Sem grandes novidades, nem espaço para improvisos, Jair Bolsonaro seguiu à risca o discurso preparado para a Cúpula do Clima dos líderes globais, com exceção de uma pequena gafe: na hora de reafirmar o compromisso brasileiro com a redução das emissões de gases de efeito estufa até 2030, estabelecida em 43% no âmbito do Acordo de Paris, Bolsonaro cometeu um aparente erro de leitura e disse que a meta era 40%. Afora este pequeno deslize, o presidente apenas repetiu o que já havia dito genericamente na carta enviada ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na última semana, e reforçou o objetivo de zerar o desmatamento ilegal até 2030, o que permitiria, de acordo com ele, o país alcançar a neutralidade climática até 2050. As palavras soam vazias, entretanto, diante de uma gestão que estrangula a atuação dos órgãos ambientais e que, até outro dia, quando era Trump quem sentava na Casa Branca, minimizava a destruição da floresta.
A fala de Bolsonaro (leia o discurso na íntegra no final desta matéria) trouxe, como de costume quando se trata da temática ambiental, dados imprecisos. Um deles, de que o Brasil ainda conserva 84% da Amazônia, quando as estimativas oficiais dos pesquisadores são de 80% (ou menos!). A maior mentira, entretanto, proferida por Bolsonaro diante dos líderes globais é a de que, para eliminar o desmatamento ilegal até 2030, “apesar das limitações orçamentárias do Governo, determinei o fortalecimento dos órgãos ambientais, duplicando os recursos destinados às ações de fiscalização”. Com a fiscalização paralisada no Ibama devido a mudanças normativas impostas pela atual gestão, o ICMBio ameaçando fechar brigadas de incêndios pela falta de recursos, e o Ministério do Meio Ambiente com o menor orçamento (elaborado pelo próprio governo federal) desde a virada do século, para citar apenas alguns exemplos, não há evidências que sustentem a afirmação sobre fortalecer órgãos ambientais. E sobre dobrar os recursos da fiscalização, só se Bolsonaro estiver considerando a verba de R$60 milhões mensais consumidas pela Operação Verde Brasil 2, das Forças Armadas que, apesar de estar em vigor desde maio de 2020 e prevista para terminar apenas no final deste mês de abril de 2021, não apresentou resultados efetivos na redução do desmatamento na Amazônia.
O compromisso de zerar o desmatamento ilegal até 2030 e de antecipar a neutralidade climática para 2050 são novidades bem recentes no discurso de Bolsonaro. No Acordo de Paris, firmado em 2015, o Brasil havia se comprometido a atingir a neutralidade climática até 2060. Apesar de seu discurso na Cúpula não ter indicado nenhuma contrapartida em troca da meta mais ambiciosa, na carta endereçada à Biden na última semana, Bolsonaro havia dito que o país só poderia alcançar a neutralidade uma década antes, “caso seja possível viabilizar recursos anuais significativos, que contribuam nesse sentido”.
Ainda que na Cúpula, não tenha exigido dinheiro internacional para avançar na pauta climática e ambiental, como tem feito o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, a fala de Bolsonaro deixa claro que o Brasil precisaria de recursos estrangeiros para trabalhar nessas agendas. “Diante da magnitude dos obstáculos, inclusive financeiros, é fundamental poder contar com a contribuição de países, empresas, entidades e pessoas dispostos a atuar de maneira imediata, real e construtiva na solução desses problemas”, afirmou o presidente.
Tudo indica que não será tão fácil, tampouco bastarão apenas palavras, para convencer outros países a abrirem o bolso para o Brasil. “A credibilidade de Bolsonaro anunciando isso é zero. E esse anúncio foi algo de última hora, não há nenhuma consistência técnico-científica sobre como se chega lá [na neutralidade em 2050] em absoluto”, avalia Eduardo Viola, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Brasília (UnB) e pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP). O professor ressalta, entretanto, que ainda que seja um discurso vazio de ações até o momento, a meta anunciada por Bolsonaro compromete ao Estado brasileiro, não ao governo dele, especificamente, “e isso representa uma marca. Não é mais 2060, como era antes, agora é 2050. Isso favorece as forças pró-clima no Brasil no futuro”, acrescenta em conversa com ((o))eco.
De acordo com Eduardo Viola, a recente mudança no discurso de Bolsonaro não é suficiente para apagar 2 anos e 4 meses de uma gestão tão nociva à área ambiental e agiu com desprezo à agenda climática. “Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro disse inclusive que queria sair do Acordo de Paris, seguindo o exemplo de Trump. Quando assumiu o governo, ele decidiu não sair porque houve toda uma pressão contrária, porque seria muito ruim para um país como o Brasil. A história de Bolsonaro é uma história antiambiental, sempre falando que o ambientalismo e a legislação ambiental são um obstáculo ao desenvolvimento do Brasil e que, basicamente, sua ideia de desenvolvimento na Amazônia é uma ideia da década de 70, do regime militar, de derrubar a floresta para introduzir pecuária e agricultura. Essa foi a postura de Bolsonaro até agora. A chave para entender essa mudança de postura de Bolsonaro é o fim da presidência de Trump e, mais ainda, a vinda de um presidente oposto totalmente ao Trump e que coloca uma ambição de meta climática muito alta. Ele está num cenário geopolítico muito desfavorável. Tem um ajuste na retórica, mas a história de Bolsonaro é antiambiental e o mundo sabe disso”, analisa o professor, especialista em negociações do clima.
“O discurso oficial [dos outros países] vai ser ‘que bom que houve uma mudança, esperamos fatos concretos, esperamos que já em 2021 haja uma diminuição substancial do desmatamento na Amazônia’. Não vão dizer que ele está mentindo ou que não tem credibilidade para fazer isso, por mais que provavelmente pensem isso, mas o discurso oficial vai ser ‘você mudou, isso é bom, agora queremos ver a implementação, os fatos e logo, não daqui a dois anos, agora’”, continua Eduardo.
Logo na abertura do seu discurso, Bolsonaro tentou ainda minimizar o papel do desmatamento da Amazônia no problema climático ao dizer que “ao discutirmos mudanças do clima, não podemos esquecer a causa maior do problema, a queima de combustíveis fósseis ao longo dos últimos dois séculos”. A destruição da floresta é a maior causa de emissões de carbono do Brasil.
De acordo com os dados mais recentes disponíveis no Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG), em 2019 o Brasil respondeu pela emissão de 2,17 bilhões de toneladas brutas de dióxido de carbono equivalente (tCO2e). Deste total, 968 milhões de toneladas, o equivalente a 44%, tiveram origem na mudança de uso da terra e florestas, lê-se desmatamento e queimadas. O setor da energia é o terceiro em quantidade de emissões no país, com 413,6 milhões de toneladas brutas de dióxido de carbono equivalente, atrás da agropecuária, com 598,6 milhões de toneladas.
Emissões do Brasil em 2019 (por setor) em toneladas brutas de dióxido de carbono equivalente (tCO2e)
Energia | 413.673.635 tCO2e |
Agropecuária | 598.672.055 tCO2e |
Processos industriais | 99.074.468 tCO2e |
Resíduos | 96.155.226 tCO2e |
Mudança de Uso da Terra e Florestas | 968.055.554 tCO2e |
TOTAL | 2.175.630.937 tCO2e |
Valores em toneladas brutas de dióxido de carbono equivalente (tCO2e) referentes ao ano de 2019. Fonte: SEEG
((o))eco procurou o Ministério das Relações Exteriores para confirmar que a meta até 2030 de reduzir as emissões é de 43%, como estava escrito no discurso oficialmente divulgado, e não de 40%, como disse Bolsonaro durante o discurso na Cúpula, provavelmente por um erro de leitura, mas o Itamaraty não retornou o contato a tempo da publicação desta matéria.
O discurso na íntegra:
“Senhores Chefes de Estado e de Governo,
Senhoras e Senhores,
Agradeço o convite para participar desta Cúpula de Líderes. Historicamente, o Brasil é voz ativa na construção da agenda ambiental global. Renovo, hoje, essa credencial, respaldada tanto por nossas conquistas até aqui quanto pelos compromissos que estamos prontos a assumir perante as gerações futuras.
Como detentor da maior biodiversidade do planeta e potência agroambiental, o Brasil está na vanguarda do enfrentamento ao aquecimento global. Ao discutirmos mudanças no clima, não podemos esquecer a causa maior do problema: a queima de combustíveis fósseis ao longo dos últimos dois séculos.
O Brasil participou com menos de 1% das emissões históricas de gases de efeito estufa, mesmo sendo uma das maiores economias do mundo. No presente, respondemos por menos de 3% das emissões globais anuais.
Contamos com uma das matrizes energéticas mais limpas, com renovados investimentos em energia solar, eólica, hidráulica e biomassa. Somos pioneiros na difusão de biocombustíveis renováveis, como o etanol, fundamentais para a despoluição de nossos centros urbanos.
No campo, promovemos uma revolução verde a partir da ciência e inovação. Produzimos mais utilizando menos recursos, o que faz da nossa agricultura uma das mais sustentáveis do planeta. Temos orgulho de conservar 84% de nosso bioma amazônico e 12% da água doce da Terra. Como resultado, somente nos últimos 15 anos evitamos a emissão de mais de 7,8 bilhões de toneladas de carbono na atmosfera.
À luz de nossas responsabilidades comuns, porém, diferenciadas, continuamos a colaborar com os esforços mundiais contra a mudança do clima. Somos um dos poucos países em desenvolvimento a adotar, e reafirmar, uma NDC transversal e abrangente, com metas absolutas de redução de emissões inclusive para 2025, de 37%, e de 43% até 2030. Coincidimos, Senhor Presidente, com o seu chamado ao estabelecimento de compromissos ambiciosos. Nesse sentido, determinei que nossa neutralidade climática seja alcançada até 2050, antecipando em 10 anos a sinalização anterior.
Entre as medidas necessárias para tanto, destaco aqui o compromisso de eliminar o desmatamento ilegal até 2030, com a plena e pronta aplicação do nosso Código Florestal. Com isso, reduziremos em quase 50% nossas emissões até essa data.
Há que se reconhecer que será uma tarefa complexa. Medidas de comando e controle são parte da resposta. Apesar das limitações orçamentárias do Governo, determinei o fortalecimento dos órgãos ambientais, duplicando os recursos destinados às ações de fiscalização.
Mas é preciso fazer mais. Devemos enfrentar o desafio de melhorar a vida dos mais de 23 milhões de brasileiros que vivem na Amazônia, região mais rica do país em recursos naturais, mas que apresenta os piores índices de desenvolvimento humano.
A solução desse “paradoxo amazônico” é condição essencial para o desenvolvimento sustentável da região. Devemos aprimorar a governança da terra, bem como tornar realidade a bioeconomia, valorizando efetivamente a floresta e a biodiversidade. Esse deve ser um esforço, que contemple os interesses de todos os brasileiros, inclusive indígenas e comunidades tradicionais.
Diante da magnitude dos obstáculos, inclusive financeiros, é fundamental poder contar com a contribuição de países, empresas, entidades e pessoas dispostos a atuar de maneira imediata, real e construtiva na solução desses problemas.
Neste ano, a comunidade internacional terá oportunidade singular de cooperar com a construção de nosso futuro comum. A COP26 terá como uma de suas principais missões a plena adoção dos mecanismos previstos nos Artigos 5º e 6º do Acordo de Paris.
Os mercados de carbono são cruciais como fonte de recursos e investimentos para impulsionar a ação climática, tanto na área florestal quanto em outros relevantes setores da economia, como indústria, geração de energia e manejo de resíduos.
Da mesma forma, é preciso haver justa remuneração pelos serviços ambientais prestados por nossos biomas ao planeta, como forma de reconhecer o caráter econômico das atividades de conservação. Estamos, reitero, abertos à cooperação internacional.
Senhoras e senhores, como todos, reafirmamos em 92, no Rio de Janeiro, na conferência presidida pelo Brasil, o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de tal forma que a resposta equitativamente e de forma sustentável às necessidades ambientais e de desenvolvimento das gerações presentes e futuras. Com esse espírito de responsabilidade coletiva e destino comum, convido-os novamente a apoiar-nos nessa missão.”
Fonte: O Eco
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