O resultado das eleições nos Estados Unidos, em que o democrata Joe Biden impediu a reeleição do republicano Donald Trump, provoca ressonâncias em vários cantos do mundo e uma delas deve atingir em cheio o Brasil —mais especificamente, a Amazônia— já a partir dos primeiros dias do novo presidente na Casa Branca. Diante de uma provável guinada na política ecológica norte-americana, o Governo de Jair Bolsonaro se vê em uma encruzilhada que desemboca na maior floresta tropical do mundo: preservar a retórica do negacionismo ambiental ou ceder à pressão global por mais cuidados com o meio ambiente? Independentemente da escolha, a vitória de Biden coloca o futuro da Amazônia como um ponto central da relação entre os dois países. “Com Biden, a Amazônia vai para o centro do debate da política internacional”, projeta o presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, Carlos Nobre.
Durante a campanha, Biden fez questão de tocar no assunto em mais de uma oportunidade, referindo-se à Amazônia como “ecossistema que precisa ser protegido, indispensável ao planeta”. Em um dos debates com Trump, o presidente eleito dos EUA prometeu criar um fundo, em conjunto com outros países, de 20 bilhões de dólares (quantia superior a 100 bilhões de reais) para proteção da Amazônia, ao fazer um alerta ao Governo brasileiro: “Parem de destruir a floresta. Se vocês não pararem, sofrerão significativas consequências econômicas”. Na época, Bolsonaro reagiu à indireta, qualificando a declaração como “desastrosa e gratuita”.
Para Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima, o fundo, caso seja colocado em prática, é um exemplo do choque de pensamentos que separa o Governo Bolsonaro da nova orientação proposta por Biden em torno da política externa ambiental. “Seriam administrações com visões de mundo bastante distintas, sobretudo no que diz respeito à preservação do meio ambiente”, afirma o ambientalista. “Se o fundo proposto por Biden realmente tiver o objetivo de proteger florestas, não interessa ao Governo Bolsonaro. Acho muito improvável que o Planalto use esses valores ou qualquer outro dinheiro com essa finalidade específica.”
Astrini relembra o imbróglio sobre o Fundo Amazônia, que soma quase 3 bilhões de reais paralisados após o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, desmantelar o conselho gestor da iniciativa. Criado em 2008, o fundo capta recursos internacionais, especialmente de países europeus, para preservação da floresta. Desde o início do atual Governo, Alemanha e Noruega bloquearam cerca de 300 milhões de reais devido ao enfraquecimento dos mecanismos de controle e tentativas do Ministério do Meio Ambiente (MMA) de mudar a destinação do dinheiro. “Os recursos do Fundo Amazônia devem ser aplicados para combater o desmatamento e ter fiscalização da sociedade civil. Mas o Governo brasileiro não se mostra inclinado a aceitar esses termos”, diz Astrini.
Revisão forçada
Sob uma perspectiva global, Carlos Nobre, presume que o Brasil será forçado a rever suas políticas ambientais e, necessariamente, aceitar um eventual fundo de preservação da Amazônia liderado pelos Estados Unidos. “No curtíssimo prazo, pode ser que o Governo Bolsonaro resista, mas, no médio prazo, não terá escolha”, explica ele, que também é pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP). “O fundo sugerido pelo Biden seria um meio de facilitar a entrada de negócios americanos na Amazônia, é diferente do modelo financiado por Alemanha e Noruega. Certamente, com o presidente democrata, os EUA vão aderir à pressão internacional por uma cadeia produtiva sem desmatamento. E reduzi-lo drasticamente na Amazônia será a única alternativa se o Brasil não quiser sofrer grandes perdas econômicas.”
Com 17.326 focos de incêndio somente em outubro, mais que o dobro do mesmo período no ano passado, a Amazônia já bateu o recorde anual de queimadas da última década. De acordo com dados do Prodes, programa do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) que monitora o desmatamento na Amazônia Legal, os números de área desmatada da floresta mantêm tendência ascendente desde o começo do Governo Bolsonaro. Foram registrados 10.129 km2 de desmate entre agosto de 2018 e julho de 2019, o maior índice da década.
A expectativa é de que, com as queimadas deste ano, a medição referente a agosto de 2019 e julho de 2020 oscile entre 13.000 e 15.000 km2. No fim de outubro, o vice-presidente Hamilton Mourão, gestor do Fundo Amazônia, apresentou proposta a países europeus de reduzir o número para 6.500 km2, porém, apenas em 2023, após o Brasil descumprir a meta de chegar a 3.925 km2 este ano. “Os Estados Unidos estão entre os países que mais emitem gás carbônico no mundo”, comentou Mourão, na véspera da eleição americana, ao ser questionado sobre a possibilidade de vitória de Biden. “Primeiro, eles têm de resolver os problemas deles, para depois vir para o nosso.”
Nobre avalia que, se o país não quiser entrar em atrito com a administração Biden na questão ambiental, precisa se comprometer a reduzir imediatamente, “em pelo menos 50%”, o desmatamento na Amazônia, levando o número para a casa dos 7.000 km2, mais próximo do índice verificado seis anos atrás. No entanto, o pesquisador lembra que, a partir de 2014, devido à crise econômica, o Brasil tem retirado recursos do orçamento para prevenção de incêndios e desmate, o que torna a tarefa de se adequar à imposição de uma nova cartilha pelos Estados Unidos ainda mais árdua. “Zerar o desmatamento na Amazônia é difícil, mas é possível diminuí-lo, sem dúvida. Isso demanda comando e controle na região, algo que, sem uma atitude forte do Governo nesse sentido, não se viabiliza.”
Especialistas como Nobre esperam certo grau de moderação por parte de Bolsonaro nos próximos meses em falas direcionadas à Amazônia, apesar da rusga com Biden durante a campanha norte-americana. Mesmo que decida dispensar a ajuda bilionária prometida pelo democrata e resista ao acosso internacional contra o desmatamento, o presidente precisa calcular o ônus político de continuar fechando os olhos para a destruição da floresta.
Estímulo econômico
Liderados por Biden, os Estados Unidos também devem estimular suas companhias multinacionais a assumir compromissos em defesa do meio ambiente —o que jamais chegou a estar pauta na gestão Trump. Recentemente, um estudo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) em parceria com a ONG americana Amazon Watch mostrou que instituições financeiras como Citigroup, BlackRock e J.P. Morgan Chase investiram mais de 18 bilhões de dólares (102 bilhões de reais), entre 2017 e 2020, em empresas denunciadas por envolvimento em invasões, desmatamento e violações de direitos indígenas na Amazônia. “No Congresso, democratas estão pressionando para que os financiadores não sejam mais cúmplices dos destruidores da floresta. Ao retomar o poder, espera-se que coloquem em prática esse discurso”, diz Christian Poirier, diretor de programas da Amazon Watch.
A primeira manifestação nesse sentido pode ocorrer antes mesmo da posse de Biden na Casa Branca. Nesta quarta-feira, um dia depois da eleição, os Estados Unidos se retiraram oficialmente do Acordo de Paris, promessa de campanha cumprida por Trump. Para marcar a diferença na agenda ambiental em relação ao antecessor republicano, o novo presidente sinalizou a intenção de devolver os EUA ao plano de metas para reduzir a emissão de gases estufa o mais rápido possível. O realinhamento da maior potência mundial ao Acordo seria outro revés para Bolsonaro, que já cogitou tomar o caminho de Trump —e voltou atrás— e se mostra reativo a propostas de ajuda internacional para a preservação da Amazônia. “Sem o Trump para endossar essa política ambiental desastrosa do Governo Bolsonaro, o Brasil não vai ter como recusar [o fundo de Biden]”, afirma Poirier.
O preço da aliança
Refém do casamento ideológico de Bolsonaro com Trump, o agronegócio exportador é o setor que mais teme as consequências de uma iminente virada na geopolítica. Embora o presidente republicano não tenha defendido abertamente o desmatamento nem ações extrativistas na Amazônia, a proximidade do que convencionou-se chamar de sua “versão tropical” ajudou a chancelar a condução de uma agenda ambiental predatória em solo brasileiro, como salienta Carlos Nobre. “Trump nunca foi em público dizer que era pra desmatar a Amazônia. Mas, ao compartilhar de uma visão negacionista sobre as mudanças climáticas, ele contribuiu para que Bolsonaro se sentisse empoderado com seu apoio para reproduzir um discurso parecido no Brasil.”
Em maio, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, gerou a revolta de ambientalistas ao ter uma conversa divulgada em que sugeria aproveitar a pandemia para “ir passando a boiada” da desregulamentação de normas ambientais em reunião ministerial. Foi apenas mais um da série de episódios controversos na jornada de Salles à frente da pasta, que inclui ainda uma denúncia do Ministério Público Federal por improbidade administrativa. Carlos Nobre aponta que o ministro tende a perder força diante da conjuntura mundial pós-Trump, por simbolizar a aliança do Governo Bolsonaro com o baixo clero do agronegócio, formado por lobistas do desmatamento da Amazônia e grileiros de terra.
“O movimento do Green New Deal [economia verde] já é uma realidade. A economia mundial pode começar a vetar a importação de produtos brasileiros por causa do desmatamento da floresta. As grandes empresas do agronegócio perceberam essa tendência e estão apavoradas. E, se não houver uma mudança significativa de orientação no Governo, a pressão do mercado sobre elas ficará insustentável daqui para frente”, afirma Nobre.
Atuação em xeque
Além de Salles, outro ministro que deve ter a atuação colocada em xeque pelo comando democrata na Casa Branca é Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, de perfil negacionista, que já usou uma onda de frio na Itália para duvidar do aquecimento global. O chanceler é visto com desconfiança por líderes da Frente Parlamentar da Agropecuária no Congresso brasileiro devido a manifestações agressivas contra a China, maior importador de carnes e soja do Brasil, e as políticas de proteção ambiental. “Biden tem a oportunidade de articular uma grande frente internacional contra o populismo, o negacionismo e o anticientificismo. Nesse cenário, o Brasil ficaria muito isolado, o que aumentaria a insatisfação do agronegócio com o Governo que ajudou a eleger”, avalia Nobre.
Durante sua administração, Bolsonaro foi obrigado a rever posições por causa da reação de lideranças do agro, como a hipótese ventilada na transição presidencial de acabar com o Ministério do Meio Ambiente ou a própria ameaça de deixar o Acordo de Paris. “Relações entre países não se restringem à área ambiental, mas ela é cada vez mais determinante para os tratados comerciais”, observa Marcio Astrini. “A Amazônia nunca existiu na relação dos governos Trump e Bolsonaro, mas pode ser colocada na mesa por Biden nas futuras negociações bilaterais, a exemplo do que ocorre com a Europa.”
O ambientalista se refere ao acordo de livre comércio recém-encaminhado entre Mercosul e União Europeia, que pode ser atravancado pelos europeus caso o Brasil não se comprometa a reduzir o desmatamento na Amazônia e a emissão de gases poluentes. Agora, os EUA têm chance de se juntar à Europa na força-tarefa global de enquadrar o Governo Bolsonaro em diretrizes ambientais mais sustentáveis. “Uma pressão diplomática forçaria o Brasil a reformar as políticas ambientais para manter as relações comerciais não só com os Estados Unidos, mas também com a Europa”, diz Christian Poirier.
Segundo pesquisa Datafolha encomendada pelo Greenpeace Brasil, 87% dos brasileiros consideram muito importante preservar a Amazônia e 46% qualificam como ruim ou péssimo o trabalho realizado por Bolsonaro para proteger o ecossistema. Se não quiser amargar o mesmo fim de seu antigo maior aliado na América, o “Trump tupiniquim” terá de iniciar a corrida pela reeleição a partir de novos termos ambientais. E escolher entre o pragmatismo ou o negacionismo.
Fonte: El País
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