Há uma atualidade gritante e instigante nas teses de Éttiene de La Boétie, um filósofo francês que escreveu, no século XVI, o Discurso da Servidão Voluntária, à vista do autoritarismo temerário que se ensaia nas condutas de determinadas candidaturas. Precursor da filosofia política, como a de Maquiavel, La Boétie seguiu a metodologia irônica dos pensadores renascentistas, mas consolidou em relação a Maquiavel uma diferença essencial. Maquiavel, com seu realismo cínico, pretendia doutrinar o Príncipe sobre como consolidar seu poder, enquanto La Boétie, com seu raciocínio jurídico e erudição lógica e epistemológica, se dedicou a discutir maneiras de derrubá-lo e assim assegurar a liberdade dos indivíduos. Por isso, o texto do Discurso é considerado o suporte axiológico da liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa, que ocorrerá mais de dois séculos depois.
O jovem filósofo não viu o Discurso ser publicado, pois morreu aos 33 anos, nem desconfiaria que, passados quase cinco séculos, permaneceria absurdamente atual. La Boétie o desenvolveu a partir de uma percepção sobre a natureza da tirania e o funcionamento do próprio aparato do estado. Para ele, toda tirania deve necessariamente basear-se numa aceitação popular geral. A rigor, a maior parte do povo, por qualquer razão que seja, está de acordo com a própria subjugação. Para ele, o tirano nada mais é do que uma pessoa, e dificilmente poderia obter a obediência de outra pessoa, muito menos de um país inteiro, se a maioria dos súditos não consentisse com esta obediência. Essa servidão voluntária se manifesta não apenas na manipulação totalitária de uma publicidade sutilmente opressiva (bolsas, orgulhos, bravatas) ou na manipulação de valores, favores e pendores de uma agremiação, um grupo, ou um guru, mascarado com vestes e poderes messiânicos que vão retirar os oprimidos da exclusão para o banquete do consumo que os tornará membro do mundo igualitário.
A servidão e a tirania estariam presentes como parte da natureza humana? Mais tarde, foram estudadas e aprofundadas pelo filósofo alemão, Theódor Adorno. Ganham, então, nuances mais sofisticadas com hierarquias de submissão em relação ao Messias de plantão, e de autoritarismo em relação aos que se encontram abaixo na escala hierárquica do servilismo. Adorno, um dos fundadores da Escola de Frankfurt, que fez a releitura do Marxismo e da Psicanálise, perseguido pelo Nazismo, veio para a América, onde sistematizou a obra “Personalidade Autoritária”, publicada em 1950, um texto obrigatório para quem quiser conhecer a tirania na sociedade industrializada. Em contraste com o despotismo clássico, Adorno descreve a tirania na combinação de ideias e habilidades típicas da sociedade de consumo, ou do espetáculo, combinando crenças irracionais ou antirracionais. “O tirano ( a personalidade autoritária) é ao mesmo tempo esclarecido e supersticioso, orgulhoso de ser um individualista e sempre temeroso de não ser igual aos outros, ciumento de sua independência e inclinado a se submeter cegamente ao poder e à autoridade”. A estrutura de caráter que abarca essas tendências conflitantes já atraiu a atenção dos pensadores políticos e filósofos modernos, atentos à dinâmica psicossocial e implicações políticas no exercício do poder. A tirania explícita disseminada ou sutilizada pelo atual publicitário da Corte e a arrogância e o revanchismo que se instalaram no Amazonas remetem à implantação de um despotismo preocupante, cujos reflexos já se fazem sentir, há mais de uma década, nos indicadores sombrios de educação, de mortalidade infantil, de violência, intimidação e, sobretudo, na gestão obscura de verbas públicas e trato com as pessoas: eis a conduta e o discurso devastador da servidão e da intimidação.
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