Em uma sociedade cada vez mais urbana, o desenvolvimento de cidades sustentáveis é essencial para a garantia da qualidade de vida das pessoas. Segundo a ONU, atualmente 55% da população mundial vivem em áreas urbanas e a expectativa é de que aumente para 70% até 2050. No Brasil, onde a urbanização se consolida a partir da década de 1950, cerca de 84% da população é urbana. Caracterizadas por processos de ocupação desordenada, nossas áreas urbanas enfrentam vários riscos associados à degradação ambiental, com impactos para a segurança e qualidade de vida de seus habitantes.
A legislação ambiental reconhece a essencialidade da preservação de áreas naturais nas cidades. As Áreas de Preservação Permanente (APPs) urbanas estão disciplinadas e protegidas pela Lei Federal nº 12.651/12 (Lei de Proteção da Vegetação Nativa) e sua delimitação deve seguir, com o mesmo rigor, os critérios estabelecidos para as áreas rurais. A ciência já demonstrou que a conservação da vegetação de APP em áreas urbanas favorece a mitigação dos efeitos desastrosos dos eventos extremos de chuvas em áreas de encosta e de várzeas, pois previnem deslizamentos e servem de anteparo natural às enchentes, pela maior permeabilidade do solo, e portanto, salvam vidas. Além disso, melhoram o clima dos centros urbanos, pela diminuição da temperatura do ar e das superfícies e aumento da umidade atmosférica; colaboram na preservação da biodiversidade; auxiliam na proteção e manutenção da quantidade e qualidade dos recursos hídricos e melhoram muitos indicadores de saúde da população. Assim, as APPs deveriam ser alvos de restrições acentuadas de uso e priorizadas como áreas de reservas de biodiversidade, de estocagem de águas e de prevenção de desastres. Por isso, a conservação e a reabilitação funcional das vegetações de APP urbanas devem ser consideradas prioritárias para o bem estar e proteção da população.
As funções das APPs estabelecidas por lei tornam-se ainda mais relevantes diante das conclusões do mais recente relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado em 9 de agosto, e que destaca os impactos da mudança do clima em áreas urbanas. Os centros urbanos e as cidades são mais quentes do que as áreas rurais vizinhas devido ao que é conhecido como o efeito ilha de calor urbana. Este efeito resulta de vários fatores, como a redução da ventilação e do aprisionamento do calor devido à proximidade de edifícios altos, o calor gerado diretamente das atividades humanas, as propriedades de absorção de calor do concreto e de outros materiais, e da quantidade limitada de vegetação. Diante das projeções de aumento da temperatura global, a urbanização futura ampliará o aumento de temperatura do ar nas cidades, independentemente das características do clima regional. Assim, em comparação com os dias atuais, esperam-se fortes implicações da combinação do desenvolvimento urbano futuro e ocorrência mais frequente de eventos climáticos extremos, aumentando o estresse térmico nas cidades.
Enquanto a população urbana cresce e a mudança climática se intensifica, aumentam também os efeitos da urbanização sobre a vegetação, os recursos hídricos e os rios. No Brasil, a ocupação de várzeas e planícies de inundação natural dos cursos de água e de áreas de encostas tem sido uma das principais causas de desastres em função de eventos extremos de precipitação, ocasionando, anualmente, perdas de vidas humanas e prejuízos econômicos. Áreas urbanas, devido à alta densidade populacional e infraestrutura são especialmente vulneráveis a tais desastres.
Em suma, as APPs em áreas urbanas possuem papel fundamental para mitigar o estresse térmico nas cidades e contribuem para a redução do risco de enchentes, que também devem se tornar mais frequentes com as mudanças climáticas.
A despeito das robustas evidências apontando a importância das áreas de preservação permanentes urbanas, dois projetos de lei devem ser votados na próxima semana (PL 2510/2019 na Câmara Federal – autoria do Dep. Rogério Peninha Mendonça (MDB-SC) e o PL 1869/2021 no Senado – autoria do Sen. Jorginho Mello PL-SC), ambos contendo graves ameaças a esses elementos funcionais da paisagem de nossas cidade e à qualidade de vida urbana
O PL 1869/2021, altera o marco temporal das APPs. Pela Lei de Proteção da Vegetação Nativa, apenas áreas consolidadas até 22 de julho de 2008 são passíveis de regularização. Após essa data, os limites estabelecidos pela Lei devem ser cumpridos. A nova proposta altera para a data de publicação da nova lei em discussão, ou seja, são pelo menos mais 13 anos de descumprimento da Lei de Proteção da Vegetação Nativa que seriam perdoados, premiando os infratores. Ainda, inverte os papéis no processo de manutenção das APPs. Em vez do empreendimento justificar que a ocupação é de interesse público, é proposto que o município deve fazer pareceres individuais, ressaltando que a APP é relevante e por isso não pode ser ocupada, o que além de ser burocrático, caro e trabalhoso para o município, abre brechas para a pressão econômica e corrupção. Por fim, transfere para os municípios a definição e regulamentação da largura dessas faixas marginais.
Já o PL 2510/2019, transfere aos municípios a competência para dispor sobre APPs urbanas e não impõe limites mínimos de preservação de vegetação nas faixas marginais de quaisquer cursos de água naturais. Além disso, não impõe limite de tempo para a observância das regras da Lei de Proteção da Vegetação Nativa, permitindo novos desmatamentos em APPs urbanas, observado apenas os limites impostos pelos municípios, que pode ser limite zero.
A mitigação e a adaptação às mudanças climáticas se somam aos demais benefícios das APPs urbanas que guardam uma importância vital para a manutenção da qualidade e integridade do meio ambiente urbano, com comprovados reflexos na saúde da população. Em um país majoritariamente urbano e com taxas crescentes de urbanização, os dois PLs que trucidam a legislação sobre APPs urbanas desconsideram nossa dependência de suas funções ecológicas, aumentam consideravelmente nossa vulnerabilidade aos profundos impactos da degradação ambiental e vão na contramão dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), em particular, o ODS 11 que preconiza tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.
A sociedade espera que nossos representantes no Congresso Nacional atuem com a responsabilidade e a seriedade que a matéria merece.
*Artigo endossado pela Coalizão Ciência e Sociedade, composta por cientistas de todas as regiões do Brasil ((www.cienciasociedade.org)
Fonte: O Eco
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