Distante da fiscalização e sem interesse do governo, unidades de conservação no noroeste de Mato Grosso são violadas pela extração ilegal de madeira
“Eu estou falando baixo contigo porque estou na vila hoje, é onde a todo momento estou vendo os caminhões de tora passando. É uma região de muito conflito aqui”, diz ao telefone o líder comunitário Aílton Pereira dos Santos, presidente da Associação de Moradores Agroextrativistas (Amorarr) da Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt, em Mato Grosso. O local a que ele se refere é a Vila de Guariba, vizinha e uma das frentes de pressão para cima da área protegida, violada por invasões e pela exploração ilegal de madeira.
Entre 2013 e 2021, a reserva extrativista (Resex) teve quase 8 mil hectares explorados ilegalmente pela atividade madeireira. São caminhões com toras de madeiras de maior valor comercial, como o ipê, a maçaranduba, o cedro e o roxinho, saqueadas da unidade de conservação. A reserva está dividida entre dois municípios: Colniza e Aripuanã, no extremo noroeste do estado e tríplice fronteira com Amazonas e Rondônia.
Juntos, os dois municípios ocupam uma área de 52.638,372 km², maior do que o estado do Rio de Janeiro. Em teoria, um mosaico de unidades de conservação – como a própria Resex, a Estação Ecológica do Rio Roosevelt e o Parque Estadual Tucumã – e Terras Indígenas – como a TI Aripuanã e a TI Kawahiva do Rio Pardo – deveriam proteger as florestas da região. Na prática, entretanto, estes limites invisíveis que deveriam manter o território e seus atributos naturais longe da pressão do desmatamento são violados diariamente na região.
Dados recentes do Sistema de Monitoramento da Exploração Madeireira (Simex) mapearam a exploração madeireira – legal e ilegal –, entre agosto de 2020 e julho de 2021, em todos os estados da Amazônia Legal.
O levantamento mostra o protagonismo de Mato Grosso, o líder da atividade, seja em cumprimento ou à margem da lei. Foram 173.381 hectares de madeira explorados de forma legal e 103.668 hectares ilegalmente – cerca de 37% do total. Os números são os mais altos no estado desde 2013, quando a extração não autorizada de madeira alcançou a marca de 139.867 hectares.
Desse volume extraído ilegalmente entre 2020 e 2021, aproximadamente 14 mil hectares (14%) vieram de dentro de áreas protegidas no estado, 10% de Terras Indígenas (10.268 hectares) e 4% de unidades de conservação (3.785 hectares).
É no noroeste do estado que concentra-se essa violação criminosa das áreas protegidas para retirada de madeira não autorizada. E onde estão três das unidades de conservação mais exploradas ilegalmente de Mato Grosso: a Resex Guariba-Roosevelt e as suas vizinhas Estação Ecológica do Rio Roosevelt e Parque Estadual Tucumã.
As três são de gestão estadual e ocupam uma faixa contínua de floresta na fronteira direta com o Amazonas, dividida entre os territórios de Colniza e Aripuanã. Não à toa, os dois municípios também aparecem no “top 10” da extração ilegal em Mato Grosso. Aripuanã lidera, com 12.236 hectares, e Colniza aparece em quarto, com 7.417. Somados, os dois municípios respondem por quase um quinto de toda a extração ilegal de madeira no estado no período.
O levantamento do SIMEX é feito por uma rede composta por quatro instituições de pesquisa na área ambiental: Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (Idesam), Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e Instituto Centro de Vida (ICV).
“Esse método de mapeamento é específico para corte seletivo que é a área do dossel florestal que foi impactado pela exploração madeireira. A gente faz um processamento nas imagens de satélite Landsat que realça essas áreas que passaram por corte seletivo, e depois disso nós cruzamos com dados de unidades de conservação, imóveis rurais, Terras Indígenas, para categorizar onde estão ocorrendo essas áreas de exploração.
E confrontamos com as autorizações que foram emitidas para diferenciar o que foi autorizado do não autorizado”, detalha o coordenador de Inteligência Territorial do ICV, Vinícius Silgueiro, que faz parte da Rede SIMEX.
Proteção de papel
Entre 2013 e 2021, as unidades de conservação do estado já tiveram quase 25 mil hectares impactados pela exploração ilegal de madeira, com picos em 2017 e, consecutivamente, a partir de 2019. Em 2020, ano recorde no período, 4.710 hectares de madeira foram extraídos de forma criminosa dentro de unidades de conservação. Os dados são do ICV, que monitora anualmente a atividade no estado desde 2013.
Ao longo desses nove anos, o Parque Estadual Tucumã teve 10.768 hectares de floresta saqueados, seguido pela Reserva Extrativista Guariba Roosevelt, com 7.796, e pela Estação Ecológica do Rio Roosevelt com 3.394 de hectares explorados ilegalmente.
Os números do levantamento materializam-se em caminhões carregados de toras de madeiras de árvores – como ipês, maçarandubas, angelins e itaúbas – que passam quase diariamente pela rodovia estadual MT-206. De acordo com fontes ouvidas por ((o))eco, a maior parte destes caminhões seguem para Rondônia, onde a madeira é esquentada e comercializada. Uma realidade vista de perto pelos moradores da Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt.
“Eles pegam as principais madeiras de lei, porque aqui é uma região que ainda tem, por isso todo mundo está de olho. Mas na verdade está indo todo tipo de madeira porque já não está tendo muito. O ipê e essas madeiras assim [de maior valor] já estão acabando e aí quando acaba uma, eles vão substituindo por outras, então são várias. Ipê, maçaranduba, itaúba, cupiúba, as várias espécies de angelim… inclusive a própria copaíba vai também, porque não tem uma lei que proíba o corte”, conta o líder comunitário da Resex e presidente da Amorarr.
A derrubada das copaíbas da Resex tem como agravante o fato de que esta é uma das bases do extrativismo para as comunidades tradicionais que vivem na unidade. Atualmente, a Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt é o lar de aproximadamente 50 famílias – entre 350 e 400 pessoas – que vivem da extração de castanha-do-brasil, látex da seringueira e óleo de copaíba, e da produção de farinha de mandioca, além da caça, pesca e agricultura de subsistência.
Ao contrário das outras duas UCs da região, que são de proteção integral e não permitem moradores, a Resex é uma unidade de uso sustentável, criada justamente para salvaguardar a vida e o território de comunidades tradicionais que dependem do extrativismo de produtos florestais.
A reserva foi criada em 1996 e até hoje é a única da categoria no estado. A extensão do seu território, de atuais 164,2 mil hectares, compreendidos entre as margens dos rios Guariba e Roosevelt, já foi alvo de tentativas de redução e redelimitação, barradas pela Justiça.
A Vila Guariba, onde vivem cerca de 5 mil pessoas, é a principal frente de conflito e pressão sobre a Resex. A vila, próxima ao rio de mesmo nome, está na beira da rodovia estadual MT-206.
“E o que acontece é o comércio ilegal, não só de madeira, mas também da compra e venda de terra ilegal, principalmente próximo da Vila de Guariba. A parte que a gente fica mais concentrada, os ribeirinhos, os seringueiros, os extrativistas, fica mais afastado desse local, da vila. Onde a gente fica é mais tranquilo, porque a gente está ali no dia a dia fazendo a extração dos produtos e a manutenção da reserva e, enquanto isso, estamos fazendo o monitoramento do território, aí é mais difícil das pessoas entrarem. Mas nessa região que fica mais afastada da gente, que é a parte próxima da Vila, fica mais difícil pra gente”, descreve Aílton.
Com 46 anos – todos eles vividos na reserva – o líder comunitário conta que a luta pela consolidação da Resex pelo Estado se arrasta há muito tempo. “Entra governo e sai governo e não se consolidam as ferramentas para gestão da unidade. O governo não se compromete a fazer isso e por isso as invasões são maiores, porque precisa dessas estruturas para poder conter também esses impactos. O Estado fica muito ausente nessas questões”, desabafa.
O principal instrumento é o Conselho Deliberativo, pelo qual a comunidade tem direito de voz ativa na gestão da unidade de conservação. O conselho, que precisa ser formalizado pelo governo estadual, está atualmente desativado. Sem o conselho, os comunitários não conseguem renovar o plano de utilização da reserva, nem participar da gestão da área protegida. Os ribeirinhos também pedem pela demarcação dos limites da reserva, com placas em pontos estratégicos, para desestimular novas invasões.
Uma das expectativas é pela conclusão do processo de desintrusão liderado pelo Ministério Público do Estado do Mato Grosso (MP-MT) e que se arrasta desde o ano passado.
“No final do ano passado, como há pessoas indevidamente dentro da área [na Resex] com uma estrutura grande, presença de crianças, nós notificamos eles a desocuparem a área pública dentro do prazo de 120 dias. Diante disso, o Ministério Público chamou as unidades e está criando uma força-tarefa para fazer cumprir essa desocupação. Mas o processo foi adiado por causa das eleições, pelo emprego das forças de segurança no 1º e 2º turno”, contextualiza o tenente-coronel Querubino Soares, que atua na Coordenadoria das Unidades de Conservação (CUCO) da Sema-MT.
Em Mato Grosso, a eleição para governador foi resolvida ainda em 1º turno, com a reeleição de Mauro Mendes (União Brasil).
“É um processo de desintrusão, mas o nosso trabalho visa além de tirar as pessoas da área, permanecer lá com uma equipe de apoio e segurança com apoio da SEMA e Polícia Militar para evitar justamente que as pessoas voltem. Isso exige recursos. Estamos esperando esse processo andar com o Ministério Público Estadual”, comenta Querubino.
A ação tem apoio ainda da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, pela situação limítrofe e parcialmente sobreposta da Resex com a TI Kawahiva do Rio Pardo, habitada pelos isolados Kawahiva do Rio Pardo.
O ciclo, de acordo com o tenente-coronel, é o mesmo visto em outras áreas da Amazônia: cortam-se as árvores com madeiras de valor, depois desmatam, botam fogo e colocam o gado para consolidar a invasão.
Os invasores derrubam até mesmo castanheiras – árvore cujo corte é proibido por lei federal e que não pode ser comercializada – para uso na própria construção da propriedade que estão erguendo ilegalmente ali. A extração da castanha-do-brasil é uma das principais fontes de renda para as comunidades tradicionais da Resex.
Questionada sobre a previsão de remoção dos ocupantes irregulares da reserva, a Sema limitou-se a responder que o assunto está sendo coordenado pela Secretaria de Segurança Pública com a participação de demais instituições, dentre elas a Sema, e que a Secretaria participa realizando operações de fiscalização nas unidades de conservação em conjunto com os órgãos de Segurança Pública.
Em um episódio recente desse conflito, em maio deste ano, a sede administrativa e o barracão de armazenamento de castanha da Associação de Moradores Agroextrativistas (Amorarr) da Resex foram queimados. O incêndio seria uma retaliação de grileiros contra as operações de fiscalização para remover os invasores e o processo de desintrusão.
“Para denunciar é complicado porque quando a gente faz denúncia já fica ameaçado. Quando a gente começou a fazer denúncia esse ano tocaram fogo no barracão da Associação. Felizmente a gente ia passando no momento e conseguiu apagar o fogo”, lembra o presidente da Amorarr. “A gente tem medo porque a região é isso: pecuária e madeira. Não tem pra onde a gente correr. Os políticos são madeireiros e pecuaristas, o cara é dono de serraria, empresário da região… como é que faz? Pra gente é muito complicado. Quem ainda é muito parceiro da gente é o Ministério Público”, completa.
De acordo com a plataforma Timberflow, criada através de uma parceria entre o Imaflora e o ICMC/USP, entre as espécies mais exploradas em Colniza e Aripuanã estão o tauari, a cupiúba, a garapeira, o ipê, a maçaranduba, o roxinho e o angelim vermelho. O levantamento considera o período de janeiro de 2008 a dezembro de 2019 e usa dados extraídos a partir dos sistemas federal e estaduais (no caso de Mato Grosso e Pará).
Também de acordo com a plataforma, no período, os municípios de Aripuanã e Colniza aparecem em segundo e terceiro lugar, respectivamente, na lista das maiores origens de toras de madeira no Brasil.
Falta de fiscalização
O corte seletivo criminoso de árvores dentro das unidades de conservação estaduais é apenas um dos sintomas de um problema maior de falta de gestão efetiva e ausência de fiscalização no território.
“O Estado é ausente, falta estrutura, falta agente de fiscalização, uma base fixa, não tem interesse”, conta uma fonte da região que pediu para não ser identificada.
Questionada por ((o))eco, a Sema-MT limitou-se a explicar que possui nove diretorias desconcentradas que atendem todas as regiões de Mato Grosso e que os municípios de Colniza e Aripuanã são de competência da Regional de Juína. “A fiscalização é realizada tanto por servidores de Juína quanto por equipes da sede em Cuiabá”, completa a nota enviada à reportagem.
De Cuiabá até a sede do município de Colniza são pouco mais de 1 mil quilômetros e uma viagem de 16 horas de carro. Saindo de Juína, o deslocamento é de “apenas” 323 quilômetros, que equivalem a cerca de 6 horas, com trechos de estrada de terra. Da sede de Colniza são ainda outros 150 quilômetros até chegar na Vila de Guariba, porta de entrada da rodovia para a Resex.
“Quando o carro da Sema chega em Colniza, eles automaticamente soltam a informação em grupos de Whatsapp, tiram fotos dos veículos, da gente, pra todo mundo sair urgente de dentro das UCs. E como tudo é muito longe, a notícia chega antes da gente”, conta uma fonte da região que pediu para ser mantida em anonimato. Para conseguir flagrantes só com ação surpresa saindo de madrugada, acrescenta.
A situação é ainda pior no lado da margem do rio Roosevelt, onde estão localizadas as ainda mais distantes Estação Ecológica Rio Roosevelt e o Parque Estadual Tucumã. Apesar de possuírem o status de proteção integral, ou seja, o grau máximo de restrição ao uso, elas são consideradas unidades de conservação “de papel”, ou seja, sem implementação efetiva. Apesar de ambas terem sido criadas há pelo menos duas décadas, nenhuma das duas possui plano de manejo, por exemplo.
Segundo informações apuradas por ((o))eco, há um único gerente designado para estas duas UCs (junto com a Estação Ecológica do Rio Madeirinha, que é totalmente sobreposta ao parque estadual). A Resex Guariba-Roosevelt também possui uma “eu-quipe” formada por um único gestor.
“Essas unidades de conservação foram criadas, boa parte delas até o começo dos anos 2000, e assim como as UCs no âmbito federal, a gente tem uma dificuldade de implementação, de elaborar e implementar os Planos de Manejo, e de fazer uma gestão voltada de fato para seu fim de conservação. Esse é o desafio”, analisa Vinícius Silgueiro, do ICV.
“Algo que a gente já cobra há um bom tempo é que tenha uma gestão ambiental mais próxima. Poderia ter uma unidade descentralizada, uma unidade especial [da SEMA] em Colniza, sabendo dessa recorrência de pressão sobre essas UCs que estão na região”, pontua o coordenador, que explica que quem tem assumido o protagonismo na fiscalização ambiental na região é a Polícia Federal.
Atualmente, o programa de monitoramento da Sema-MT detecta desmatamentos acima de 1 hectare, com isso, cortes seletivos passam despercebidos nas imagens de satélite. “A fiscalização tem que ser presencial mesmo”, reforça o tenente-coronel da CUCO, Querubino Soares.
Na placa que sinaliza a presença da Estação Ecológica, inúmeras marcas de tiro deixam claro que a área protegida – e qualquer pessoa que queira defendê-la – não é bem-vinda.
Em julho de 2021, uma equipe da Coordenadoria de Unidades de Conservação (CUCO) foi verificar uma denúncia de retirada ilegal de madeira dentro da Estação Ecológica Rio Roosevelt. Ao chegar no local, a equipe encontrou múltiplos bloqueios na estrada que dá acesso à Estação Ecológica. “Ao percorrer cerca de dois quilômetros, novos bloqueios, desta vez com árvores derrubadas ao longo da estrada e na tentativa de retirar as barreiras, a equipe ouviu disparo de arma de fogo vindo da mata”, descreve trecho de um relatório sobre a ação de fiscalização a qual teve acesso ((o))eco.
Por segurança dos agentes, a ação foi interrompida neste dia e retomada quase duas semanas depois, com apoio do Ibama, Funai, Polícia Civil e Força Nacional.
“Mesmo após presenciar e superar mais de dez pontos de bloqueios com árvores derrubadas ao longo de seis quilômetros da estrada. Superado os obstáculos, de motocicleta constatou-se no interior da Estação Ecológica, ao longo de várias estradas abertas pelos criminosos, grande quantidade de árvores derrubadas e juntada (em esplanadas) para futuro transporte”, continua o relato.
A conclusão do relatório é enfática, “quando há fiscalização por parte do poder público eles [criminosos] saem da área ao passo que, quando não tem equipe monitorando, eles tomam conta da Unidade de Conservação”.
O documento reforça a importância de ter monitoramento constante e uma base fixa de fiscalização próxima às unidades, no entorno do distrito Guariba.
Apesar do alerta da coordenadoria, as ações de fiscalização seguiram um calendário pontual nas unidades de conservação do noroeste de Mato Grosso. A última grande ação foi realizada em junho deste ano, durante a Operação Cedif. Na ocasião, as equipes de fiscalização flagraram mais uma vez o desmate ilegal, desta vez no interior da Resex Guariba-Roosevelt, e da abertura de uma estrada clandestina.
Em represália à ação, os agentes foram cercados por manifestantes nas proximidades do Distrito de Guariba, no Núcleo da Polícia Militar, contrários à fiscalização ambiental.
“Nessa região a SEMA e o Ibama são os inimigos número um”, resume uma fonte ouvida por ((o))eco que pediu para não ser identificada. “O produto ali, a economia gira em torno da madeira das UCs. Porque as pessoas não precisam adquirir terra, não precisam fazer plano de manejo florestal, vão lá e simplesmente subtraem, roubam”, continua a fonte.
“Toda essa faixa que integra Mato Grosso e Amazonas é uma área grande de preservação ambiental, foi pensada pra isso, pra preservar a biodiversidade, para conter o Arco do Desmatamento. E o que está acontecendo é que eles entram onde tem madeira e estão arrancando tudo”, completa a fonte que pediu para ser mantida em anonimato.
Tanto a Resex Guariba-Roosevelt quanto a Estação Ecológica do Rio Roosevelt recebem recursos financeiros do ARPA – Programa Áreas Protegidas da Amazônia – para realizar ações de fiscalização.
Mercado de madeira aquecido: legal e ilegal de mãos dadas
Atualmente, Mato Grosso é o maior fornecedor de madeira nativa do Brasil. O setor é a quarta maior economia do estado. Nos três últimos anos, de 2019 a 2021, houve um aumento de 38,6% de exploração madeireira em Mato Grosso (tanto legal quanto ilegal) comparada ao triênio anterior.
Esse crescimento nos últimos anos, na visão do coordenador do ICV, tem três fatores principais. O primeiro é uma maior agilidade administrativa da SEMA, a partir de 2017, em validar os planos de manejo florestal e conceder autorizações para extração de madeira. O segundo seria a redução na fiscalização – “que vem nesse contexto de enfraquecimento dos órgãos de fiscalização, principalmente federal, e da sensação de impunidade”, comenta Silgueiro. E por último, em 2020 e 2021, a pandemia, que movimentou o setor de construção civil.
“As pessoas deixaram de viajar e investiram nas suas casas. E consequentemente, a madeira, como um insumo importante para construção civil, também teve esse reflexo de aquecimento do mercado”, completa.
A maior parte dessa produção de madeira abastece o próprio mercado brasileiro e tem como principal destino a região sudeste do Brasil. A parte que é exportada vai para os Estados Unidos, China e países europeus.
Olhados separadamente, os números da exploração madeireira legal e ilegal cresceram paralelamente, de forma simultânea e quase equivalente. O fenômeno não é coincidência.
“A legalidade e a ilegalidade caminham lado a lado e há justificativas para isso. A madeira que é explorada na área não autorizada, ela precisa de documentação para ser esquentada e movimentada. Por isso, sempre que aumenta uma a outra aumenta também, nossos dados têm mostrado isso. Porque se você tem mais área autorizada, você vai ter mais documentação que vai ser utilizada para esquentar essa madeira que foi explorada de forma não autorizada”, explica Silgueiro.
Esse processo de esquentamento de madeira se beneficia de uma imprecisão que existe no cálculo do volume de madeira de uma determinada espécie de árvore em uma área de manejo propriamente autorizada.
Isso acontece durante a elaboração do inventário florestal, uma das peças do plano de manejo florestal, feito junto ao órgão competente e obrigatório para a exploração madeireira. O inventário lista as espécies que ocorrem na área e os seus respectivos volumes. Para fazer essa medição, é preciso medir o diâmetro (circunferência) e a altura (comprimento) do tronco de cada árvore. Depois isso é somado, para saber o total daquela espécie. Por exemplo, 30 metros cúbicos de ipê, 50 metros cúbicos de angelim e por aí vai.
“Só que nessa medição de altura ocorre uma superestimativa, porque geralmente ela é feita no olhômetro. Com isso, no final do inventário vai haver uma superestimativa do volume de madeira a ser explorado ali. Isso é fato, eu sou engenheiro florestal e te garanto, isso vai acontecer. E o correto é que, no sistema, depois que ele cortou a árvore, essa tora vai cair e ele vai conseguir medir certinho e poder dar baixa no sistema desse crédito”, explica Vinícius Silgueiro.
Por exemplo, se o volume estimado de uma determinada árvore era 3 metros cúbicos, mas ao refazer a medida ele constatou que aquele tronco possui apenas 2,7 metros cúbicos, ele deveria corrigir a informação no sistema que faz a gestão do manejo florestal, e retirar os 0,3 extras. De árvore em árvore, esses pequenos créditos vão se somando e permitem que outras árvores, não estimadas dentro da propriedade – ou seja, oriundas de área sem autorização para o corte – entrem na conta da propriedade.
Com essa manobra, um proprietário pode incorporar madeiras extraídas ilegalmente no seu plano de manejo florestal e, com isso, obter a Guia Florestal, no nível estadual, e o Documento de Origem Florestal (DOF), para transportar a madeira em território nacional e comercializá-la. “Isso é o esquentamento, a lavagem de madeira”, resume Silgueiro.
“Esse é o ‘xis’ da questão. Você tem na raiz de tudo uma superestimativa do manejo florestal, que é normal. A gente pode melhorar com outras tecnologias, como laser que te dá com precisão a altura desse tronco, mas você sempre tem margem para algum erro. E o proprietário tem que dar baixa. Agora vai procurar uma área de manejo florestal em que o proprietário dá baixa no crédito. São raras as exceções. Todos zeram o sistema. É como se realmente tivesse tudo que ele estimou de madeira.
E na verdade não, ele usou esse crédito para esquentar uma outra madeira que veio de origem ilegal. É isso que acontece. E chega no pátio, as madeiras se misturam, as que vieram de origem legal, direitinho, e as que foram esquentadas. Esse é o grande desafio para garantir a origem legal e sustentável para a madeira produzida na Amazônia”, analisa.
Ao mesmo tempo em que a madeira extraída ilegalmente é aproveitada comercialmente por madeireiras, “ela é um tiro no pé”, ressalta Silgueiro. “Porque essa madeira entra no mercado com um custo de produção muito baixo porque não recolhe imposto, não tem legislação trabalhista… e acaba concorrendo com a madeira extraída via manejo florestal que pagou engenheiro, gerou divisas e pagou impostos”, acrescenta.
Soluções para ilegalidade
Em Mato Grosso, esse controle de fluxo de entrada e saída de créditos de madeira em tora é feito pela Secretaria de Meio Ambiente (Sema) através do Sisflora – o Sistema de Comercialização e Transporte de Produtos Florestais. O estado é um dos únicos da Amazônia Legal – junto com o Pará – que possui um sistema próprio a nível estadual.
A coordenação, fiscalização e regulamentação dos procedimentos operacionais do Sinaflor, entretanto, são geridas de forma nacional pelo Ibama.
Em 2020, uma resolução do Conama (nº 497/2020) obrigou a integração dos sistemas estaduais com o federal com o objetivo de trazer maior transparência para a cadeia da madeira. A obrigatoriedade somou-se a uma atualização do Sisflora para uma versão 2.0, prometida desde 2017 pelo governo de Mato Grosso e que deve ser entregue até o final deste ano, conforme informação da própria Sema.
O Sisflora 2.0, como vem sendo chamado, traz algumas soluções para os atuais gargalos na fiscalização da atividade madeireira, permitindo a rastreabilidade de cada árvore, individualmente, da origem ao destino. Esse instrumento de controle, chamado de “cadeia de custódia” é uma das principais mudanças que virão com a atualização do sistema.
Em nota enviada pela Sema-MT, a secretaria reforça que “a integração com o Sinaflor tem o objetivo de rastreabilidade do órgão federal para localizar os desmatamentos autorizados e os manejos”. O órgão ambiental estadual acrescenta ainda que a integração já foi feita e a secretaria “está estruturando a implementação do Sisflora 2.0 com rastreabilidade. O processo está em fase de testes e contato com o Ibama para ter essa rastreabilidade em nível nacional. A previsão para colocar o sistema no ar é na segunda quinzena de dezembro”.
“O Sinaflor traz essa exigência do inventário florestal georreferenciado, ou seja, que dá o posicionamento mais preciso da árvore, e uma relação da autorização de exploração florestal feita no nível das árvores e não do conjunto de espécies, e isso vai ajudar bastante a eliminar esses gargalos que fazem com que os proprietários aproveitem essas sobras de crédito”, destaca Vinícius Silgueiro.
Num estudo publicado em outubro de 2021 na revista online Transparência Florestal Mato Grosso, pesquisadores do ICV avaliaram a ilegalidade na cadeia da exploração madeireira no estado e indicaram recomendações para combatê-la.
Além da maior fiscalização e da responsabilização dos envolvidos na atividade ilegal, e do engajamento e conscientização dos mercados consumidores, os pesquisadores recomendam “garantir e dar total transparência à integração dos sistemas estaduais de monitoramento e controle florestal do Sinaflor” para assegurar a rastreabilidade da produção madeireira. Também apontam a necessidade de implementar um monitoramento da exploração madeireira em tempo real, assim como adotar mecanismos automatizados para alertas de fraude.
“Com as ferramentas que existem atualmente de sensoriamento remoto é possível fazer uma rotina de monitoramento em tempo real usando imagens de satélite e conferindo os sistemas para ver a movimentação que está sendo feita desses créditos no sistema. Exemplo: teve movimentação de crédito de madeira no sistema, mas eu olho na imagem de satélite e a área não foi explorada ainda. O que aconteceu? O cara está usando esse crédito para esquentar uma madeira que vem de outra área. Então dá para adotar essas ferramentas de forma meio automatizada ou semi-automatizada de controle de fraude”, descreve o coordenador de Inteligência Territorial do ICV e um dos autores do estudo.
Ele reforça também o papel do setor legal no combate à ilegalidade, através de campanhas e ações de comunicação, assim como da cobrança dos órgãos públicos.
((o))eco tentou contato inúmeras vezes, por telefone e por e-mail, com representantes do Centro das Indústrias Produtoras e Exportadoras de Madeira do Estado de Mato Grosso (CIPEM), que reúne oito sindicatos empresariais de base florestal do estado para fazer uma entrevista e ter um posicionamento de representantes do setor sobre a influência da ilegalidade no mercado, as recomendações e melhores práticas para evitar que a madeira ilegal contamine a cadeia. Entretanto, ((o))eco não obteve nenhuma resposta. O espaço segue aberto.
Fonte: O Eco
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