De acordo com o professor Flávio Galvão, da Faculdade de Medicina da USP, a nova tecnologia desenvolvida nos Estados Unidos fornece um fluido protetor de células especialmente projetado para órgãos e tecidos
Por Denis Pacheco – Jornal da USP
Pouco se sabe sobre o que acontece com a nossa consciência após a morte, mas a ciência já entende bastante sobre como nosso corpo reage ao processo de morrer. Com o coração parando de bater, o fluxo sanguíneo diminui até parar. Nossos órgãos, sem oxigênio, logo também deixam de funcionar. Não por acaso, o processo dificulta demais a viabilidade desses órgãos para, por exemplo, um eventual transplante. Mas isso pode mudar no futuro próximo.
Em um estudo publicado na revista Nature, pesquisadores do Departamento de Neurociência da Faculdade de Medicina de Yale, nos Estados Unidos, desenvolveram uma tecnologia que restaurou a função de células e órgãos em porcos uma hora após a morte.
Ao comentar o estudo internacional, o professor Flávio Galvão, da Faculdade de Medicina (FM) da USP, responsável pelo Laboratório de Transplante e Cirurgia do Fígado do Hospital das Clínicas, em São Paulo, explica que a tecnologia fornece um fluido protetor de células especialmente projetado para órgãos e tecidos.
As descobertas, sugere o especialista, “podem ajudar a estender a saúde dos órgãos humanos durante a cirurgia e expandir a disponibilidade de órgãos doados”. De acordo com o professor, a perfusão não é exatamente uma novidade na medicina, mas, atualmente, é um procedimento complexo e caro. “Essa descoberta é fruto de um trabalho que iniciou-se nos anos 1980 e 1990. Ela envolve uma máquina de perfusão para preservar órgãos, um sistema que já existe, mas ainda não é tão difundido porque é caro e pouco prático”, afirma.
Restauração de Células
A pesquisa recente se baseia em um projeto anterior liderado também pela Universidade de Yale, que restaurou a circulação e certas funções celulares no cérebro de um porco morto com a tecnologia apelidada de BrainEx. No novo estudo, os cientistas aplicaram uma versão modificada do BrainEx, chamada OrganEx, ao porco inteiro. A tecnologia consiste em um dispositivo de perfusão semelhante às atuais máquinas coração-pulmão e um fluido experimental contendo compostos que podem promover a saúde celular e suprimir a inflamação em todo o corpo do porco.
A parada cardíaca foi induzida em porcos anestesiados, que foram tratados com OrganEx uma hora após a morte. Um detalhe registrado é que a equipe ficou surpresa ao observar movimentos musculares involuntários e espontâneos nas áreas de cabeça e pescoço quando avaliaram os animais tratados, que permaneceram anestesiados durante todo o experimento de seis horas. Por isso, esse tipo de experiência envolve diversas questões bioéticas.
“O artigo registra um esforço fabuloso que envolveu, inclusive, diversas questões bioéticas difíceis de serem respondidas”, aponta Galvão ao destacar o uso dos animais em pesquisas como essa. “Questões como: Será que nós podemos fazer isso?”, postula ele.
Na opinião do especialista, são muitas as restrições envolvendo estudos dessa natureza, mas todas elas são essenciais para evitar complicações futuras.
De acordo com o artigo da Nature, a tecnologia OrganEx pode eventualmente ter várias aplicações. Por exemplo, poderia prolongar a vida útil dos órgãos em pacientes humanos e expandir a disponibilidade de órgãos de doadores para transplante. Ela também pode ajudar a tratar órgãos ou tecidos danificados por isquemia durante ataques cardíacos ou derrames.
Entretanto, o professor destaca que tudo isso só será possível graças a uma equipe multidisciplinar e um maciço investimento em pesquisa. “São muitas pessoas de várias áreas trabalhando juntas. É um tipo imensurável de pesquisa”, finaliza ele ao relatar que o investimento envolvido deixa claro o alto patamar em que um estudo desse tipo se fundamenta.
Texto publicado originalmente em Jornal da USP
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