Jair Bolsonaro lembra com orgulho dos tempos em que nutria outra ambição, longe da política. “Sempre tive no meu carro um jogo de peneiras e uma bateia. Sempre que possível, eu parava num canto qualquer para dar uma faiscada”, afirmou em um vídeo de 2018.
A bateia é um instrumento em formato de cone usado para separar a água do cascalho e dar uma “faiscada” significa buscar metais preciosos. O interesse do ex-capitão pelo garimpo vem de berço. Seu pai, Percy Geraldo, frequentava o formigueiro de Serra Pelada na década de 1980, auge da corrida do ouro no Pará.
Engana-se, porém, quem acredita que os laços de Bolsonaro com a atividade se limitam às tradições familiares. No Palácio do Planalto, o ex-capitão uniu a fome à vontade de comer e atirou-se a um projeto de poder, a constante ameaça às terras indígena que une o governo ao submundo da extração ilegal de minério e pedras preciosas.
Na abertura das atividades do Congresso neste ano, depois de se livrar dos “entraves” representados por Rodrigo Maia, Bolsonaro entregou uma carta de prioridades aos novos presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco.
Da lista consta, com destaque, a aprovação do PL 191, elaborado pelos ministérios de Minas e Energia e da Justiça, à época chefiado por Sergio Moro. O projeto de lei é a festa do caqui: libera a mineração em terras indígenas, retira o poder de veto dos povos originários – previsto na Constituição –, autoriza o plantio de transgênicos e a construção de hidrelétricas e retira os entraves às atividades pecuárias, exploração de petróleo e gás e turismo nas terras indígenas. Nem o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que recomendou “passar a boiada”, faria melhor.
Atualmente, vivem na Amazônia Legal 222 etnias, e há 332 terras indígenas oficiais e 92 em estudo, com 655 mil famílias que falam 160 línguas.
A exploração de minério em terras demarcadas é ilegal e nunca foi regulamentada pelo Congresso. Mesmo assim, segundo um levantamento do Greenpeace realizado no primeiro semestre do ano passado, 72% da atividade garimpeira na Amazônia ocorre em territórios protegidos. A ONG ambiental registrou ainda novo aumento das áreas exploradas ilegalmente: de 383,3 hectares em 2019 para 434,9. Em relação às unidades de conservação, o garimpo destruiu 879,8 hectares de floresta, entre janeiro e abril de 2020, o que representa aumento de 80,62%. Vale lembrar que 1 hectare corresponde a um campo de futebol. Especula-se que até 800 mil garimpeiros atuem de forma ilegal no Brasil, grande parte instalada na Região Norte.
Um estudo de pesquisadores australianos e brasileiros publicado na revista internacional One Earth levantou os impactos do PL 191 não só no País. Caso seja aprovado, apontam os estudiosos, uma área do tamanho da Venezuela, o equivalente a 860 quilômetros quadrados de floresta, sofrerá os efeitos diretos. Calcula-se que os danos ambientais provocados pela exploração de minério se espalhem por um raio de 70 quilômetros, a partir do ponto central. Os prejuízos são estimados em 5 bilhões de dólares por ano, quando se leva em conta a área de floresta afetada, as perdas da agricultura de subsistência, o desmatamento, a poluição dos rios e a emissão de gás carbônico, entre outros.
“Levantamos o impacto em setores da economia, mas há outros efeitos, inclusive na política e nas parcerias internacionais. A França e a Alemanha cobram respeito à autonomia dos povos indígenas para fechar acordos com o Mercosul. Vamos lembrar também do dossiê enviado ao presidente Joe Biden que relaciona as parcerias comerciais entre Estados Unidos e Brasil com as políticas ambiental e indígena de Bolsonaro. Isso só mostra o quão marginal é este governo”, afirmou o professor Britaldo Soares Filho, um dos autores do artigo publicado na One Earth e coordenador do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais.
Apesar de vedados pela Constituição, existem 3 mil requerimentos de pesquisa ou lavra em terras indígenas em tramitação na Agência Nacional de Mineração, dos quais 58 foram autorizados, segundo levantamento do projeto Amazônia Minada.
A recordista é a Anglo American Niquel, com 27 permissões para explorar cobre em terras indígenas em Mato Grosso e no Pará. Várias dessas autorizações ficam no território Sawré Muybu (Pimental), no sudeste do Pará, tradicionalmente ocupado pelo povo Munduruku, nas cercanias dos municípios de Itaituba e Trairão. Em 2019, a empresa faturou 10 bilhões de dólares.
Os principais beneficiários do projeto são, no entanto, os garimpeiros que operam na ilegalidade. O medo de ter a imagem vinculada à exploração de terras indígenas, o fato de ser um projeto de lei defendido por um governo que pode, daqui a dois anos, ser substituído, e a tendência crescente dos investidores internacionais de valorizar quem protege o meio ambiente são razões suficientes para afastar as empresas listadas em Bolsa ou dependentes do financiamento externo. Resta, portanto, quem opera na clandestinidade e contribui para que a Amazônia Legal continue a ser uma terra sem leis, digna do faroeste.
“Dificilmente mineradoras vão investir em projetos com grande risco ambiental e é disso que trata o PL. É uma proposta que não traz ganho nenhum para o País”, alerta Soares Filho.
O projeto foi protocolado na Câmara dos Deputados, mas ainda não começou a tramitar. Apesar da pressão do Palácio do Planalto e do lobby de parlamentares financiados pelo garimpo, existem barreiras legais e políticas que dificultam a aprovação.
O PL ignora, entre outros pontos, o poder de veto das etnias previsto nas Declarações Americana e das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas, documentos que vinculam todos os países que fazem parte dos sistemas da ONU e da OEA.
“O veto deve ser traduzido pela palavra ‘consentimento’, livre e fundamentado, dado antes de aprovar qualquer projeto que prejudique as TIs, desde a saúde do povo até os recursos ambientais”, esclarece o deputado federal Nilto Tatto, integrante da Comissão de Meio Ambiente da Câmara.
“O governo federal tem de observar esses tratados que possuem força de lei no Brasil. Mas, do nosso lado, da oposição, atuaremos para evitar a formação das comissões e adiar a votação. O Lira tem insistido em instalar as comissões e retomar as reuniões presenciais. Com isso, a pauta vai ser definida por maioria pelo colégio de líderes, que, claramente, está do lado do Bolsonaro. É nesse quadro que ‘a boiada vai passar’ no Congresso”, teme o parlamentar, cotado para presidir a comissão.
Dados do Greenpeace apontam que ao menos três territórios indígenas sofrem com a invasão do garimpo ilegal: Kayapó, no Pará, Yanomâmi, em Rondônia e no Amazonas, e Munduruku, também no Pará, caso mais grave, segundo a ONG, por causa do total descontrole da exploração ilegal.
No território Munduruku, 100% dos indígenas estariam contaminados pelo mercúrio, substância essencial da lavra, segundo estudo feito pela WWF em parceria com a Fiocruz. O Rio Tapajós, que corta a região, também está ameaçado pela disseminação do produto químico.
O garimpo ilegal funciona em um sistema que conta, inclusive, com a cooptação e a “compra” de indígenas. Os “escravos”, trabalhadores pobres e em busca do sonho de enriquecer, ganham pouco e enfrentam os riscos à saúde associados à atividade e à ira das etnias. Não são raros os conflitos que resultam em mortes. Os chamados “barões”, aqueles que de fato lucram, passam longe das lavras e dos holofotes, embora sejam bem conhecidos na região. O dinheiro levantado por essa turma não só enriquece uns poucos como azeita o lobby e a boa vontade de políticos diversos, de vereadores a senadores. Não é o suficiente. A aprovação do projeto livraria os “barões” de um inconveniente: a fiscalização, ainda que insuficiente, dos órgãos ambientais.
Em um ambiente quase totalmente desregulado, que ficou pior por conta do desmonte do Ibama, da Funai e da agência de mineração, a “lavagem do ouro” tornou-se uma atividade bem-sucedida nos últimos dois anos.
Sem fiscalização adequada, os garimpeiros valem-se de permissões de lavra falsas, que garantem a exploração e a venda do ouro. A “papelada” dá ares de legalidade ao negócio e protege os envolvidos das garras da lei.
“O garimpo é fruto da completa ausência de política pública e de uma política desenvolvimentista da Amazônia. Ela acabou aprisionada em uma lógica energética e agropecuária totalmente provinciana e colonial. A atividade é predatória e escraviza o povo da Amazônia, que não sabe o que é o Estado”, elabora Danicley Aguiar, do Greenpeace, morador da Amazônia há 45 anos.
“É uma questão de saúde pública, polícia e política. Nenhum governante, nem no Brasil Colônia, quis discutir com o povo daqui que futuro queremos para as 25 milhões de almas que vivem na Amazônia. Historicamente, nunca fomos enxergados.” Bolsonaro quer, no entanto, ir um pouco além: entregar as almas, cheias de mercúrio, a quem pagar mais.
Fonte: Carta Capital
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