“Ele ainda está vivo”! Disse o policial ao encontrá-lo dentro do carro completamente destruído.
Embora vários anos tenham se passado, Christian Busch se lembra claramente dessas palavras. E aquele acidente mudaria sua vida.
Busch é professor da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, e da London School of Economics (LSE), no Reino Unido.
Como pesquisador, ele se especializou em empreendedorismo e liderança de impacto social, inovação de modelos de negócios e mercados emergentes.
Foi incluído nas listas “Top 99 Influencers” da revista Diplomatic Courier; “Ideas People”, da revista britânica The Economist; e “Davos 50”, do Fórum Econômico Mundial.
Recentemente, publicou o livro The Serendipity Mindset: The Art & Science of Creating Good Luck (“Mentalidade da serendipidade: a arte e a ciência de criar boa sorte”, em tradução livre), em que analisa a importância de dar sentido ao inesperado para encontrar oportunidades, não só profissionalmente, mas também a nível pessoal.
“Muita gente se mostra cética quanto à capacidade de tirar proveito do acaso. Mas quando olham os dados, fica claro como a luz do dia: o inesperado está sempre acontecendo, então faz sentido tentar estar pronto para ele. Hoje em dia, não é raro as empresas criarem cargos com títulos como serendipity spotter (algo como “identificador de serendipidade”) “, diz ele à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
‘Um alemão com sangue mexicano’
Busch cresceu na Alemanha e estudou e trabalhou em países como Rússia, China, Quênia e México, onde viveu por algum tempo.
“Meus amigos brincavam dizendo que eu era ‘um alemão com sangue mexicano’ (…) Foi uma das melhores experiências da minha vida.”
“Uso qualquer desculpa para voltar à América Latina, sinto falta das pessoas, da qualidade de vida e da língua”, diz ele sobre suas recentes atividades no Chile.
De acordo com Busch, muitas vezes as pessoas que chamamos de “sortudas” passaram por um processo de criatividade muito interessante depois de enfrentar uma situação que não esperavam.
Mas será que há pessoas que por natureza são melhores do que outras em identificar mais oportunidades em situações inesperadas?
“Elas fazem algumas coisas de maneira diferente”, afirma. “Um aspecto desafiador, mas importante, de cultivar a serendipidade é aceitar que não podemos planejar ou saber tudo.”
“Aceitar a imperfeição como parte da vida nos permite aproveitar o momento se erros inesperados acontecem”, acrescenta.
A seguir, você confere a entrevista que ele concedeu à BBC News Mundo.
BBC News Mundo – Em uma palestra em fevereiro, você lembrou do acidente de carro que sofreu. Qual foi o impacto disso na sua vida?
Christian Busch – O acidente acabou com meu senso de controle. Antes dessa experiência de quase morte, eu sentia que podia controlar muitas coisas, e percebi como a vida pode acabar rapidamente e que as coisas realmente importantes podem estar fora do meu controle.
Lembro de me perguntar: “Se eu tivesse morrido, teria valido a pena? Fiz algo significativo com a minha vida?”
O acidente me colocou em uma busca intensa para dar sentido à minha vida. Comecei a ler o livro maravilhoso do Viktor Frankl, Em busca de sentido, que me ajudou a entender essa crise e me fez perceber que o que eu mais gosto e faz sentido para mim está conectando a pessoas e ideias inspiradoras.
BBC News Mundo – Você ressalta que, em um mundo cheio de incertezas e que muda muito rápido, uma habilidade fundamental é cultivar a serendipidade. Como isso pode ser desenvolvido?
Busch – A covid-19 tem sido um lembrete gritante de que, ao longo da história, o progresso dependeu da capacidade dos seres humanos de aproveitar ao máximo o desconhecido.
No contexto de uma pandemia que mudou o curso da vida diária e exacerbou as desigualdades, estamos testemunhando como os indivíduos e as empresas abraçam o inesperado com criatividade. Por exemplo, destilarias (na Alemanha) que, em vez de fechar, começaram a produzir desinfetantes para as mãos à base de álcool a um preço acessível.
E indivíduos que se reinventaram e se conectaram não apenas com o que é realmente importante para eles, mas com as pessoas que são de fato valiosas em suas vidas.
Em tempos de crise, esses tipos de esforços tendem a ser impulsionados pela necessidade. Mas pesquisas nas áreas de ciências sociais e naturais também mostram que os grandes avanços e oportunidades são muitas vezes uma questão de serendipidade — a sorte inesperada que resulta de momentos não planejados, em que decisões proativas levam a resultados positivos.
Essa “sorte inteligente” é diferente da sorte “cega” que simplesmente acontece (como nascer em uma família amorosa). É uma força oculta que nos cerca, desde os pequenos acontecimentos do dia a dia até as descobertas que mudam a vida e, às vezes, o mundo.
Os encontros mais mundanos, como esbarrar com alguém na academia ou em uma chamada de Zoom com vários participantes, podem mudar sua vida para sempre. A maioria de nós é capaz de mencionar pelo menos uma vez em que passou por isso.
Veja o exemplo do medicamento sildenafil. Quando os cientistas britânicos usaram a droga para pesquisar uma cura para problemas cardíacos, como angina, não esperavam que fossem causar uma ereção no pênis dos pacientes participantes do estudo. Eles foram surpreendidos.
O que a maioria das pessoas nessa situação teria feito? Simplesmente aceitado que era um efeito colateral desagradável do tratamento? Ignorado? Ou desenvolvido outra forma de tratar a angina sem o efeito colateral?
Os três pesquisadores não fizeram nada disso. Na verdade, eles viram uma oportunidade de desenvolver um medicamento que poderia curar a disfunção erétil. E o Viagra, uma das invenções de maior sucesso de todos os tempos, nasceu.
O que esses casos têm em comum é que alguém reagiu a um gatilho inesperado de serendipidade, ligou os pontos e, de maneira crucial, seguiu em frente. Quando percebemos que a serendipidade não é simplesmente sobre um único evento que acontece conosco, mas sim sobre o processo de identificar e conectar pontos, começamos a ver pontes onde outras pessoas veem abismos.
Sempre fui fascinado pela questão de saber se algumas pessoas são capazes de criar condições para que coincidências positivas aconteçam com elas com mais frequência do que outras. Você consegue detectar esses momentos e transformá-los em resultados positivos? Podemos aprender a navegar pelo inesperado e criar nossa própria “sorte inteligente”?
Por definição, não podemos conhecer ou programar resultados fortuitos, pois deixariam de ser. O que podemos fazer é provocar que coincidências positivas cheguem até nós com mais frequência e com melhores resultados. Uma mentalidade de serendipidade nos permite fazer isso, e é um músculo que podemos desenvolver.
Em nosso trabalho, descobrimos que muitas das pessoas mais inspiradoras do mundo desenvolveram, muitas vezes inconscientemente, um músculo para o inesperado que as ajuda a liberar a criatividade e a engenhosidade, impulsionando o sucesso e o impacto em um mundo que muda rapidamente.
Cultivar a serendipidade se torna uma abordagem ativa para lidar com a incerteza, em vez de passiva.
BBC News Mundo – Como se cria uma “boa sorte”?
Busch – Há vários passos imediatos para desenvolver um músculo da serendipidade e criar a “sorte inteligente”. Por exemplo, aqueles que podemos dar em nossas interações diárias, como fazer boas perguntas e estar aberto a respostas inesperadas.
Imagine que você está em uma conferência virtual e encontra com alguém pela primeira vez. Muitos de nós podemos entrar no piloto automático e fazer a temida pergunta: “Então, o que você faz?” Isso tende a colocar a outra pessoa em uma caixa da qual é difícil sair.
Nos posicionarmos para a sorte inteligente significa fazer perguntas mais abertas como: “O que você achou mais interessante no…?” ou “como está seu humor?”
Essas perguntas abrem conversas que podem levar a resultados intrigantes e frequentemente aleatórios.
Também podemos estabelecer ganchos de serendipidade, usando pontos da conversa marcantes ou envolventes, para nos abrirmos à serendipidade. Por exemplo, quando Oli Barrett, fundador de várias empresas em Londres, conhece pessoas, ele lança vários ganchos que permitem possíveis sobreposições.
Se perguntam a ele: “O que você faz?”, responderá algo como: “Adoro conectar pessoas, abri uma empresa na área de educação, recentemente comecei a pensar em filosofia, mas o que realmente gosto é de tocar piano”.
Essa resposta inclui pelo menos quatro gatilhos possíveis para a serendipidade: uma paixão (conectar pessoas), uma descrição do trabalho (dirigir uma empresa de educação), um interesse (filosofia) e um hobby (tocar piano).
Se ele simplesmente respondesse: “Trabalho com educação”, a oportunidade para outras pessoas ligarem os pontos seria pequena.
Com sua resposta, Oli permite que o outro escolha o gancho que se relaciona com sua vida e torna mais provável a ocorrência de serendipidades.
BBC News Mundo – Como podemos transformar situações inesperadas, algumas negativas, em algo positivo?
Busch – Há muitas coisas que podemos fazer, uma importante é esperar o inesperado. Estar alerta é fundamental para detectar situações que não prevemos e transformá-las em resultados positivos.
Temos a tendência de subestimar a probabilidade do inesperado e, muitas vezes, tratamos a vida como linear e controlável, embora seja cheia de reviravoltas.
Quem nunca apresentou o currículo como se sua vida fosse um plano coerente e racionalmente organizado ou uma ideia como se fosse rigorosamente derivada de fatos e não da intuição?
Criar um propósito artificial para nossas ações obscurece muitos encontros inesperados e o verdadeiro processo de aprendizagem.
Nossa pesquisa mostra que as pessoas muitas vezes se sentem pressionadas a mostrar que têm tudo sob controle, embora saibam que nem sempre é esse o caso.
Alcançar o sucesso geralmente não se trata de controlar qual será o resultado exato, mas sim equilibrar um senso de direção com uma apreciação pelo desconhecido.
Esse senso de direção, que é uma ambição, curiosidade ou interesse mais amplo que nos guia consciente ou inconscientemente, nos ajuda a seguir em frente para localizar e conectar os pontos.
Isso pode significar deixar de lado uma carreira específica e, em vez disso, aproveitar situações inesperadas como oportunidades para explorar novas direções.
Também podemos criar um diário de serendipidade, que pode nos ajudar a refletir sobre situações inesperadas: como reagimos, o que faríamos de forma diferente na próxima vez. Nos permite refletir sobre como explorar cada conversa ou encontro, virtual ou presencial, como uma oportunidade para a serendipidade acontecer.
BBC News Mundo – Situações inesperadas podem gerar ansiedade em algumas pessoas porque há uma sensação de perda de controle ou de que algo ruim vai acontecer. Como você pode enxergar o inesperado com outra visão?
Busch – Como alguém que cresceu na Alemanha com uma mentalidade de planejamento, a incerteza e a ambiguidade sempre me deixaram um pouco ansioso.
Mas um dos motivos pelos quais gosto da serendipidade é que ela repensa o inesperado: afastando a ameaça e colocando você diante de uma cesta infinita de possibilidades.
Ela desafia a suposição de que só porque algo não saiu conforme o planejado deve ser tratado como um fracasso.
Algo que me ajudou muito é dizer em todas as situações ambíguas: Do que tenho medo? Por que estou preocupado? E percebi que o que mais lamento não é decorrente de agir sobre o inesperado, mas, nas palavras de Mark Twain, de não agir adequadamente.
Há muitos exercícios, inclusive para pessoas mais introvertidas, que podem nos ajudar a ficar menos ansiosos diante do inesperado. Por exemplo: o diário da serendipidade que já mencionei.
Nas empresas, práticas para identificar a serendipidade podem ser eficazes. Por exemplo, nas reuniões podemos perguntar: o que o surpreendeu na semana passada?
Podemos aprender com empresas como a Pixar a enquadrar as conversas em torno da noção de que não existe uma “ideia perfeita”. Com isso, as pessoas ganham confiança psicológica para ter ideias que podem parecer “malucas”.
Isso nos ajuda a ver o inesperado menos como uma ameaça, e mais como uma oportunidade.
BBC News Mundo – Você fala sobre transformar erros em oportunidades. Como podemos ver os erros de forma que nos ajude a crescer? Por que não devemos ter medo de cometer erros e enfrentar crises?
Busch – Em um mundo que muda rapidamente, geralmente não sabemos que tipo de soluções vamos precisar amanhã.
Com frequência, a experimentação é crucial, e precisamos olhar o mundo com outros olhos, enquadrando os erros ou fracassos inevitáveis como experimentos.
Um método que tem sido útil para mim é repensar as situações, como mencionei antes, e ver que as crises podem ser uma oportunidade e que as restrições de recursos são uma possibilidade de ser criativo.
Repensar é tentar olhar para as situações de maneira diferente. Muitas vezes, trata-se de ver uma oportunidade onde os outros veem um problema ou um erro.
Quando deixamos, por exemplo, de considerar as restrições orçamentárias como um problema, e, em vez disso, tentamos aproveitar ao máximo o que temos em mãos, as soluções mais criativas e fortuitas aparecem.
É quando as empresas de design começam a produzir máscaras ou quando os artistas cujas apresentações foram canceladas começam a atrair novos públicos ensinando um instrumento online.
Um exemplo é o Reconstructed Living Labs, que criou uma metodologia de educação para pessoas de baixa renda que permite que desenvolvam suas próprias habilidades, negócios e plataformas.
A principal pergunta da equipe ao entrar em uma nova comunidade onde há escassez de recursos não é “como podemos ajudar?”, porque essa abordagem coloca seus membros na posição de beneficiários ou até mesmo de “vítimas”, e muitas vezes leva a um atitude passiva.
Em vez disso, eles buscam se integrar e complementar os ativos existentes nessa comunidade, olhando para eles sob uma nova perspectiva.
Pessoas que antes eram consideradas “não qualificadas” se tornam colaboradores valiosos. É uma abordagem que organizações e governos agora usam.
Com frequência, quando vemos o mundo não tanto em termos de necessidade de recursos, mas em termos de soluções criativas para problemas, o que percebemos como passivo pode se tornar um ativo, e a situação que seria de impotência vira uma oportunidade. É assim que a serendipidade pode acontecer em ambientes com recursos limitados.
Mas é claro que nossas posições iniciais quando se trata de potencial de serendipidade são muito diferentes, e trabalhar para lidar com as desigualdades estruturais deve andar de mãos dadas com esses tipos de abordagens.
Também fazem parte rituais em que as pessoas compartilham abertamente ideias que não funcionaram e o que aprenderam com pessoas de outros departamentos.
Não se trata de celebrar o fracasso, mas de comemorar o aprendizado de algo que não funcionou. Isso pode ajudar a legitimar a ideia de que compartilhar coisas que não funcionam, muitas vezes é a maneira pela qual aprendemos mais, e a maneira pela qual muitas serendipidades podem acontecer, quando as pessoas concordam que uma ideia pode não ter funcionado em um contexto, mas pode funcionar em outros.
BBC News Mundo – Infelizmente, a pandemia tirou mais de 1 milhão de vidas, milhões de pessoas ficaram doentes, milhares de empregos foram perdidos. De que ferramentas precisamos para navegar em tempos tão difíceis?
Busch – 2020 tem sido um ano difícil, muita “falta de sorte” sobre a qual realmente não podemos fazer nada, mas pode ser eficaz focar em desenvolver determinação e resiliência.
Sempre me inspirei profundamente em Frankl e em sua abordagem para encontrar sentido nas crises.
Quando tive uma manifestação severa de covid-19 em março, seu livro, que mencionei anteriormente, foi uma das coisas que me ajudou a sobreviver.
A ideia de que temos que tentar encontrar sentido nas situações mais difíceis, aceita, reconhece que a situação atual é terrível. Não a deixa cor de rosa.
Mas também diz: vamos ver onde podemos encontrar significado e fazer algo a respeito desta situação. Pode nos ajudar a repensar como estruturamos nossa vida, qual é nosso enfoque no trabalho, como vemos nossas amizades? Pode nos ajudar a reavaliar o que é realmente importante? Olhe no longo prazo, tenha perspectiva e tire o melhor proveito da crise.
As crises trazem à tona o que há de melhor ou pior nas pessoas, e geralmente separam os verdadeiros líderes do resto. As pessoas continuarão perguntando nos próximos anos como os líderes agiram durante esse período.
Esta pode ser uma grande oportunidade para se comprometer realmente com seus próprios valores e aprimorar uma cultura corporativa verdadeiramente significativa.
BBC News Mundo – Nos últimos meses, a forma como interagimos mudou. Muitas pessoas viram os planos pessoais e profissionais estagnarem ou simplesmente decidiram esquecê-los. Que tipo de mentalidade precisamos para encontrar oportunidades neste contexto?
Busch – O distanciamento físico nos roubou muitas oportunidades de serendipidade que surgem das interações pessoais.
Muitos pontos de partida tradicionais da serendipidade, como encontrar casualmente com alguém, estão acontecendo menos.
Mas ainda há muito que podemos fazer para provocar a serendipidade, o que é crucial em tempos de incerteza. Afinal, é em tempos de incerteza que muitas soluções, ideias e oportunidades tendem a surgir de lugares inesperados.
Então, o que podemos fazer para desencadear a serendipidade nestes tempos estranhos?
Se nos concentrarmos em conseguir um trabalho específico ou fazer algo em particular, restringimos nosso escopo de possíveis oportunidades ou soluções. Se, em vez disso, olharmos para todas as oportunidades que podem estar disponíveis para alguém com nossas habilidades e estivermos abertos para as oportunidades inesperadas que alguém pode vir comentar com a gente, é aí que a mágica acontece.
Uma ótima maneira de iniciar esse processo é trabalhar junto a pessoas (ou organizações, por exemplo: como um estágio) que admiramos. É uma forma proveitosa de nos colocarmos no radar deles e estarmos lá quando uma vaga surgir inesperadamente.
E ter uma visão de longo prazo é vital. A covid-19 e a turbulência econômica que a pandemia desencadeou são um lembrete que não podemos planejar tudo, menos nossas carreiras.
Uma pergunta chave é: o que será realmente importante (em termos pessoais) daqui a dez anos?
A “falta de sorte” geralmente depende de quando paramos de contar a história. Por exemplo, se um trabalho fracassa, devemos ter uma visão de longo prazo e tentar repensar a situação como uma oportunidade de crescimento, reflexão, mudança e desenvolvimento de resiliência.
No espaço entre o estímulo e a resposta é onde, no longo prazo, nosso crescimento e serendipidade residem.
Fonte: BBC News
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