Em meio à explosão no número de casos de coronavírus, a Suécia enfrenta uma nova crise no combate à pandemia de covid-19: a escassez de profissionais de saúde, especialmente enfermeiras, e UTIs lotadas.
Sem folgas e sobrecarregados, muitos deles não veem alternativa senão pedir demissão para conseguir descansar, de acordo com a Associação Sueca de Profissionais de Saúde.
Mesmo antes da primeira onda da pandemia em março, havia “uma escassez de enfermeiras especializadas, inclusive nas UTIs”, disse Sineva Ribeiro, presidente da entidade, em entrevista por telefone à agência de notícias financeiras Bloomberg.
Ela classificou a situação como “terrível”.
Uma sondagem da emissora sueca TV4 mostrou que em 13 das 21 regiões da Suécia, o número de demissões na área de saúde superou o do ano passado, chegando a 500 por mês.
Na região de Estocolmo, capital do país e epicentro da pandemia, não há mais leitos UTIs disponíveis. No país, a ocupação já ultrapassa 80%.
Em entrevista recente à imprensa sueca, Björn Eriksson, diretor de saúde da região de Estocolmo, disse que, embora os hospitais da cidade possam aumentar o número de leitos de UTI, não há equipe especializada para operá-los.
Uma opção que está sendo considerada é “pegar emprestado” pessoal treinado de hospitais privados.
Mas pairam dúvidas sobre de onde virá esse adicional.
Exaustão
Estocolmo solicitou mais profissionais de saúde das Forças Armadas suecas. Em outro desdobramento, mais de 100 funcionários de um hospital infantil já foram redistribuídos para unidades de terapia intensiva, o que significa que crianças que não têm cirurgias de emergência agendadas vão ter que esperar.
A vizinha Finlândia disse que está pronta para ajudar, liberando espaço para pacientes suecos que necessitem de cuidados intensivos.
Parte do problema é que as enfermeiras, em particular, estão cada vez mais relutantes em se sujeitarem às horas e condições de trabalho, dado o nível salarial médio.
“Conversei com associados em agosto, e eles me disseram que que iriam se demitir porque era a única maneira de tirar uma folga e se recuperar”, disse Ribeiro à Bloomberg.
“Vemos altas taxas de doenças, sintomas de exaustão e membros que foram infectados”, acrescenta.
Para a Suécia, o risco agora é que mais pessoas morram porque não há profissionais de saúde qualificados suficientes para cuidar delas.
“Em um ambiente de trabalho onde você está tão cansado, o risco de cometer erros aumenta”, completa Ribeiro à Bloomberg. “E esses erros podem levar à morte de pacientes”.
Mudança de estratégia
A Suécia foi um dos poucos países do mundo a não fazer nenhum tipo de lockdown para combater a pandemia do coronavírus.
Mas o aumento exponencial no número de casos fez com que o governo sueco mudasse sua estratégia em novembro, introduzindo restrições mais duras às interações sociais.
Foram proibidas reuniões de mais de oito pessoas em shows, palestras e apresentações teatrais.
Houve também um veto nacional à venda de álcool a partir das 22h em bares e restaurantes.
Nesta semana, o primeiro-ministro sueco, Stefan Löfven, anunciou que a proibição de reuniões de mais de oito pessoas se estenderia até as férias de Natal, enquanto as escolas secundárias deveriam mudar para o ensino à distância até o final do semestre.
O governo também pediu ao Parlamento que lhe concedesse mais poder para implementar novas medidas, como o fechamento de shoppings e academias.
Além disso, uma comissão independente nomeada pelo governo para avaliar o combate à pandemia de covid-19 concluiu em um relatório que a estratégia para proteger os idosos do país falhou parcialmente.
O presidente da comissão, Mats Melin, disse que os cuidados aos idosos na Suécia apresentam grandes deficiências estruturais e que o país se mostrou despreparado e mal equipado para enfrentar a pandemia.
A comissão também considerou que várias medidas tomadas na primavera foram tardias e insuficientes.
Melin também disse que a culpa pelas deficiências estruturais no sistema de saúde da Suécia pode ser atribuída a várias autoridades e organizações.
Em raro pronunciamento, até o rei sueco, Carl 16 Gustaf, criticou a estratégia adotada pelo país no combate à pandemia covid-19.
“O povo sueco sofreu enormemente em condições difíceis”, disse o monarca à emissora estatal SVT. “Acho que falhamos.”
‘Sem lockdown’
A decisão de não confinar sua população é agora criticada por muitos.
Isso porque, com uma população de 10 milhões de habitantes, a Suécia contabiliza cerca de 350 mil casos de covid-19 e quase 8 mil mortes.
São valores altos para um país tão pequeno, comparados proporcionalmente aos de outras nações muito mais populosas da Europa.
A taxa de mortos por covid-19 na Suécia é de 780 a cada 1 milhão de habitantes. É mais do que o dobro das taxas de mortos de todos os outros países escandinavos somadas, Finlândia, Noruega e Dinamarca.
Na primeira onda da pandemia do coronavírus, a Suécia não implementou nenhum tipo de lockdown. O uso de máscaras não era obrigatório e — continua não sendo. Boa parte do comércio permanece aberta.
Em vez disso, o país adotou um distanciamento social voluntário, proibiu reuniões de mais de 50 pessoas e suspendeu visitas a casas de repouso.
Na ocasião, o presidente Jair Bolsonaro, que se recusava a decretar um lockdown por temer um impacto na economia, chegou a citar a Suécia como modelo a ser seguido pelo Brasil.
Em reunião com empresários da indústria, ele disse: “Vamos falar da Suécia? Pronto! A Suécia não fechou!”
Em entrevista à BBC News Brasil em maio, o epidemiologista-chefe da Suécia, Anders Tegnell, responsável pela estratégia de combate ao coronavírus no país, disse que objetivo era colocar em prática um plano que pudesse ser levado adiante por muito tempo, já que a pandemia não dava sinais de que terminaria tão cedo.
Tegnell partia do pressuposto de que as pessoas se cansariam de entrar e sair de lockdowns e eles, portanto, seriam cada vez menos efetivos.
Mas os demais países nórdicos tomaram um rumo oposto.
A Dinamarca, por exemplo, implementou o lockdown antes mesmo de registrar a primeira morte.
Na mesma entrevista, Tegnell ressalvou que a estratégia sueca não poderia ser replicada em outros países, inclusive no Brasil.
‘Responsabilidade individual’
A estratégia sueca tinha um pilar principal: a responsabilidade individual. E a chave para isso era a combinação do alto nível de confiança da população nas autoridades e a obediência às regras.
O resultado não foi um colapso total como muitos esperavam. O país continuou funcionando com poucas restrições. Mas o preço dessa escolha foi pago em mortes, em especial entre os idosos acima de 70 anos e vivendo em casas de repouso — a maioria dos mortos.
Tanto é que em junho, Tegnell indicou ter se arrependido da estratégia que defendeu desde o início.
“Se encontrássemos a mesma doença de novo, sabendo o que sabemos sobre ela hoje, acho que ficaríamos satisfeitos em adotar um meio termo entre o que fez a Suécia e o que fez o restante do mundo”, disse ele em entrevista à rádio pública sueca.
Quando questionado se achava que muitas pessoas morreram cedo demais no país, ele respondeu: “Sim, com certeza.”
Apesar disso, Tegnell continua a defender que o país não faça um “lockdown total”. Ele também argumenta que não há nenhuma evidência real de que as máscaras faciais funcionem.
Em entrevista à emissora TV4, Tegnell disse que ninguém pode dizer se a estratégia da Suécia falhou.
Tegnell acrescentou ainda estar “surpreso” com a intensidade da segunda onda da pandemia.
“Acho que muitos, comigo, estão surpresos que tenha sido capaz de voltar com tanta força”, disse à TV4.
Mas ele reconheceu a gravidade da situação em seu país.
Uma sondagem realizada pelo instituto de pesquisa Ipsos mostrou que o apoio da população a ele diminuiu nos últimos dois meses.
‘Explosão de casos’
Assim como no restante da Europa, a Suécia viu os casos diminuírem bastante durante o verão. Houve dias em que ninguém morreu de covid-19 no país.
Mas, quando o outono chegou, os casos catapultaram.
Em um único dia, por exemplo, 10 mil novos casos de coronavírus foram registrados no país.
Com a infecção fora de controle, os hospitais começaram a encher — e as mortes aumentaram.
Valeu a pena?
Muito se falou que um dos objetivos da estratégia sueca era reduzir o impacto do coronavírus na economia do país.
De fato, entre abril e junho, o PIB sueco caiu 8,6%, contra 11,9% do da União Europeia.
Essa queda também foi menor do que na Espanha, França e Itália, países que adotaram medidas mais severas do que a Suécia.
A estimativa do governo é que a contração da economia sueca seja de 3,6% neste ano em 2020.
Mas, recentemente, o presidente do Banco Central sueco, Stefan Ingves, disse que a economia do país foi mais afetada pela covid-19 do que as previsões oficiais indicavam.
Fonte: BBC News
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