Autor: Sérgio Adeodato
Algo incomum acontece no terreno ao fundo dos galpões de um fabricante de componentes eletrônicos, no Distrito Industrial de Manaus, no Amazonas. Uma estufa de plantas chama atenção por reunir conhecimento científico e tecnológico em torno de um produto bem mais sensível que máquinas: tomates grape, pequenos como uvas, macios, adocicados – cultivados pela Denso, companhia de capital japonês que produz inúmeras linhas de peças automotivas, como ar condicionado e motor de vidro elétrico, e agora começa a olhar para o potencial da bioeconomia.
A multinacional busca repetir na Amazônia a saga dos imigrantes que há mais de um século chegaram do Japão para desenvolver a produção de hortaliças no interior de São Paulo. Desta vez, porém, o principal desafio é o clima quente e úmido da floresta tropical, propício a fungos e bactérias hostis que exigem inovações tecnológicas para evitar o alto uso de agrotóxicos e criar condições favoráveis à produção em maior escala, na agricultura familiar.
Qual motivação leva uma empresa que fatura globalmente US$ 60 bilhões ao ano, com 160 mil funcionários, a investir no intricado quebra-cabeça produtivo para fazer o tomate dar certo na região? “Queremos demonstrar, com novas tecnologias de baixo custo, a importância de melhorar a renda, a educação e o nível de mão de obra local para evitar uma realidade que hoje vivemos na indústria: a necessidade de importar engenheiros e técnicos qualificados”, responde Sérgio Nakazawa, gerente de pesquisa e desenvolvimento (P&D) da empresa.
A tecnologia se enquadra na proposta de uma bioeconomia inclusiva devido à agregação de valor à pequena produção não florestal com maior circulação local de renda, além da maior segurança alimentar e redução da alta dependência de Manaus em relação a gêneros alimentícios de outras regiões do País.
A novidade foi destaque no webinar “Biotecnologia e Inovação: Como Promover Investimentos em P&D e Negócios Disruptivos” – segundo de uma série de cinco seminários que o Idesam realizará até dezembro sobre o tema da Bioeconomia na Amazônia. “Temos a tradição de cooperar com a sociedade local em mutirões de limpeza de rios ou doações filantrópicas. Por que não colaborar usando o nosso know-how em controle de ar condicionado veicular ou injeção eletrônica, por exemplo, para desenvolver agricultura de precisão?”, questiona Nakazawa.
“A produção em estufa se diferencia totalmente da agricultura tradicional, pois não utiliza solo e tem controle computadorizado de temperatura e umidade”, explica o executivo. Em março, foi realizada a primeira colheita, após dois anos de pesquisas com apoio da Embrapa Amazônia Ocidental, obtendo como resultado tomates grape de qualidade superior ao dobro da média nacional quanto ao nível de sacarose. O investimento na instalação da estufa de 1,5 mil metros quadrados e no plantio foi viabilizado por recursos obrigatórios da Lei de Informática, que estabelece o repasse de 5% do faturamento bruto para pesquisa tecnológica.
O plano atual é iniciar o segundo ciclo do projeto, com objetivo principal de reduzir custos e tornar a produção economicamente viável, de modo que seja tropicalizada, escalonada no interior do Amazonas e escoada para mercados consumidores. Para a tecnologia ser refinada e chegar a quem precisa na agricultura familiar, a empresa está aportando novo investimento, agora via Programa Prioritário de Bioeconomia (PPBio), da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), coordenado pelo Idesam.
Rumo a uma “bioeconomia circular”
O desenvolvimento do novo tomate na Amazônia tem potencial dentro do conceito de “Bioeconomia integrada”, abrangendo o casamento de Iniciativas produtivas sustentáveis, adaptadas às realidades locais e à conservação da floresta em pé, como a agricultura de pequena escala e a produção em sistema agroflorestal, a piscicultura e a extração de produtos florestais. “Essas atividades, por sua vez, se conectam à prestação de serviços via startups e negócios de impacto, e ao consumo na ponta final da Bioeconomia, gerando demanda de insumos para produtos de alto valor agregado”, explica Carlos Koury, diretor técnico do Idesam.
Soma-se a isso, a ideia de “bioeconomia circular”, em que indústrias utilizam soluções inspiradas na natureza para a produção em ciclo fechado, com embalagens e outros insumos que reduzam e reaproveitem resíduos, ou aumentem o uso de energia limpa e diminuam emissões de carbono, por exemplo. É possível, entre outros projetos, obter ração animal para avicultura com resíduos do manejo do pirarucu ou da produção de polpa de frutas regionais.
“Um importante desafio é traduzir em bionegócios o conhecimento acumulado em engenharia de informação e inovação digital do Polo Industrial de Manaus”, ressalta Koury. A expectativa, segundo ele, é a conclusão do primeiro ciclo do PPBio até dezembro com 14 projetos em andamento, aptos a contemplar os R$ 9,5 milhões até hoje investidos pelas empresas com recursos de contrapartida pelos incentivos fiscais da Zona Franca de Manaus. Metade desses investimentos busca a bioeconomia como oportunidade de negócio, e não apenas visibilidade de mercado pelo apoio a uma atividade que ajuda no uso sustentável dos recursos naturais.
Novos arranjos de investimento com base na Lei de Informática, envolvendo cerca de 60 empresas do setor em Manaus, fortalecem o ecossistema de bioeconomia e a busca das empresas por sustentabilidade, segundo informa Leopoldo Montenegro, coordenador de articulação e acompanhamento de política tecnológica da Suframa. No leque de opções está a Portaria nº 2145/2018, do governo federal, que regulamenta o investimento em atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação, mediante capitalização de startups de base tecnológica na Amazônia Ocidental ou Estado do Amapá. Nesta modalidade, o potencial por projeto é de um aporte direto da ordem de R$ 100 mil a R$ 3 milhões para o desenvolvimento de novos negócios em bioeconomia, além da possibilidade de acesso a recursos de até R$ 4 milhões do PPBio, por meio do Idesam.
Dos cerca de R$ 700 milhões por ano disponíveis para investimento em P&D pelas empresas, uma parte pode ser destinada a processos internos mais sustentáveis, em projetos de parceria com instituições de ciência e tecnologia cadastrados, que se responsabilizam pela prestação de contas à Suframa. “As startups e demais setores do ecossistema precisam conhecer melhor os modelos de investimento para acessá-los”, recomenda Montenegro. “Empresas que não diversificarem a matriz econômica tendem a não suportar a evolução tecnológica em curso no mundo”.
Para Tatiana Schor, secretária de Tecnologia e Planejamento do Amazonas, é necessária uma transição justa para bioeconomia, pois antes da pandemia de Covid-19 o estado já tinha 50% da população abaixo da linha da pobreza. “A concentração de renda e a vulnerabilidade social de populações com pouco acesso a políticas públicas são temas complexos”, aponta. As distâncias amazônicas não são somente geográficas, mas de “cosmovisão e entendimento sobre o mundo”.
Um segundo ponto, na análise de Schor, é “a necessidade de transformar a vantagem competitiva da floresta em ativo econômico-financeiro, tendo como carro-chefe o Polo Industrial de Manaus”. A secretária lembra que a reorganização da matriz econômica para incorporar elementos presentes na floresta é um desafio discutido desde a década de 1990, e “precisamos utilizar essa janela de oportunidade que se abre agora, quando o mundo todo fala em bioeconomia”.
Uma das iniciativas neste sentido é a criação do Parque Científico e Tecnológico do Alto Solimões, em Benjamim Constant, no Sudoeste do Amazonas, voltado ao desenvolvimento de inovações no interior e à superação de barreiras à bioeconomia, como a falta de informações seguras sobre as cadeias produtivas da sociobiodiversidade. Para isso, reforça Schor, “é básico conhecer a Amazônia e obter indicadores por meio de pesquisas científicas de ponta”.
Na visão da secretária, também pesquisadora da Universidade Federal do Amazonas, a região sofre com o que chama de “assimetria de informação”, ou seja, um desequilíbrio de poder nas transações com produtos da floresta. “Em 2019, na safra do pirarucu, por exemplo, o manejador recebeu aproximadamente R$ 4 por quilo, o preço mínimo da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) girou em torno de R$ 7 e o custo de produção calculado pelas comunidades foi de R$ 11, indicando algo de errado”.
“Não conseguiremos reestruturar o sistema econômico do Estado, sem conhecer a formação de preço ao longo das cadeias produtivas da floresta”, adverte Schor. Como estratégia de promover valores justos, o governo estadual propôs a criação da Bolsa de Mercadorias da Amazônia (BMA), em que os preços são estabelecidos de forma transparente com ampla disseminação, baseados exclusivamente na qualidade do produto e logística, o que não acontece em feiras ou balcão de mercados convencionais. No novo modelo, as transações ocorrem independentemente das conexões pessoais de compra e venda ou mesmo da escolarização de produtores rurais e extrativistas, por exemplo.
Segundo Schor, a inspiração veio da Etiópia, que em 2008 instalou a bolsa de grãos e café, e “com isso não só estabilizou a fome no país como acabou com guerras regionais, levando o primeiro-ministro Abiy Ahmed Ali a ganhar o prêmio Nobel da Paz, em 2019”, conta.
Publicado em: 28.09.2020
Fonte: Página 22
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