Um único Estado dentre os 50 que compõem os Estados Unidos se tornou o pivô do destino de todo o país. Nesta terça, dia 5/1, republicanos e democratas voltam a se enfrentar nas urnas pela primeira vez desde a eleição presidencial de novembro, que tornou o democrata Joe Biden o 46º presidente da história dos Estados Unidos.
A disputa na Geórgia por dois assentos no Senado, que definirá quanto poder de fato o governo Biden terá para fazer mudanças, acontece menos de 48 horas depois da revelação de uma ligação telefônica entre o presidente Donald Trump e o secretário de Estado, Brad Raffensperger, na qual o presidente, em meio a acusações e falsas alegações de fraude eleitoral, afirma: “tudo que eu quero fazer é isso: só quero encontrar 11.780 votos, um a mais do que nós temos. Porque ganhamos o Estado”.
Historicamente republicana, a Geórgia deu em 2020 vitória a um presidenciável democrata pela primeira vez em 28 anos. Biden venceu por margem de menos de 12 mil votos, a segunda menor diferença entre ele e Trump em um Estado. A disputa foi tão apertada que obrigou a um segundo turno entre os candidatos a senadores, por isso o pleito fora de hora.
A Geórgia também se converteu no principal campo de batalha de Trump em sua tentativa de reverter a derrota eleitoral ao longo dos últimos dois meses. Embora sozinho o Estado não possa garantir a ele o número de delegados no Colégio Eleitoral para virar o jogo, o fato de a Geórgia ser governada por republicanos aumentou o inconformismo do presidente quanto aos resultados.
Trump tem acusado sistematicamente o governador do Estado, seu correligionário Brian Kemp, de acobertar supostas fraudes que o levaram à derrota. Na última semana, chegou a pedir que Kemp renunciasse. Tudo isso aumentou o grau de incerteza sobre uma disputa já acirrada, na qual os republicanos eram originalmente favoritos.
Poder de governo
Há muito mais em jogo do que a decisão sobre quem representará os habitantes da Geórgia no Senado. Na prática, os eleitores do Estado definirão se Biden terá condições de implementar a agenda política que prometeu na campanha ou se ficará barrado na oposição legislativa.
Os dois assentos do Estado se tornaram essenciais porque pela atual configuração de cadeiras, os republicanos, oposição a Biden, têm uma maioria de 52 senadores, contra 48 dos democratas. Se virarem o jogo nesta terça, os democratas chegarão aos mesmos 50 assentos dos rivais. Nessa situação, caberia à vice-presidente, a democrata Kamala Harris, desempatar as votações na Casa.
O controle do Senado Federal é crucial para a capacidade de governar de um presidente nos EUA. Todos os secretários (equivalente aos ministros brasileiros), por exemplo, precisam ser aprovados pelos senadores para serem empossados.
Além disso, sem a chancela dos senadores não serão colocadas em prática propostas caras aos democratas, como a reforma imigratória, o plano de combate ao aquecimento global, a expansão do serviço público de saúde, conhecido como Obamacare, e a aprovação de um novo pacote de auxílio emergencial.
Se seu partido não vencer na Geórgia, Biden terá que lidar com o mesmo líder da maioria no Senado que barrou boa parte das propostas do então presidente Barack Obama, de quem Biden foi vice: o senador republicano Mitch McConnell. O governo Obama, entre 2009 e 2017, costuma ser citado por analistas como exemplar do tipo de paralisia decisória que uma forte oposição legislativa pode gerar: poucas leis e projetos aprovados, muita obstrução e até mesmo os chamados “shut downs”, quando o Legislativo nem mesmo aprova o Orçamento do Executivo e funcionários públicos deixam de receber salário.
Diferente do que aconteceu com Obama, no entanto, é possível que Biden tenha um pouco mais de sucesso com McConnell, graças ao histórico de décadas de ambos como colegas senadores. Recentemente, apesar das manifestações em contrário de Trump, o senador republicano reconheceu a vitória do democrata nas urnas.
“Biden e McConnell têm uma relação de trabalho duradoura e amplamente positiva. São muitos os exemplos de concessões de parte a parte entre os dois. Se Biden conseguir convencer a liderança democrata a trabalhar com seus colegas republicanos, o relacionamento não precisa ser tão hostil”, afirma Regina Argenzio, analista política da consultoria Eurasia Group.
Mas o clima extremamente polarizado e a postura combativa de Trump, principal liderança do partido, podem complicar essa cooperação. Mais de dez senadores republicanos, como Ted Cruz e Josh Hawley, anunciaram na semana passada que pretendem fazer objeção à vitória de Trump na sessão do Congresso em que serão contados os votos do Colégio Eleitoral, no próximo dia 6.
Para a oposição, além de bloquear as iniciativas legislativas do novo presidente que vão contra a sua agenda política, manter maioria no Senado e oposição cerrada significa sustentar protagonismo na política federal e se projetar para uma candidatura com mais sucesso nas eleições legislativas de meio de mandato, em 2022, e para a disputa presidencial de 2024.
E agora, quem leva?
Apesar da vitória de Biden no Estado, não é possível dizer que os democratas tenham qualquer favoritismo na corrida ao senado na Geórgia.
Primeiro porque dos dois atuais senadores republicanos, David Perdue e Kelly Loeffler, ambos candidatos à reeleição, um saiu na frente em relação ao democrata já em novembro. Perdue obteve mais votos que seu oponente, Jon Ossoff. Já Loeffler, embora com menos votos que seu desafiante democrata, o Reverendo Raphael Warnock, despontou em vantagem nas pesquisas de intenção de voto após o pleito.
Nos últimos dias, no entanto, o agregado de pesquisas do site FiveThirtyEight mostra uma tendência de vitória dos candidatos democratas. A liderança de ambos, porém, varia entre 1,8 e 2,2 pontos percentuais, na margem de erro da maior parte das pesquisas eleitorais. Além disso, esse tipo de sondagem demonstrou um nível de erro alto em novembro, inclusive fora da margem de erro, o que coloca em dúvida sua capacidade de revelar o estado das preferências eleitorais. Logo, mais do que cravar o vencedor, os levantamentos indicam que a eleição será apertada.
Além disso, em eleições não presidenciais, historicamente, o comparecimento eleitoral é mais baixo e o público que vota tende a ser branco e mais velho, um perfil predominantemente republicano. Nos EUA, o voto não é obrigatório. Agora, no entanto, os dados disponíveis sobre votação antecipada sugerem que a participação de eleitores negros – majoritariamente democratas – está mais alta do que no pleito presidencial de novembro.
O fator Trump
Mas nada aumenta mais a incerteza sobre o resultado das urnas do que Donald Trump. Considerado o melhor cabo eleitoral republicano, a ambiguidade de suas ações pode levar o partido à derrota.
Ao acusar o sistema eleitoral da Geórgia de fraudulento e endossar acusações sem provas, ele ajudou a espalhar entre os eleitores republicanos um desejo de boicote às urnas, o que facilitaria o caminho dos democratas à vitória.
Embora em visita ao Estado em dezembro o presidente tenha pedido para seus eleitores votarem, ele mesmo reconheceu, no polêmico telefonema com o secretário Raffensperger, o potencial destrutivo de sua cruzada pela alteração do resultado presidencial na Geórgia.
“Isso vai ter um grande impacto na (eleição) de terça se vocês não corrigirem isso rápido”, afirmou Trump, em tom de ameaça. Um pouco mais à frente, ele prosseguiu: “Temos que resolver isso antes da eleição (para o Senado), senão você terá pessoas (republicanas) que não irão votar. Eles não querem votar porque eles odeiam o Estado, eles odeiam o governador (o republicano Brian Kemp) e eles odeiam o secretário de Estado (Raffensperger). Vou dizer isso na sua cara, as únicas pessoas que gostam de você são as pessoas que nunca votaram por você (democratas)”.
Em uma hora de telefonema com a autoridade eleitoral da Geórgia, Trump repetiu acusações infundadas. Disse, por exemplo, que milhares de votos foram dados em nome de pessoas mortas. Raffensperger respondeu que nas três contagens de cédulas e na auditoria de assinaturas feitas ali, os especialistas do Estado encontraram apenas dois casos em que alguém votou sob identidade de alguém morto.
Até o momento, Trump e seus advogados falharam sistematicamente em mostrar evidências ou fraudes de prova eleitoral. Os republicanos foram derrotados em mais de 50 ações em tribunais de oitos Estados e na Suprema Corte dos EUA.
Na noite desta segunda, dia 4, tanto Biden quanto Trump fizeram comícios na Geórgia, na tentativa de impulsionar os votos nos seus candidatos ao Senado. Enquanto Biden comemorava ter ganhado “três vezes a eleição no Estado”, em uma piada com o número de recontagens, as primeiras palavras de Trump em seu comício foram: “não tem jeito de eu ter perdido na Geórgia. Essa foi uma eleição manipulada”. Nada ali parecia uma disputa sobre assuntos e interesses locais – justamente porque nesta terça caberá aos quase 8 milhões de eleitores da Geórgia definir o destino do país.
Fonte: BBC News
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