Descrição de uma nova espécie de quelônio, antes vista como única, poderia ajudar no combate ao tráfico desses animais amazônicos
Quelônio de construção encrencada e de aspecto hediondo. Parece alimária duma fauna fantástica, criada por um deus brincalhão.” Assim o agrônomo e divulgador científico carioca Eurico Santos (1883-1968), na primeira metade do século XX, descreveu o matamatá (Chelus fimbriata), tartaruga de água doce típica das regiões central e norte da Amazônia. Com um pescoço alongado e espesso, cabeça achatada e triangular e narinas que parecem um snorkel, o animal que ainda hoje os ribeirinhos brincam dizendo ter sido feito com partes de outros animais era até agora visto como uma espécie única, mas na verdade são duas. Com base em análises de características genéticas e morfológicas e de distribuição geográfica, pesquisadores do Brasil, Colômbia, Alemanha e Reino Unido identificaram uma nova espécie, C. orinocensis.
A descrição da nova espécie pode ter um papel importante no combate às exportações ilegais. “Podemos identificar a origem dos animais e mapear a rota do tráfico, o que contribui para o trabalho das autoridades locais”, diz a bióloga Susana Caballero, da Universidade dos Andes, na Colômbia, que participou do trabalho cujos resultados foram publicados em julho na revista Molecular Phylogenetics and Evolution.
Segundo ela, o rastreamento genômico facilita a devolução dos animais para os locais de onde foram retirados. Como têm uma aparência muito peculiar, os matamatás são muito cobiçados como bichos de estimação. Em abril deste ano, cerca de 2 mil matamatás que seriam exportados ilegalmente foram devolvidos aos seus hábitats, segundo o Ministério do Ambiente da Colômbia.
Diferenças
As duas espécies podem ter o mesmo tamanho, chegando a 50 centímetros de comprimento, mas vivem em territórios distintos. Descrita em 1783 pelo naturalista alemão Johann Schneider (1750-1822), C. fimbriata ocupa as bacias dos rios Amazonas, no Brasil, e Mahury, na Guiana Francesa, enquanto a nova espécie vive nas bacias do Orinoco, que corta a Colômbia e a Venezuela, e alto rio Negro, no Brasil.
As diferenças físicas são sutis. Chelus orinocensis tem um dorso mais claro, amarelado e sem pigmentos como a espécie original. “A carapaça dos matamatás do Orinoco e rio Negro é mais clara e mais oval que a dos animais da bacia do Amazonas, de carapaça escura e mais retangular”, explica o herpetólogo Richard Vogt, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), um dos autores do artigo que descreve a nova espécie.
Diferenças morfológicas já haviam sido relatadas, indicando a possibilidade de mais de uma espécie, agora confirmada por análises moleculares. Na Universidade dos Andes, na Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e no Museu de Zoologia de Senckenberg, na Alemanha, os pesquisadores sequenciaram genomas nucleares e mitocondriais de amostras de pele e de tecido muscular de 75 animais coletados em 17 locais da bacia Amazônica (ver mapa).
As análises genéticas indicaram três ramos (ou clados), de acordo com a distribuição geográfica. O primeiro abarca exemplares de C. orinocencis das bacias do Orinoco e rio Negro, o segundo C. fimbriata da bacia do rio Amazonas e o terceiro, não reconhecido como espécie à parte, inclui animais coletados nos rios Essequibo, na Guiana, e Branco, no Brasil, com semelhanças genéticas com as duas espécies. “Os matamatás dos rios Essequibo e Branco poderiam ser uma terceira espécie ou híbridos das duas atuais, já que as análises mostraram discordâncias entre genomas mitocondriais e nucleares”, explica a bióloga Izeni Pires Farias, da Ufam e coautora da publicação. “Para confirmar, precisamos analisar uma melhor amostragem geográfica do grupo.”
As linhagens que originaram as novas espécies divergiram há cerca de 13 milhões de anos, quando as bacias dos rios Orinoco e Amazonas se separaram. “Os dois grupos se separaram e passaram a evoluir de forma independente”, diz o biólogo Tomas Hrbek, também da Ufam e coautor do estudo.
Até onde se sabe, as duas espécies compartilham hábitos semelhantes e se alimentam principalmente de peixes. “Suas bocas parecem um aspirador que sugam a presa para dentro, com botes rápidos”, compara Vogt, do Inpa. A sucção pode levar apenas 44 milissegundos.
Cabeça de Chelus orinocensis de afluentes do do Rio NegroRichard Vogt/ INPA
Os matamatás vivem em águas calmas de rios e lagos com 1,5 a 2 metros de profundidade. “Como não nadam tão bem, eles caminham nos leitos dos lagos e rios e saem para respirar duas a três vezes por hora”, conta o biólogo Fábio Cunha, do programa de conservação de quelônios do município de Juruti, no oeste do Pará, que não participou da pesquisa sobre a nova espécie.
Para suprir a falta de dados sobre as populações de matamatás, Cunha e outros pesquisadores mapearam a distribuição de C. fimbriata e C. orinocensis e encontraram 182 novos locais de ocorrência de matamatás no Brasil, Peru, Colômbia, Venezuela e Bolívia. O estudo será publicado na próxima edição da revista Chelonian Conservation and Biology.
A forma e a coloração do dorso e do ventre de C. orinocensis (à dir.) e de C. fimbriata (à esq.) apresentam pequenas diferençasMónica A. Morales-Betancourt
Matamatás de estimação
Apesar de não constar como espécie ameaçada na Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e Flora Silvestres Ameaçadas de Extinção (Cites), o matamatá faz parte do mercado de animais exóticos de estimação. Uma busca no Instagram com a hashtag #matamataturtle revela lojas de pets que vendem o animal por cerca de US$ 300 nos Estados Unidos, Espanha e em países asiáticos. Aparecem também pessoas posando ao lado dos animais e vídeos que mostram o desconforto do bicho ao ser tocado.
Parte desse mercado parece ser abastecida pelo tráfico. Em artigo publicado em 2018, na revista Biota Colombiana, pesquisadores da Universidade dos Andes, em colaboração com órgãos governamentais e organizações não governamentais, ajudaram no resgate de cerca de 400 matamatás da Colômbia que seriam exportados ilegalmente para o Peru.
“Como as tartarugas eram confiscadas em Letícia, na Colômbia, pensava-se que seriam dessa região da Amazônia, mas, por meio de análises moleculares, mostramos que a maioria vinha da região do Orinoco”, conta Caballero.
Fonte: Revista Pesquisa Fapesp
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