A atual edição do programa Big Brother Brasil (BBB) é a que mais teve participantes negros e uma das que mais tiveram discussões dentro da casa sobre questões raciais e envolvendo minorias.
Enquanto a identidade racial de algumas pessoas da casa foi questionada — como o economista Gil, que sofreu piadas quando disse que se considera negro — outros foram acusados fora da casa de “fazer militância errada” e serem hipócritas — como a participante Lumena, que falou diversas vezes sobre direitos LGBT, mas em outro momento questionou a sexualidade de um participante que se assumiu bissexual.
A pesquisadora Daniela Gomes critica a ideia de que as atitudes de participantes como Projota, Karol Conká e Lumena “prejudicam o movimento negro”.
“Eles estão ali representando um movimento, uma militância, ou estão representando a si mesmos?”, questiona Gomes, que é doutora pela Universidade do Texas e professora na Trinity College, em Connecticut, ambas nos Estados Unidos.
Generalizar atitudes vistas como erradas dos participantes como se fossem representativas do movimento negro (que é formado por muitos grupos e inúmeras entidades) é resultado justamente do racismo, diz ela.
“Nós pessoas negras não somos tratados como indivíduos, como pessoas passíveis de erros e acertos. Então se eu cometo um erro, como uma figura pública, quem está sendo tachado é a população negra. Isso volta lá na escravidão, a gente não entra na sociedade moderna como ser humano, entra como bicho. A gente não é individualizado, os nossos erros são sempre coletivos”, afirma.
Segundo Gomes, a forma com que conceitos da luta contra o racismo e o machismo são “jogados” de maneira superficial no programa acaba por banalizar temas de extrema importância e que deveriam ser tratados de forma séria e profunda — e não como “polêmica”.
“Ninguém que está assistindo aquilo ali está realmente preocupado com aquela pauta. A pessoa quando assiste BBB ela quer saber quem tá indo pra debaixo do edredom, quem tá brigando por comida. Se não você não vai assistir reality show. Eu vou assistir a minha própria aula (risos), vou ver o jornal.”
Por outro lado, diz, o interesse despertado por um programa tão popular pode ser uma oportunidade de explicar conceitos — fora do programa — para um público que nunca havia entrado em contato com certas discussões.
Gomes afirma também que a atitude dos participantes sequer deveria ser considerada ativismo. “Eles não estão militando, não têm como objetivo defender os direitos das pessoas, estão defendendo… Qual é o prêmio desse programa? É dinheiro!”, diz ela.
O prêmio para o último colocado a permanecer na casa após sucessivas eliminações é de R$ 1,5 milhão, mas os ganhos com a publicidade podem superar em muito essa quantia. Diversos ex-participantes — como a apresentadora Sabrina Sato e a atriz Grazi Massafera — fizeram carreiras muito lucrativas após deixar o programa.
Para a pesquisadora, no entanto, o que realmente preocupa não é como as pessoas podem generalizar atitudes de participantes considerados “vilões da edição”, como Karol Conká, mas os ataques e as ameaças violentas que eles podem encontrar do lado de fora.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil – Qual é o impacto de um programa tão popular quanto o BBB levantar questões relacionadas a racismo, gênero e direitos de minorias em geral?
Daniela Gomes – A gente pode pensar de duas formas. A primeira é o impacto de trazer o debate para a sociedade sobre racismo, machismo, LGBTfobia, que as pessoas jogam para debaixo do tapete. Quando uma das maiores emissoras do Brasil coloca isso ali de forma escancarada, as pessoas têm que lidar com aquilo. Mesmo se você não assista, vai aparecer no jornal, vai aparecer no programa de fofoca, na sua linha do tempo se você é usuário de rede social.
Por outro lado, esvazia pautas — você tem um assunto muito importante que precisa desvendar várias camadas, que tem vários fatores que influenciam, e você trata aquilo como se fosse a novela das 8. Existe uma banalização de certos temas.
BBC News Brasil – Neste ano, a Globo teve uma preocupação em colocar mais negros para o programa e teve até um dos participantes, Fiuk, que fez um curso para entender melhor questões de raça e gênero e não cometer gafes. Isso não quer dizer que a preocupação com esses temas é maior, que os assuntos chegaram em lugares onde antes não iam?
Gomes – O Fiuk chegou a ser engraçado porque ele abordava o tema em um momento que não tinha a ver exatamente com o que ele estava falando. Óbvio que é interessante que um ator como ele tenha um posicionamento de dizer “eu vou pelo menos aprender sobre tal e tal coisa para que eu não fale nenhuma besteira”. Então já demonstra um interesse da pessoa — ou da sua agência de relações públicas — de mostrar que ele tem uma mente mais aberta. Por outro lado, não é uma verdade que as pessoas saibam desses temas, ainda falta avançar muito.
Quanto ao interesse da emissora, o interesse é a audiência, então é óbvio que ela vai trazer essas pautas porque elas são interessantes para a audiência que ela quer atingir, porque o público está falando sobre isso, as pessoas jovens estão cada vez mais abordando isso com naturalidade. O problema não é nem colocar no entretenimento, mas é como traduzir essas pautas depois para a própria realidade da emissora — vai ter diversidade nos programas, nas novelas, no próprio jornalismo? Se eles fizerem esse exercício, aí sim é superválido.
BBC News Brasil – Uma das questões trazidas pelo BBB foi a da identidade da participante Sarah, cuja mãe é negra, mas no Brasil ela é considerada branca e nos EUA, não. Como é essa questão da identidade latina nos EUA e como fica a questão dos latinos negros?
Gomes – Questões raciais e identitárias variam de acordo com tempo, espaço, contexto histórico. Dentro dos EUA, essas identidades étnico-raciais são muito mais marcadas do que são no Brasil.
No Brasil, a gente vive essa ideia de democracia racial (que não há racismo porque somos todos miscigenados), que é um mito, que não existe, mas a aparência fala muito mais do que a genética. E a Sarah é uma mulher lida socialmente como branca — a mãe dela é negra, mas você olha pra ela, você vê uma mulher branca, ela tem a pele clara, cabelo liso, traços caucasianos.
Nos EUA, se ela tivesse nascido até pouco depois dos movimento pelos direitos civis (nos anos 1960), ela seria considerada negra, não se teria dúvida da negritude dela. Eles tinham uma teoria de “uma única gota” — se a pessoa tem uma única gota de sangue negro, ela é negra. É uma teoria para evitar a miscigenação, casamentos interraciais eram proibidos.
Depois dos anos 1980, eles passam a viver o que eles chamam de “sociedade pós-racial” (a ideia de que com o fim da segregação as questões estão resolvidas, o que não é verdade). Mas com isso cada vez mais pessoas tem optado por aderir a mais de uma identidade. Um caso clássico é a Meghan Markle, que tem a mãe negra e o pai branco. Quando ela foi racializada? Quando ela casou com o príncipe Harry. Por quê? Porque aí ela não é branca o suficiente. E ela assumiu a identidade birracial.
A Sarah, se tivesse nascido aqui nos EUA depois dos anos 1980, ela talvez se declarasse birracial. No Brasil, ela é branca, mas quando ela imigra para cá, ela passa a ser latina. Só que, dentro da população latina, as pessoas também tem diferentes raças e etnias.
Sempre existiram latinos nos EUA, mas com a imigração em massa de populações latinas de diferentes países, eles formaram um “guarda-chuvão” chamado latinidade, e enfiaram todo mundo ali embaixo. Sem pensar que esses são países diversos e sem pensar nas dinâmicas raciais locais.
Então, a minha vivência como imigrante negra não é a vivência de um brasileiro branco. A população latina negra dentro dos EUA — não só de imigrantes, mas de filhos de imigrantes — estão apontando o quê? Que etnia e raça são coisas diferentes. “Nós somos plurais. Essa latinidade que vocês estão apontando não nos contempla. Nós sofremos racismo, sim. Nós somos negros.” Porque tanto os brancos, e mesmo a comunidade afro-americana, eles associam a pessoa ser latina a só ter aquela identidade.
A Sarah, porque a maioria dos latinos têm a mesma visão do Brasil de que o fato da mãe dela ser negra não importa, é uma latina percebida como latina branca. Mas se Sarah voltar pros EUA e disser “eu sou negra”, ninguém vai questionar isso.
BBC News Brasil – O participante Gil disse que se reconhece como negro e se declara como negro. Mas outros participantes — como Negro Di — tiraram sarro dele, disseram que ele “no máximo” é “sujinho”. Como você avalia essa questão?
Gomes – Existem regionalismos dentro do Brasil. Alguém que poderia ser considerado branco em Salvador, não seria em São Paulo e no Rio de Janeiro. Porque quanto mais população europeia se tem em um Estado, mais a noção de branquitude vai se parecer com aquilo. Você pode até não ser preto, mas branco você também não é. A outra coisa é que muitas pessoas como Gil, como eu, não se assumem negras. Com isso, acaba-se gerando um pé-atrás (entre pessoas do movimento negro). Mas quem começou a questionar a identidade dele foi o Projota, que é da mesma cor de que ele. Então teve a ver não só com a confusão racial que é o Brasil, mas muito mais por uma questão de afinidade. “Não gosto de você, você não faz parte do meu grupo.” Se eles tivessem afinidade, a negritude dele não seria questionada.
Eu não tenho dúvidas da negritude do Gil. Não só pelos traços, mas porque ele se afirma como tal. Se tem uma coisa na sociedade — tirando a questão de cotas, em que pessoas afirmam uma negritude inexistente parar tirar vantagem — qual é a vantagem que as pessoas tem em se identificar como negro no Brasil? Quem quer ser agredido, insultado, seguido em loja?
Então, muitas vezes quem pode se afastar da negritude, vai se afastar. O posicionamento político identitário do Gil é real, é uma opção política. Hoje, a gente tem muito mais pessoas com o tom de pele do Gil se declarando negras. E de verdade? O racismo sabe quem é negro, a polícia sabe quem é negro, a pessoa que vai discriminar sabe quem é negro. Para quem detém poder estrutural no Brasil, não tem confusão nenhuma.
BBC News Brasil – Você falou que a atitude das pessoas que tiraram sarro dele foi uma questão de afinidade. Você acha que misturar um assunto como esse com um problema pessoal é “militar errado”?
Gomes – Eu não creio que existe militar errado. Ali eles não perceberam ele como um militante, como um igual. Porque eles não estão militando, eles estão defendendo… qual é o prêmio desse programa? É dinheiro! É R$ 1,5 milhão. Eles estão se amando agora, daqui a cinco minutos eles vão estar se estapeando. Estão disputando o mesmo prêmio. Eles querem dinheiro, visibilidades, todos eles — não só os participantes negros.
Então, pode ter rolado até uma dúvida. Mas rolou uma questão de que ele não é parte do grupo. Mas tanto isso não tem a ver com a questão da militância que o Lucas é retinto (negro de pele escura). E foi excluído do mesmo jeito — muito pior até. E aí a pauta era outra, era a questão de gênero, era militar errado.
BBC News Brasil – Nesta edição do programa, algumas das pessoas que são mais impopulares do lado de fora, como a cantora Karol Conká (que perdeu milhares de seguidores e foi considerada ‘vilã’ da edição), são as mesmas que têm falado sobre essas questões (envolvendo minorias). Como você avalia a atitude deles? Acha que podem “prejudicar o movimento negro”, como algumas pessoas dizem nas redes sociais?
Gomes – Isso é muito complicado porque nós pessoas negras não somos tratados como indivíduos, como pessoas passíveis de erros e acertos. Então, se eu cometo um erro, como uma figura pública, quem está sendo tachado é a população negra. Isso volta lá na escravidão, a gente não entra na sociedade moderna como ser humano, entra como bicho. A gente não é individualizado, os nossos erros são sempre coletivos. (Então se a Conká comete um erro, as pessoas falam) “Ah, tá vendo a ativista!”. Isso é um ponto.
Outro ponto são aquelas pessoas que estão ali. Elas estão ali representando um movimento, uma militância ou estão representando a si? Porque quem entrou ali… Primeira coisa, o que é o movimento negro? É o nome que se dá a múltiplas entidades e organizações antirracistas. O meu posicionamento não necessariamente é o posicionamento da Lumena, que não necessariamente é o posicionamento do Lucas, que não necessariamente o da Karol. Isso tudo tem que ser discutido nos locais de prática ativista que elas frequentam. A gente pode sim dizer, olha, eu rechaço essa atitude, mas eu não sou dona do comportamento deles.
A outra coisa: essas pessoas se declararam ativistas? Eu sei, por exemplo, que Lumena e Lucas se declaram. As outras pessoas… A Karol Conká é uma artista, Projota é um artista. Pelo tipo de arte que eles fazem, que é o hip hop, a gente espera que eles tenham uma certa coerência com esse movimento cultural e político. Mas eles ainda são artistas. Negro Di é um comediante. Então, quem são essas pessoas no indivíduo? Às vezes, eles estão só agindo com o próprio pensamento, com as próprias ações, e pode ser que eles não tenham conhecimento de muitas coisas — e eu não estou dizendo que é o caso porque eu não os conheço pessoalmente. Estou dizendo pelo que eu observo do programa.
É um desserviço para a militância? Não sei. Eu acho que algumas pautas deveriam ser tratadas com mais cuidado.
Mas o que eu acho mais interessante desse programa é que eles conseguiram levar para a televisão as pautas que estão nas redes sociais. Onde as pessoas entram para fazer coisas absurdas, não só com negros, mas com a população LGBT, com defensores de animais, com pessoas que lutam contra a gordofobia, que são linchadas publicamente.
Isso porque estar atrás da tela do celular dá às pessoas uma certa coragem para ser um monstro. O que faz uma pessoa entrar na página da Karol Conká para desejar que o filho dela morra? Ou para entrar na página do Nego Di para dizer que o filho dele não deve ir pra escola porque ele vai ser assassinado? É um ambiente muito cheio de ódio. E a produção conseguiu levar isso para a tela.
Eu não vi ninguém do meu círculo de militantes dizer que eles estavam corretos. O que a gente tem pontuado é qual é a proporcional que isso vai tomar, principalmente quando eles saírem da casa. Porque para nós, negros, não existe segunda chance. Principalmente mulheres negras, e principalmente mulheres negras, como Karol e Lumena, que tem pele escura. Uma vez que você erra, ele não tem oportunidade novamente. A preocupação não é nem o ato da pessoa que merece, claro, cobrança e responsabilização. A questão é a que ponto isso vai interferir completamente no resto da vida dessa pessoa. Ela é uma moça de 30 e poucos anos, ela pode sair desse programa, assistir as coisas que fez e dizer “o que foi isso?”, procurar ajuda, se desculpar. Mas a gente tem essa oportunidade? A cobrança não vai ser a mesma. A gente já teve participantes brancos que saíram e estão presos até hoje por pedofilia e você não teve esse nível de rejeição. A gente já teve participantes acusados de estupro que são aclamados até hoje.
BBC News Brasil – Em outras edições do BBB, algumas mulheres brancas que trouxeram temas de minorias, como a questão do machismo, foram aclamadas como “fadas sensatas”, enquanto quando participantes negros que falavam de racismo eram considerados “militantes”. Essa é uma dinâmica que se reproduz na vida real?
Gomes – O tempo inteiro. Eu sendo heterossexual e cisgênera, se eu começar a falar em prol da comunidade LGBT, eu vou ser tida como uma pessoa de mente aberta, vou ter um destaque. Agora, se for uma mulher trans falando, especialmente uma mulher trans negra, nem espaço para falar ela vai ter. A mesma coisa um homem “feministo”, todo mundo diz: “olha que desconstruído, olha que importante”. Mas se for uma mulher falando contra o machismo, a resposta é “mas tá vendo só, essa ‘feminazi'”.
Então isso acontece, a rejeição da pessoa vem antes da rejeição da pauta. O que as pessoas vão olhar primeiro, antes de ouvir o que eu estou falando, é essa figura aqui. A primeira rejeição é quando elas me olham, como mulher negra, porque eu não deveria nem estar ocupando esse espaço.
Fonte: BBC News Brasil
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