A sociedade brasileira deve se perguntar a quem interessa a morte do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por lento afogamento.
Por Hernan Chaimovich
O CNPq já foi conhecido como Conselho Nacional de Pesquisa, mas manteve a sigla e o espírito de casa do cientista. O seu conselho diretor (CD) sempre foi composto por cientistas, intelectuais, capitães da indústria inovadora, alguns representantes do governo e funcionários da casa. O CD determinou, desde a criação do CNPq, as estratégias de pesquisa no país, olhando para a formação de pessoal, para a ciência fundamental, as humanidades e elaborando programas que atendem necessidades sociais nacionais.
Decisões individuais, tanto de bolsas de formação quanto de projetos de pesquisa e programas, são tomadas pela diretoria do órgão, baseadas estritamente nas recomendações de comitês compostos por membros destacados da comunidade acadêmica, sugeridos pelos seus pares do país todo. São essas características que tornaram o CNPq a casa do cientista e ainda garantiram, durante mais de setenta anos, um olhar para todo o Brasil.
É com espanto e revolta que hoje, no meio da pandemia, num momento em que a necessidade de manter a estrutura da criação de ciência e tecnologia no Brasil é mais premente, vemos como a Lei de Orçamento trata o CNPq.
Longe de mim a intenção de contar a história das inúmeras contribuições de cientistas de todas as idades e inovadores que, apoiados pelo CNPq, fizeram as glórias sociais, econômicas e culturais do Brasil. Isso seria por demais longo e desviaria a atenção da tragédia presente. O propósito deste breve artigo é olhar para o orçamento do CNPq no ano 2021.
Antes disso é de interesse olhar para a figura que mostra a evolução dos valores executados (investidos) pelo CNPq desde 2002, descontando o investimento no Programa Ciência sem Fronteiras (CsF). Este ano, 2002, não se escolhe por acaso – foi somente então que se implantou uma sistemática de apresentação de dados que permite comparações e análise.
Todos os dados vêm de fontes oficiais (MCTI, CNPq e Lei Orçamentária). Os círculos azuis representam o total do investimento executado (efetivamente investido) pelo CNPq. O investimento decidido estrategicamente pelo Conselho Deliberativo do CNPq, até 2008, era bem mais do que a metade do total executado. A partir dessa data, encomendas de outros ministérios ou outras fontes costumam a ser da ordem do orçamento próprio. Note-se que, quando o recurso é executado pelo CNPq, mas não provém do próprio orçamento, é comum que, na elaboração da ação o CNPq não tenha papel decisório.
É fundamental observar que na medida em que o orçamento próprio do CNPq passa a ser somente parte do total executado, a “casa do cientista” deixa de ter liberdade de formular estratégias de desenvolvimento de ciências naturais e humanas e passa a depender de decisões de investimento que não representam, necessariamente, os interesses relacionados com a ciência e os cientistas.
Mesmo assim, a diminuição do total executado cai linearmente com o tempo desde o pico atingido em 2014. Se esse declínio for linear podemos, ao extrapolar, predizer que o CNPq não irá executar nada, isto é, deixará de existir, perto de 2030. Os valores representados no gráfico como estrelas podem indicar que essa extrapolação está errada, e o CNPq pode deixar de existir antes.
As duas estrelas representam dois itens distintos do Orçamento Geral da União para 2021. E para que fique clara a implicação é preciso descrever, resumidamente, a peça orçamentária.
Para tal é preciso analisar, com vagar e muita paciência, o Orçamento da União, Exercício Financeiro de 2021, Projeto de Lei no 28/2020-CN, Mensagem 487/2020 . Neste orçamento, o que interessa, para entender o que pode acontecer com o CNPq, está no Volume II, onde se apresenta a Consolidação Dos Programas De Governo.
Em um dos Itens dos Programa Finalísticos, chamado retoricamente de “Brasil na Fronteira do Conhecimento” (Programa 2204), dentro do MCTI (Sigla 24000) se atribuem valores a Unidades Orçamentárias (UO), dentre elas o CNPq.
No Item 24201 se atribui a esta UO (CNPq) o valor de R$ 341.705.985 com o propósito de “Formação, Capacitação e Fixação de Recursos Humanos Qualificados para a Pesquisa e Desenvolvimento (P&D)”. Ainda se destinam ao CNPq, sob siglas relacionadas ao item 24000, para “Fomento a Projetos, Programas e Redes de Pesquisa e Desenvolvimento” o montante de R$ 11.621.658. O valor de R$ 2.000.000 é destinado à “Cooperação Internacional em Ciência, Tecnologia e Inovação”, e o valor de R$ 2.000.000 para “Apoio a Projetos e Eventos de Educação, Divulgação e Popularização da Pesquisa e Desenvolvimento”. Para “Formação e Expansão da Capacitação de Pessoal Qualificado em Atividades de Pesquisa Tecnológica, Empreendedorismo e Inovação” alocam-se R$ 15.562.607.
Isto é, o montante que, antes dos contingenciamentos, é atribuído ao CNPq, representado pela estrela azul no gráfico, encontra-se perto de R$ 371 milhões.
Mas a descrição não termina aí, pois existem outros itens que contemplam o CNPq, nos “créditos suplementares”. Agrupados coletivamente sob siglas relacionadas ao item 93000 do Orçamento, estes são “Programações Condicionadas à Aprovação Legislativa prevista no inciso III do art. 167 da Constituição”.
Entre os Programas para “Formação, Capacitação e Fixação de Recursos Humanos Qualificados para a Pesquisa e Desenvolvimento (P&D)”, no item 93186, atribuem-se ao CNPq R$ 556.368.621. Para “Formação e Expansão da Capacitação de Pessoal Qualificado em Atividades de Pesquisa Tecnológica, Empreendedorismo e Inovação”, no item 93186, propõem-se R$ 9.082.334.
Esse total adicional de R$ 566 milhões, correspondente à estrela vermelha do gráfico, não está hoje garantido. A liberação de montante depende de o Poder Executivo enviar ao Congresso um projeto de lei que pode, ou não, incluir todos os itens orçamentários relacionados às siglas que começam com 93.
No melhor dos casos, o orçamento total do CNPq para 2021, se tudo for aprovado e não houver contingenciamento, seria R$ 922 milhões, cerca de trezentos milhões menor que o total executado em 2020.
Desta forma a extrapolação dos dados mostrados na figura poderia indicar que o CNPq, uma instituição historicamente essencial para a sociedade brasileira poderia, depois de setenta anos, fecha as portas antes de 2025. A quem interessa isto?
Hernan Chaimovich é professor emérito do Instituto de Química da USP
Fonte: Questão de Ciência
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