relatos colhidos informalmente apenas três abates de harpias na região. “Claro que o número pode ser maior, mas acredito que é um bom indicador de que de fato pararam a matança que estava ocorrendo de harpias”, reforça. O pesquisador tem a perspectiva de refazer a pesquisa no futuro e ampliar o escopo para outras comunidades e assentamentos onde não foram, “para ver se o efeito do turismo e da oportunidade financeira com a harpia chegou até lá”, comenta.
Os pesquisadores também se debruçaram sobre os fatores por trás da intenção daqueles proprietários que admitiram que matariam uma harpia novamente. De acordo com o levantamento, é sobretudo nas pequenas propriedades de assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) que as pessoas afirmam que matariam harpias novamente. O motivo: retaliação. Dentre os proprietários que afirmaram que matariam novamente as aves, 47,9% relataram a perda de galinhas para as águias, 22,4% a perda de cabritos, 18,2% de leitões, 8,3% de carneiros, 2,1% de cães e 1% de gatos. O consumo de animais domésticos foi registrado majoritariamente em propriedades de menor porte, o que explicaria o sentimento de hostilidade à espécie dessa categoria fundiária.
O projeto também reembolsa financeiramente os proprietários que relatam casos de predação de animais de criação, como porcos e galinhas, justamente para evitar esse sentimento de “sede de vingança” entre eles.
“Como se tratam múltiplas espécies de pequeno porte, não existe meio possível para você ensinar pros caras uma metodologia em que a harpia não vai pegar os animais. E ao contrário do que acontece com o gado, os animais de criação têm um valor muito modesto, então não dá pra gastar uma grana construindo galinheiro, se a galinha vale tão pouco. Então a gente orienta as pessoas a entrarem em contato com o projeto e a gente ressarce, que é um valor pequeno. E agora, como existe a remuneração por ninho, quando há predação, os moradores já vão atrás dos ninhos para mapear para nós”, conta o pesquisador brasileiro.
Miranda acredita que os caminhos para conservar a harpia não apenas no Mato Grosso, mas ao longo de todo o Arco do Desmatamento, na Amazônia, é investir em ações educativas e de conscientização voltadas para os sitiantes, e oferecer meios para que as pessoas conheçam a espécie. Para isso, integrar as harpias na economia local é estratégico, afirma o pesquisador: fazer elas valerem mais vivas do que mortas.
Fonte: O Eco
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