Em 2023, a caatinga enfrenta recordes de queimadas e avanço da desertificação, impulsionados por mudanças climáticas e políticas de conservação insuficientes, alertam especialistas
O ano de 2023 foi marcado por extremos climáticos e um número recorde de queimadas na caatinga em mais de uma década. Conforme informações do BDQueimadas, sistema do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), houve o registro de mais de 21,5 mil focos de calor neste bioma. Este número é o maior desde 2010, que teve 21,8 mil focos. O sistema de detecção utiliza imagens de satélite para identificar focos de fogo maiores que 30 m².
Comparado ao ano anterior, houve um aumento de 39% nos focos de calor, influenciado pelo fenômeno El Niño. Este fenômeno provoca o aquecimento das águas do Oceano Pacífico na região equatorial e resulta em alterações climáticas significativas, como mais secas no Norte e Nordeste e mais chuvas no Sul e Sudeste do Brasil.
A Caatinga e o impacto do fogo
A caatinga, sendo o único bioma exclusivamente brasileiro, abrange cerca de 10% do território nacional e inclui diversos estados. Washington Rocha, coordenador da equipe caatinga do Mapbiomas e professor na Universidade Estadual de Feira de Santana, destaca que incêndios naturais são raros ou inexistentes nesse bioma. As queimadas são predominantemente causadas por atividades humanas, principalmente para limpeza de terras destinadas ao cultivo.
Este tipo de prática se torna mais arriscado em condições climáticas adversas, como tempo seco e ventos fortes. Além das queimadas para limpeza de terreno, há também incêndios criminosos, motivados pelo desejo de expandir áreas para agricultura ou pastagem.
Segundo o pesquisador, as regiões com mais desmatamento estão próximas às fronteiras agrícolas e pecuárias, áreas de geração de energia renovável e perto dos canais de transposição do rio São Francisco.
A caatinga, adaptada às altas temperaturas, se destaca por sua biodiversidade rica e exclusiva. Um estudo recente revelou que existem aproximadamente 3.347 espécies de plantas no bioma, das quais 15% são endêmicas, ou seja, só encontradas nessa região.
O Mapbiomas reportou que, entre 1985 e 2022, a caatinga sofreu uma perda líquida de vegetação de 10,8%, resultado do desmatamento e da regeneração vegetal. Paralelamente, a área dedicada à agropecuária dentro do bioma cresceu 21,8%. Neste mesmo intervalo de tempo, aproximadamente 105 mil km² da vegetação do bioma foram afetados por incêndios.
Em 2023, os focos de calor mais intensos na caatinga se concentraram principalmente no Piauí (34%), seguidos pela Bahia (23%) e Ceará (23%).
Consequências ambientais e risco de desertificação
Washington Rocha ressalta que incêndios intensos trazem prejuízos irreparáveis à biota, especialmente em ecossistemas delicados e unidades de conservação. Ele aponta uma ameaça crescente de desertificação, especialmente nas áreas suscetíveis a este fenômeno (ASD), onde incêndios recorrentes podem acelerar o processo de desertificação.
O cientista cita regiões como Cabrobó, em Pernambuco, e Seridó, entre o Rio Grande do Norte e Paraíba, como exemplos de núcleos de desertificação em expansão. Canudos, na Bahia, também é mencionada como uma área de ASD em risco devido ao avanço do desmatamento.
Mudanças climáticas na Caatinga
Recentemente, um estudo do Inpe e do Cemaden identificou a formação de uma área de clima árido no norte da Bahia, uma característica climática nunca antes observada no Brasil. Este estudo, que abrangeu o período de 1990 a 2020, também revelou uma tendência geral de aumento da aridez no país, exceto na região sul e nos litorais do Rio de Janeiro e São Paulo. De acordo com a pesquisa, o semiárido brasileiro está se expandindo, crescendo mais de 75 mil km² a cada década desde 1960.
O incremento da aridez na caatinga, segundo os cientistas, é uma das consequências das mudanças climáticas impulsionadas pelas atividades humanas. Esse fenômeno aumenta o risco de desertificação, o que pode levar à migração ou extinção de espécies, afetar a disponibilidade de água e alterar condições meteorológicas vitais para a agricultura. Essas mudanças teriam impactos significativos na economia local e na segurança hídrica e alimentar das comunidades da região.
Washington Rocha observa que os esforços de conservação da caatinga são insuficientes e ineficientes, em grande parte devido à falta de conhecimento sobre as características únicas do bioma. Ele menciona a percepção equivocada de um bioma sem vida, ignorando adaptações como o desfolhamento das plantas nas estações secas. Rocha critica a flexibilidade das políticas regulatórias, a falta de reconhecimento do bioma como patrimônio nacional e o baixo percentual de áreas protegidas em comparação com a extensão total do bioma.
Com informações da Folha de São Paulo
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