Monocultura que desmata a floresta utiliza método com potencial para causar impactos na temperatura e na precipitação local
Por Marco Aurélio Franco – Jornal da USP
No último dia 9 de setembro, a cidade de São Paulo amanheceu com o cheiro da fumaça da Amazônia. Não foi a primeira vez. No dia 19 de agosto de 2019 ocorreu um fenômeno semelhante. Eram quatro horas da tarde na capital de São Paulo quando nuvens escuras cobriram o céu completamente.
A fumaça também vinha da floresta amazônica, onde os índices de focos de incêndio batiam recordes nunca superados desde que o governo federal fez os primeiros registros, em 1998. O raro fenômeno ocorrido há três anos foi provocado pelo encontro do nevoeiro com as massas de ar vindas do Sul.
O professor Henrique de Melo Jorge Barbosa, do Instituto de Física (IF) da USP, foi quem demonstrou que, em 2019, as partículas suspensas no ar após as queimadas foram transportadas para São Paulo em artigo publicado em março de 2021. Agora, três anos depois, o artigo Relationship between Land Use and Spatial Variability of Atmospheric Brown Carbon and Black Carbon Aerosols in Amazonia, publicado na revista Atmosphere e que conta com a colaboração de Barbosa, encontrou uma relação entre a presença da fuligem responsável por contribuir com as mudanças climáticas e o tipo de uso da terra na Amazônia.
A primeira autoria é dividida pelos pesquisadores do IF Fernando Gonçalves Morais e Marco Aurélio de Menezes Franco, pós-doutorando. O trabalho foi fruto de uma parceria internacional na qual colaboram ao todo dez cientistas, sob a coordenação do professor Paulo Artaxo, do IF. Inicialmente, o estudo tinha o interesse em avaliar propriedades óticas da fuligem suspensa no ar na Amazônia, os aerossóis carbonáceos.
As partículas foram obtidas no trabalho de doutorado de Fernando Morais junto ao Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), sob a orientação do professor Eduardo Landulfo. Ao cruzar os dados da análise desses aerossóis com mapas sobre o uso do solo, a equipe teve uma surpresa: quanto mais devastada está a floresta, maior é a presença de black carbon, que pode ser entendido como a fuligem proveniente de queimadas e que está relacionada com as mudanças climáticas.
Além de responsável pela maior absorção de calor, o black carbon presente nas áreas desmatadas pode alterar o regime das chuvas da região e prolongar a estação de seca. A umidade da Amazônia é transportada do Norte para o Sul do Brasil. Dessa forma, a alta concentração de aerossóis provenientes das queimadas tende a reduzir a formação de nuvens. Isso impacta diretamente no transporte de umidade para as regiões Sul e Sudeste do País. Segundo os pesquisadores, esta influência pode se estender, inclusive, até o Sul do Uruguai.
A agricultura e a pecuária são os setores da economia mais afetados por esse fenômeno.
“A agropecuária não é, em si, um problema”, ressalta Marco Aurélio Franco ao Jornal da USP. Segundo ele, o problema estaria em “uma monocultura extensiva que pode desgastar o solo e que além de tudo produz queimadas como forma de manutenção da produção”.
De acordo com o físico, a agricultura precisa ser sustentável, de forma a balancear a existência das culturas e a manutenção de florestas, mantendo especialmente as áreas de proteção ambiental. “A população em geral é quem vai sofrer, por exemplo, com a redução da precipitação nas cidades e o aumento da temperatura. Isso tem acontecido bastante na região Sudeste, até mesmo com os haboobs, as tempestades de poeira que foram observadas em 2020 e 2021 no interior paulista e mineiro”, acrescenta.
Fernando Morais enfatizou ainda que em hipótese nenhuma isso é ser contra a agricultura. “A gente só está mostrando que os diferentes usos do solo podem afetar a concentração de diferentes tipos de aerossóis carbonáceos e como a natureza funciona de acordo com o uso que a gente faz dela”, afirma.
Para o professor Eduardo Landulfo, o artigo corrobora a suspeita de que há um desmatamento não organizado na região. “Tem muita floresta sendo desmatada em detrimento da atividade da agricultura, que obviamente é necessária. Isso pode gerar mudanças climáticas que vão afetar a própria agricultura”, comenta.
Métodos e fontes de dados
Parte fundamental dos dados foi coletada da Aerosol Robotic Network (Aeronet). Fernando Morais, que trabalha no IF há 15 anos, conta que uma de suas primeiras atribuições no instituto foi trabalhar nesse projeto, que pertence à Nasa, a Agência Espacial dos Estados Unidos. O cientista mantém e instala os fotômetros dessa rede em vários pontos do Brasil, como em Alta Floresta (MT), Ji-Paraná (RO), Cuiabá (MT) e em Rio Branco (AC), algumas das cidades que compõem o arco do desmatamento. Os dados ficam acessíveis para qualquer pessoa no mundo.
Em parceria com Marco Aurélio Franco, ele fez correlações dos dados coletados através de matrizes de Ångström, um método que cria um gráfico que permite visualizar a natureza e a proporção dos aerossóis que absorvem mais luz. Além da rede que monitora os aerossóis, foram utilizados os dados de uso da terra da plataforma MapBiomas.
Também foram instalados filtros na torre ATTO (sigla em inglês para Observatório da Torre Alta da Amazônia), que fica a 325 metros de altura, em uma região de floresta densa e pouco afetada pela atividade humana. O ar passa por eles, e as partículas que ficam na atmosfera são depositadas na superfície e coletadas. Depois são feitas análises químicas, ópticas e por fluorescência de raio-x nesses aerossóis. Ao todo são 34 filtros de nuclepore, uma espécie de membrana de plástico, e os dados ainda estão sendo analisados para uma futura publicação.
A questão levantada agora é se essas mesmas relações estariam presentes em outros biomas como o Cerrado, os Pampas e o Pantanal. “Nós já temos condições de fazer isso. Não é um dado que a gente vai ter que coletar, nem métodos novos que precisam ser desenvolvidos”, comenta Morais. “Novos estudos certamente são fundamentais nesta área para entendermos o impacto dos aerossóis carbonáceos nos diferentes ecossistemas.”
O trabalho recebeu apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), como parte das teses desenvolvidas pelos pesquisadores.
Texto publicado originalmente por Jornal da USP
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