Os pensadores Caio Prado Júnior e Celso Furtado, considerados como referências teóricas da formação econômica do Brasil, assim como fazem quase todos os historiadores e geógrafos nos livros didáticos e paradidáticos adotados pelo MEC, o Ministério da Educação, excluem o papel do Ciclo da Borracha e demais empreendimentos da Amazônia das bases de compreensão e consolidação do modelo de desenvolvimento nacional, da geração de riqueza e do enfrentamento das desigualdades regionais. Mais recentemente, Paul Singer, professor emérito da USP e da PUC-SP, chegou mais perto da questão ao inserir, num de seus trabalhos, a economia da Amazônia na lógica do capitalismo nacional e internacional, sem acessar, entretanto, maiores detalhes dessa equação. Mais do que cobrar de quem não poderia corresponder – o acervo documental/memorial do Amazonas e do Pará, este com menor intensidade, são calamitosos – temos que recompor a própria memória amazônica e aferir essa decisiva participação. A síndrome do descaso descreve o jeito com que tratamos a memória de luta e de resistência dos pioneiros que aqui construíram alternativas da promoção social e econômica. E esse descaso, sem dúvida, compromete os movimentos de integração e fortalecimento da economia regional e da Zona Franca de Manaus e sua inserção no sumário da história e da economia do Brasil. Eis aqui, com efeito, um dos esteios do Prêmio Samuel Benchimol e da inserção do Amazonas no projeto Pioneirismo e Empreendedorismo do Estado Brasileiro, que tem incrementado a aproximação fecunda entre a USP e a UEA, e que reúne atores públicos e privados para debater novos caminhos, que nos permitam tomar nas próprias mãos o destino do Amazonas, da Amazônia e sua interação nacional, continental e global.
Por isso é sempre promissora a incursão na memória do pioneirismo, que o Prêmio Samuel Benchimol significa, para jogar luzes no presente e no planejamento de novos cenários para a região. Neste contexto, vale a pena revisitar e refletir sobre a formação econômica de um estado parceiro como São Paulo, que recebeu, na consolidação do Ciclo do Café, a migração de investimentos que deixaram a Amazônia com a debacle do Ciclo da Borracha, há cem anos. A história é discreta a respeito, atestando o desconhecimento e distância do Brasil hegemônico deste Brasil amazônico, que representa, além de dois terços de seu território, um acervo de respostas a muitos de seus dilemas. Recuperar a memória é recompor a brasilidade cúmplice que se impõe e que precisa tornar-se mais ainda robusta pela via do conhecimento da memória integral e integrada e da geografia humana. Gilberto Freyre, ao concluir a leitura de Formação Social e Cultural da Amazônia, de Samuel Benchimol, se deu conta que ali estava mais do que um ensaio sobre a história de uma Amazônia distante, que os compêndios escolares ignoram, mas de uma obra abrangente e obrigatória para o Brasil. “Uma empolgante leitura, um estudo monumental da Amazônia (…) que dá ao saber a dimensão magnifica da sabedoria, e a seu caráter de obra clássica, a modernidade do arrojo futurológico”. A USP debate o Amazonas, através da obra de Samuel Benchimol, já há algumas décadas. Em 1992, quando o mundo decidiu escolher o Brasil, a Rio-92, para debater a questão climática, na relação entre desenvolvimento e meio ambiente, os países poluidores trataram de escolher as supostas queimadas da Amazônia como o bode expiatório do aquecimento global.
Naquela ocasião, essa Universidade promoveu o Seminário sobre Alternativas de Desenvolvimento Sustentável na Amazônia, escalando Samuel como conferencista no Fórum Global, onde buscávamos rebater a acusação de que as queimadas da Amazônia eram responsáveis pelo aquecimento global. Ainda hoje a região é acusada pela estiagem no Sudeste e todos nós embarcamos sem críticas nessa acusação aloprada, cujo estatuto de seriedade científica, curiosamente, não foi reconhecido por nenhuma publicação internacional com respeitabilidade. O pesquisador do INPE, Antônio Nobre, autor de publicação recente que relaciona a derrubada de árvores na Amazônia com a escassez de água no Sudeste, esqueceu-se de inserir a informação de que o modelo de desenvolvimento ali adotado detonou 95% da Mata Atlântica e estimula uma indústria automobilística com isenção tributaria baseada na queima de combustíveis fosseis. Precisamos de um olhar mais ancho. Nas teses de sua “Guerra na Floresta”, obra lançada na Rio-92, Samuel antecipou as premissas da sustentabilidade para empreender sem depredar: “O mundo amazônico não poderá ficar isolado ou alheio ao desenvolvimento brasileiro e internacional, porém ele terá que basear-se em quatro parâmetros e paradigmas fundamentais: isto é, ele deve ser economicamente viável, ecologicamente adequado, politicamente equilibrado e socialmente justo.” Ora, como tem-se portado, historicamente, a economia do Brasil e sua relação com a Amazônia, à luz dessas recomendações, hoje adotadas universalmente como critérios de sustentabilidade, na perspectiva de atender as demandas sociais e a reposição dos estoques naturais, sem afetar as gerações que virão?
A gestão da Amazônia, o maior desafio do Brasil e sua interação com os demais vizinhos da Amazônia Continental, não pode ser dissociada da gestão dos demais biomas. E qual a vocação mais coerente, e não predatória, recomendada pela vertente científica, para agregar valor aos produtos regionais e sua integração com a indústria sem chaminés do polo industrial de Manaus, e demais plantas industriais da região? A aquicultura, a nutracêutica, que é a indústria do rejuvenescimento, a bioindústria das fibras, resinas, oleaginosas, a silvicultura sustentável… só dependem dos investimentos de Pesquisa & Desenvolvimento, ou seja, vontade política, em inovação e prospecção a partir da infinidade de inventários que as instituições de pesquisa acumulam em seus escaninhos há décadas. A ideologia do preservacionismo que remete à intocabilidade da floresta, é uma forma de desrespeitar as pessoas que habitam este bioma e, literalmente, uma nuvem de fumaça para esconder a alternativa predatória de desenvolvimento até aqui adotado pelo Brasil hegemônico. As lições dos pioneiros apontam para o manejo inteligente dos recursos locais, a alternativa correta e eficiente de conservar a natureza e desenvolver capacidades a aptidões humanas. E se a melhor forma de preservar um bem natural é atribuir-lhe uma função econômica, a Amazônia, com sua extensão e biodiversidade, abriga a resposta para a maioria das perguntas que a ciência tenta responder hoje, na medicina, na agroindústria, nas alternativas energéticas e nos avanços da equação enigmática entre crescimento econômico e recomposição dos estoques naturais Por mais nobres que sejam os estandartes apocalípticos da agonia ambiental, o Brasil e seus cientistas precisam mergulhar na floresta, conhecer sua história e cotidiano, empunhar a bandeira nativa da sustentabilidade, para pontuar novos rumos, adensar, diversificar e interiorizar a economia na região. Assim, faz sentido a gestão da Amazônia, e oferecer oportunidades que assegurem manter em pé, principalmente, a dignidade das pessoas, de todas as pessoas, como ensina Samuel Benchimol, prêmio, memória e lições para o amanhã.
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