Gilberto Freyre, ao conhecer a obra de Samuel Benchimol, passou a tratá-lo como a maior referência conceitual e vivencial de interpretação da Amazônia.
Por Alfredo Lopes
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Gilberto Freyre, genial pernambucano que registrou a história das contradições sociais desde os tempos coloniais, em sua obra-prima, Casa Grande & Senzala, nos legou um tratado de interpretação da formação social e da identidade cultural e econômica desta desordem chamada Brasil. Para tanto, utilizou conceitos da dialética pré-capitalista como chave de compreensão de nossos embaraços recorrentes.
O universo de representações ideais no cotidiano da Casa Grande, uma de suas inferências, se manteve intacto em seus arquétipos e propósitos. Hoje, se olharmos atentamente aos indicadores que traduzem a distribuição de riqueza no Brasil, vamos referenciar sua profecia. Um país em que a população voltou a sentir na pele, ou no estômago, o que significa estar inserido no mapa do fome, ainda se organiza na epistemologia gilbertiana.
Norte e Nordeste seguiram caminhos sinuosos e semelhantes. Freyre, ao conhecer a obra de Samuel Benchimol, passou a tratá-lo como a maior referência conceitual e vivencial de interpretação da Amazônia. A importância de ambos, como tradutores das reais contradições do país, ultrapassa estas categorias adoecidas que estão dividindo o mundo entre esquerda e direita, uma versão atualizada do maniqueísmo medíocre que interpreta o mundo entre os bons e os maus.
Isso apenas serve para reproduzir a desordem socioambiental e econômica em curso sem sequer tangenciar os fundamentos e os gargalos do capitalismo retrógrado e vesgo que impera no país. Uma ciranda onde a Casa Grande é o estado da contravenção social que se apropria das riqueza produzida, via intimidação, para perpetuar esquemas viciados de poder.
É preciso, portanto, avançar a reflexão e superar a tentação autoritária de estigmatizar o mundo entre Deus e o Diabo. A história da humanidade avança a partir do momento em que alguém cercou uma propriedade para chamar de sua sem considerar que a consolidação desta posse supõe o atendimento das demandas básicas e cívicas do tecido social. Ou seja, o mote da apropriação se descomprime quando se conquista a partilhada dos meios de produção.
O capital e o trabalho, num enfrentamento permanente, inteligente e criativo, formam a equação da partilha, equilibrada e fecunda, como requisito dialético da geração de oportunidades e prosperidade. Assim, a história evolui na direção de uma nova ordem em que o poder público deve estar a serviço do bem coletivo e não o contrário, como ora. funciona.
Acomodar-se a essa (des) ordem nos cega, empobrece e semeia a mediocridade na interpretação, compromisso e adesão aos verdadeiros problemas que atormentam o tecido social. Isso é esquerdismo, direitismo, ou centrismo da hipocrisia e do oportunismo? Não saberia escolher ou validar quaisquer dos ismos em voga. O problema está na gestão pública que administra interesses alternativos no modo faz-de-conta, contanto que sua arrecadação seja incessante e insaciável.
Na Amazônia, na obra de Samuel Benchimol, a Casa Grande nordestina ganhou o status do coronelismos seringalista e as taperas dos seringueiros, migrantes da seca inclemente do agreste, se transverse da Senzala da educação precária e do assistencialismo eleitoreiro. Ambos se identificam e se reproduzem sob o signo da opressão burocrática e gestão demagógica que cria inimigos imaginários para assegurar/perpetuar poder a qualquer custo.
Essa (des)ordem precisa alcançar um patamar decente de dignidade e um modo de produção capitalista baseada na sustentabilidade, ou seja, socialmente justo, politicamente correto, economicamente viável e ambientalmente equilibrado. Eis os critérios da nova civilização na gestão da Amazônia: justiça, correção, viabilidade e equilíbrio.
Sugere-se aqui o roteiro de um novo modo de produção e de gestão da floresta, onde viceja uma economia pra combater desigualdade, sua miséria e sua grandeza, sem lirismo pueril nem otimismo banal. Algumas premissas já estão colocadas e algumas condições são previamente exigidas. Todas baseadas na Lei, posto que fora dela não há salvação. A lei determina, por exemplo, a premissa da educação para todos, anunciada em múltiplas tribunos e narrativas políticas e nos dispositivos constitucionais.
Como tem-se dado a correção das disfunções e aberrações ao longo das gestões públicas no modo de gestão habitual e atual? Basta olhar o Amazonas. Que condições se impõem para virar do avesso a (des)ordem embrutecida? Que se formem os conselhos paritárias entre os setores privado e público, onde forem detectadas falhas graves na administração do bem coletivo. Transparência e participação é a senha desse arraial promissor.
Ora, se não levam a sério as promessas de campanha na temporada de caça e captura dos sufrágios que levam ao poder, vamos escolher/acompanhar/cobrar mais e melhor os eleitos enquanto as questões fundamentais seguirem negligenciadas como costuma ocorrer. O que não podemos é ceder ao autoritarismo ou o Iluminismo do poder de plantão que abominam a interlocução.
A construção do poder público não confere a seus integrantes a prerrogativa da posse do bem comum, material ou imaterial. É apenas o poder de servir ao contribuinte a investidura do mandato de classificação e autoridade popular. Ou será que Gilberto Freyre e Samuel Benchimol postulavam algo diferente disso na dialética de suas elucubrações geniais ao apontar as contradições de interesses que formam a angústia existencial/social do sertão e da floresta por décadas e décadas consecutivas esquecidos?
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