Houve um tempo em que o colecionador Pedro Corrêa do Lago, de 62 anos, participava de uma média de 100 leilões por ano — a maior parte deles no exterior.
Foi assim que, ao longo de 50 anos, conseguiu reunir a maior coleção particular de manuscritos do mundo. São, ao todo, mais de 30 mil peças, entre cartas, bilhetes, recibos, partituras e desenhos, de seis mil personalidades históricas: do papa italiano Anastácio IV (1073-1154) ao astrofísico inglês Stephen Hawking (1942-2018).
Entre outras preciosidades, guardadas em arquivos de meia tonelada cada à prova de fogo e umidade, Pedro destaca um rascunho de Em Busca do Tempo Perdido (1913), escrito por Marcel Proust (1871-1922); a partitura de Chega de Saudade (1958), composta por Tom Jobim (1927-1994); um esboço de Mickey Mouse, feito por Walt Disney (1901-1966); um recibo de dois mil xelins, correspondente a 20 sessões de psicanálise, assinado por Sigmund Freud (1856-1939), e até um formulário de hotel preenchido por Ernest Hemingway (1899-1961) — no campo lazer, o autor de O Velho e o Mar (1952) escreveu: “Esquiar, pescar, atirar e beber”.
“O manuscrito é um pedaço de História que cabe na nossa mão”, costuma dizer.
A obsessão de Pedro Corrêa do Lago por manuscritos só não é maior do que seu fascínio por fotografias. “São paixões paralelas”, diz.
Há sete, oito anos, ele arrematou, por um valor que não se recorda mais, um lote de 40 fotos do Rio de Janeiro dos primeiros anos do século 20. Ao buscar o álbum no leiloeiro, chegou à conclusão de que, pessoalmente, as fotografias eram ainda mais bonitas do que pela internet. “Levei um susto com a qualidade técnica das fotos. Eram realmente impressionantes”, recorda.
Nem todas, porém, estavam assinadas. As que estavam, conta, traziam a assinatura de “C. Armeilla”.
Logo, ele – que, além de colecionador, é escritor, editor e historiador – saiu à procura de dados biográficos do fotógrafo misterioso. Nada encontrou.
Algum tempo depois, conversando com um amigo, outro grande colecionador, rasgou elogios ao talento do tal “Armeilla”. Para espanto de Pedro, Ruy Souza e Silva não só conhecia o trabalho do tal “fotógrafo misterioso”, como tinha, em seu acervo, algumas fotografias dele.
“Esse cara merece uma pesquisa mais apurada”, pensou.
De pesquisa em pesquisa, Pedro conseguiu localizar mais algumas dezenas de imagens: umas, da coleção da Casa de Rui Barbosa, e outras, do acervo de George Ermakoff. “Juntas, as quatro coleções totalizaram 180 imagens. Número mais que suficiente para justificar um livro”, explica.
A ideia original era publicar um volume com a reprodução das imagens, sem referência biográfica do autor. Foi quando o pesquisador Agenor Araújo Filho, que trabalha com Corrêa de Lago há mais de 30 anos, se ofereceu para investigar a vida do fotógrafo.
De cartões-postais a cédulas de dinheiro
Durante um ano e meio, Araújo Filho vasculhou a biblioteca de Corrêa de Lago em busca de pistas.
Depois de mergulhar no rico acervo de livros de referência, coleções de revistas e catálogos de leilões, além de farta iconografia, descobriu, entre outros achados, que o misterioso fotógrafo se chamava André-Charles Armeilla, tinha nascido na França e, antes de chegar ao Rio, por volta do ano de 1903, trabalhara, durante cerca de dez anos, em Montevidéu. Curiosamente, no Uruguai, o fotógrafo assinava seus negativos como “A. Armeilla”.
Descobriu, ainda, que Armeilla ganhava a vida vendendo fotos, a maior parte delas sem assinatura, para a imprensa da época. Teve fotos publicadas nas revistas Kósmos, em outubro de 1908, e Careta, em novembro de 1911. Enquanto, na Kósmos, não teve o nome creditado, na Careta, foi creditado como ‘Armaeilla’ (sic).
Em 1912, pelo menos cinco de suas fotos, do Theatro Municipal, da Biblioteca Nacional e do Jardim Botânico, entre outras, estamparam o livro alemão Brasilien, Ein Land Der Zukunft (Brasil, Um País do Futuro). E, mais uma vez, Armeilla não recebeu os créditos por seu trabalho.
“É possível especular que, em sua última década de vida, Armeilla talvez estivesse mais preocupado em sobreviver dignamente do seu ofício que em divulgar seu nome para consolidar uma nova reputação aos quase 60 anos de idade”, escreveu Araújo Filho no livro.
Se algumas de suas imagens foram parar nas páginas de publicações ilustradas, outras viraram cartões-postais. Um dos principais editores foi o tipógrafo e comerciante Antônio Caetano da Costa Ribeiro, que identificava sua produção como “A. Ribeiro”. Uma das fotos de Armeilla, que retrata a recém-inaugurada Avenida Beira Mar, além de cartão-postal, enfeitou também a cédula de 10 mil réis, que circulou de 1918 a 1950.
“Cada descoberta me levava a uma nova descoberta. Por vezes, me senti como um arqueólogo”, brinca Araújo Filho.
Sua descoberta mais inusitada, porém, ainda estava por vir. Agenor descobriu que, no dia 15 de maio de 1913, Armeilla fora encontrado morto na rua Bento Lisboa, no Catete, por um policial, e sepultado como indigente no cemitério de São Francisco Xavier. Segundo o atestado de óbito, A. Charles Armeilla, de 60 anos “presumíveis”, morreu de moléstia não determinada. “Aos poucos, fomos montando o quebra-cabeça”, relata Corrêa de Lago.
Flagrantes de um Rio que não existe mais
Do esforço conjunto entre Pedro Corrêa de Lago e Agenor Araújo Filho nasceu Armeilla – Um Mestre Esquecido da Paisagem Carioca (Capivara, 2020).
Das 180 imagens do livro, a que mais intriga o pesquisador é a que mostra, do alto de Santa Teresa, um homem de costas (seria o Armeilla?) observando a baía de Guanabara.
“Pela posição dos braços, o misterioso personagem, de terno preto e chapéu coco, parece usar um binóculos”, especula. O que ele estaria procurando: algo perdido no oceano ou alguém em meio à multidão? “É um clássico instantâneo”, define.
“Depois que você a vê uma única vez, fica para sempre na memória.”
A maior parte dos registros do livro é do Rio de Janeiro: do Pão de Açúcar ao Jardim Botânico, do Morro do Corcovado (ainda sem o Cristo Redentor, inaugurado em 1931) à Floresta da Tijuca, da Avenida Central (atual Rio Branco) aos Arcos da Lapa.
Pelas lentes de Armeilla passaram também paisagens que nem existem mais, como o Morro Santo Antônio, destruído na década de 1950 para dar lugar à atual Avenida Chile, ou o Palácio Monroe, ex-sede da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, demolido em 1976.
Há fotos também de outras cidades, como Niterói e Petrópolis, além da Ilha de Paquetá.
Para Corrêa de Lago, as imagens mais impressionantes da coleção são as que eternizam “as vistas do mar” e “o céu nublado”.
“Muitos fotógrafos faziam um trabalho burocrático. Armeilla, ao contrário, procurava temas pouco explorados e ângulos bastante originais. Dá para ver que dominava a técnica. Era quase um pintor”, elogia.
Em sua opinião, a obra de Armeilla só caiu no esquecimento por que, ao contrário de outros fotógrafos, como Marc Ferrez (1843-1923) ou Augusto Malta (1864-1957), não deixou descendentes. “São as famílias que, na maioria das vezes, promovem a obra de seus antepassados”, explica. No caso de Ferrez, o mais prolífico e importante fotógrafo brasileiro do século 19, o maior divulgador de sua obra, coincidência ou não, foi o próprio neto, o pesquisador Gilberto Ferrez (1908-2000).
Fonte: BBC News
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