“o ambiente de discussão e aprovação da reforma tributária traz tanto boas expectativas de que o Brasil poderá ter, em breve, um bom sistema tributário, quanto incertezas”.
Por Márcio Holland
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A discussão sobre reforma tributária ganhou impulso e ocupa grande parte da mídia nacional. Há muito entusiasmo na mesma quantidade das dúvidas. O Grupo de Trabalho constituído na Câmara dos Deputados tem, aproximadamente, um mês para finalizar seus trabalhos, depois de ouvir especialistas, empresários e políticos. Qual proposta de reforma tributária sairá deste grupo? Igualmente importante, se aprovada, ao final do ano, qual reforma tributária sairá do Congresso Nacional?
Há uma grande convergência de ideias, mas os detalhes somente serão conhecidos com a apresentação da proposta de Lei Complementar. Entre as convergências, desnecessário insistir no diagnóstico; estamos todos na mesma página de que temos um sistema tributário complexo, pouco transparente, gerador de ineficiências econômicas, regressivo e causador de insegurança jurídica. Neste ambiente, qualquer aperfeiçoamento será muito bem-vindo.
Também há convergência no diagnóstico de que o Brasil patina na produtividade do trabalho, notícia tão desbotada quanto a de que o homem pisou em solo lunar. Isso vale para a baixa competitividade dos negócios aqui instalados e o elevado “custo-Brasil”. Há convergência sobre a importância de se adotar um “bom” IVA na tributação sobre o consumo, de base ampla de incidência, baseado no crédito financeiro e não físico, garantindo a não cumulatividade plena, de sorte a não incidir sobre as exportações, e com adoção do princípio do destino nas operações interestaduais e intermunicipais.
Contudo, como um náufrago tentando emergir sobre as ondas do mar, contribuintes e entes federados se agarram aos restos de um navio afundado. Há muitas incertezas enquanto o socorro não vem. Primeiro, fala-se em reforma tributária que não aumentará a carga tributária.
Mas, qual carga tributária? De 2020 para 2021, a carga tributária saltou de 30,91% do PIB para 32,95% do PIB, com estimativas de 33,71% do PIB, para 2022, e a arrecadação dos cinco tributos a serem substituídos por um IVA (imposto sobre valor adicionado), a saber, PIS, COFINS, IPI, ICMS e ISS, subiu de 12,16% do PIB para 12,99% do PIB. Esses tributos respondem por cerca de 40% da arrecadação tributária total. O IVA de base ampla conseguiria se manter nessa proporção da arrecadação total ou do PIB?
Segundo, há uma dúvida perfeitamente justificável sobre o tamanho da alíquota do IVA. A média não ponderada dos países da OCDE é de 19,2% e o Brasil poderá ter um IVA em torno de 30%, disparadamente o maior do mundo. Chega-se a esse porcentual a partir de pesquisa sobre a Tabela de Recursos e Usos do IBGE, de 2020, excluindo aos setores não passíveis de tributação do IVA, aplicando taxa média de sonegação da OCDE, em torno de 20%, e acomodando alíquotas diferenciadas como tem sido repercutido na mídia.
Em parte, o Brasil ter um IVA superior à média da OCDE se justifica pelo fato de que a tributação sobre o consumo aqui responde por 50% da carga tributária nacional enquanto lá fora esse porcentual é de 30%. Em adição, por ser uma economia de renda per capita média, a capacidade de arrecadação em tributos sobre a renda é relativamente baixa.
Daqui deriva uma terceira dúvida, sobre a repartição do futuro IVA, seja em formato único ou dual, com CBS (contribuição sobre bens e serviços) e IBS (imposto sobre bens e serviços) para os estados e municípios. Supondo que o IVA final seja de 25%, quanto cabe a cada ente federado? Simulações a partir da Tabela de Recursos e Usos do IBGE, para 2020, indicaria que o IVA que caberia à União seria de 8,05%, aos estados seria de 15,03% e aos municípios de 1,92%.
Estaria a União confortável com 32% da arrecadação do IVA? Em tendo alíquotas diferenciadas, pagamentos de cashback para famílias mais pobres, e algum regime de exceção, qual porcentual adicional seria necessário para a União cobrir essas despesas? O PL 3.887/2020, de iniciativa do Governo Federal, previa alíquota de 12% da CBS em substituição ao PIS e a COFINS. Projetando essa alíquota para mesmas proporções dos demais entes federados, teríamos um IVA final muito superior a 30%, se o apetite arrecadatório dos estados e municípios for o mesmo da União.
A consequência deste jogo de alíquotas seria o Brasil sendo Brasil. Ajusta-se as contas públicas pelo lado da receita e vai se acomodando mais e mais despesas. Haveria um aumento considerável da carga tributária, em um típico jogo de perde e perde na expectativa de termos um “bom” IVA.
Quarto, o IVA é um tributo regressivo. Aqui vale a leitura do Working Paper da OCDE no.49, de 2020, de Alastair Thomas “Reassessing the regressivity of the VAT”. Contudo, há mecanismos capazes de tornar o IVA proporcional ou mesmo progressivo, conforme desenhos de política de alívio tributário para famílias mais pobres.
No Brasil, a implantação do instrumento do cashback bem desenhado para famílias cadastradas no CadÚnico beneficiárias do Bolsa Família pode ser alternativa eficiente, desde que o reembolso seja imediato à compra e em alguma proporção do custo tributário das compras de bens e serviços destas famílias. Pode-se até estender o reembolso para despesas com educação em instituições privadas de ensino e para planos de saúde. A instituição de mecanismos de cashback é muito bem-vindo em um país de pobres e excluídos, mas carece de desenho apropriado ao Brasil.
Quinto, o ambiente de discussão e aprovação da reforma tributária traz tanto boas expectativas de que o Brasil poderá ter, em breve, um bom sistema tributário, quanto incertezas. A proposta de Lei Complementar precisa ser apresentada o quanto antes; ela contém os detalhes que permitirão a realização das contas de eventuais perdas e ganhos setoriais e da efetividade dos mecanismos de compensações, sejam para entes subnacionais, seja para as famílias mais pobres.
Por fim, mas longe de ser o menos importante, tem-se a chamada fase de transição. Fala-se em seis ou sete anos, sendo que nos dois primeiros anos haveria a extinção do PIS e da COFINS. Considerando que essa reforma seja implementada em 2025, em 2027 o país teria a adoção completa da CBS, o IVA da União.
Do terceiro ao sexto ou sétimo ano, prevê-se redução gradual das alíquotas do ICMS e do ISS com elevação gradual das alíquotas de referência do IBS, o IVA subnacional. Além da discussão sobre qual tamanho das alíquotas destes novos tributos, tem-se o fato de que o contribuinte terá de conviver com dois sistemas completamente diferentes na apuração de sete tributos, os cinco antigos e dois novos, além de incertezas sobre como o fisco vai administrar esse processo. Pode ser um período rico em geração de litigiosidades a serem discutidas por décadas a frente.
Fala-se muito em não cumulatividade e em crédito financeiro e amplo. Mas, não são nada desprezíveis os riscos de submeter os créditos à comprovação do pagamento pelo fornecedor e de segregação de créditos dos contribuintes, com perda da não-cumulatividade prometida, como alertado por alguns juristas, além do problema na demora em ressarcir o crédito tributário líquido.
Emendas constitucionais não mudam as instituições de um país, mas o contrário é verdade, as instituições escrevem as cartas magnas. A reforma tributária que sair do Congresso Nacional será espelho de nossas instituições. Indicadores internacionais para qualidade das instituições projetam um possível desenho de reforma tributária que teremos no final do dia. A principal reforma que mudará a qualidade de nossas instituições e, com isso, o crescimento potencial, é sobre o sistema educacional. Os impactos da reforma tributária com a adoção de um “bom” IVA, mesmo de difícil mensuração, são, sem dúvida, inefáveis para a economia, mas não se pode prometer o paraíso sem a morte.
Márcio Holland é professor na Escola de Economia de São Paulo da FGV, onde coordena os “Diálogos Amazônicos” e a Pós-Graduação em Finanças e Economia (Master)
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